O Sétimo Selo de Bergman. 3ªf, 18h, Loulé: aqui tão perto.

Instituto D. Afonso III (Convento Espírito Santo). Entrada livre.

Numa manhã de Janeiro de 1956, Ingmar Bergman estava a fazer a coisa mais comum a todos os homens nesta hora do dia: barbeava-se. Para abafar o som da máquina, tinha posto o gira-discos no máximo, tocando "Carmina Burana". De súbito a música encontrou na sua mente as imagens de "Les Saltimbanques" de Picasso, e a litografia de Dürer "Cavaleiro, Morte e Demónio”. Começou assim a delinear-se, em tão prosaica manhã, durante tão trivial tarefa, a peça "Pintura em madeira", donde viria mais tarde a ser retirado o argumento de O Sétimo Selo.

Ao contrário do que é uma ideia feita, no cinema de Ingmar Bergman é pouco frequente, e muitas vezes inconsequente, aquela sensação de peso sufocante originada por uma qualquer repisada elaboração, que usualmente se diz ser comum aos seus filmes. Quando a atenção se vira ora para o conjunto da sua obra, ora para a sua cronologia, é uma diferente visão que acaba por transparecer. Em primeiro lugar, Bergman sempre teve mão exímia para a comédia - Uma Lição de Amor e sobretudo Sorrisos de uma Noite de Verão, filme que viria a consagrá-lo -, pelo que a Svensk Filmindustri se inclinava com maior facilidade a conceder-lhe créditos de produção nesse género de aceitação popular e êxito comercial, e tremia, com não menos facilidade, quando o realizador insistia nos dramas que asseguravam fiascos de bilheteira. Em segundo lugar, na fase da sua obra compreendida nos anos quarenta e cinquenta, Bergman deslumbra-se e deslumbra-nos com a luz de Verão onde se aquecem as paixões finalmente funestas mas brilhantes enquanto perduram de Rumo à Felicidade, Um Verão de Amor, Mónica e o Desejo ou Kvinnodrom. Em terceiro lugar, o cinema de Bergman é muito menos abstracto (quer dizer, desprendido das contingências da materialidade) do que um olhar desatento sobre os seus filmes poderia deixar supor; a angústia que em Fangelse, Torst e Gyclarnas Afton se desprende provém do facto de as misérias existenciais serem demasiado pequenas e o quotidiano demasiado trivial. Pode-se assim explicar porque razão O Sétimo Selo, quase sempre posteriormente tomado como um paradigma do cinema de Bergman, acabe por surgir um pouco à margem das tendências dramáticas que o realizador até aí demonstrara. Embora inaugurando uma nova frente nas motivações cinematográficas do realizador, O Sétimo Selo torna evidente o que até 1956 estava subjacente; esta será a sua novidade e ao mesmo tempo a sua coerência.

Novidade será, por exemplo a entrada - e fulgurante! - de Max von Sidow na família de actores de Ingmar Bergman, quer dizer, na família de actores cinematográficos, porque já era intensa a relação de trabalho entre eles no Teatro de Malmõ, que Bergman dirigia nesses anos. Também aqui se vê um Gunnar Bjornstrand que nunca se tinha visto nem nunca mais se verá, porque surpreendente numa interpretação bufa de um escudeiro nada grave e comedido, antes virado para as truculências carnais - um Sancho Pança em contraluz nórdica e protestante.

Com este filme Bergman inicia uma fase que genericamente termina em Luz de Inverno onde a pouco e pouco ganha consistência a dúvida sobre Deus. A resposta àquilo que até então parecia uma barreira intransponível à felicidade entre os seres humanos vai agora Bergman tentar encontrá-la junto ao divino; donde este súbito recuo no tempo e este súbito formalismo, quase ritual, que parece sustentar toda a narrativa do filme. Sendo grande o hiato temporal do ponto de vista da contemporaneidade, é permitido tomar a Idade Média como o terreno vago onde é possível que o formalismo dos conceitos informe totalmente os personagens. O que torna pois verosímil O Sétimo Selo não é qualquer efeito de realismo, mas precisamente essa ideia de fundação mítica do divino que nele decorre. Sabendo-se que uma das primordiais influências do primeiro Bergman foi Marcel Carné, seria impossível não entender em O Sétimo Selo uma resposta conclusiva a Les Visiteurs du Soir, se são flagrantes as diferenças entre os filmes, mais flagrante ainda se torna a sua relação. Aqui a morte e o cepticismo trazem-nas pela mão aqueles cuja acção é a de chegar: o cavaleiro Block e o escudeiro Jons; enquanto os saltimbancos, aqueles que passam, vivem ao largo de todas as questões que suscitam a infelicidade. Em Les Visiteurs du Soir quem chega - e assim traz o Mal consigo - são precisamente os saltimbancos, ao passo que os castelões, tal como Karin, a mulher de Block, aguardam, indefesos, os trabalhos do demónio. Mas em ambos os filmes assiste-se a um semelhante triunfo, que é o de Deus a escrever direito por linhas tortas, ou seja o da força inviolável do frágil amor. Um Deus dissimulado portanto, que aposta nas improbabilidades do afecto e despreza as virtudes da razão. Um Deus contraditório, portanto, com aquele que Bergman recebeu de seu pai, um pastor protestante (e contra cuja sombra o cineasta se debateu toda a vida), e muito mais próximo daquela imagem estranha e solar do Deus católico que, recorde-se, numa das falas decisivas de Luz de Inverno era interrogado com horror e fascínio. Mas, sobretudo, o que em O Sétimo Selo aparta Bergman de Carné é a ideia fundamental que o Mal não nasce estranho ao homem mas antes toma a imagem da Morte. Aqui não existe tentação, apenas uma perdição vista como inata.
Mas se em O Sétimo Selo Bergman salda de vez a sua dívida com Marcel Carné, não é menos certo que também ajusta contas com o teatro. De actores vistos como saltimbancos marginalizados é feito afinal o mundo em que vive o próprio realizador, e se A Noite de Circo propunha uma visão no mínimo apocalíptica do que é ganhar consciência de viver constantemente através da vida das personagens que se interpretam, agora cabe aos actores a felicidade de poderem ver o mundo - e Jof é um puro que tem visões - através desse limbo existencial que é a representação. Por isso é deles o privilégio dos amores solares, silvestres e livres de impurezas que já eram expostos em Um Verão de Amor e Mónica. Estão assim os actores, enquanto espécie humana que vive à margem das contingências do concreto, predestinados à compreensão da simplicidade das coisas transcendentes. Será este tema que Bergman irá reafirmar no futuro O Rosto e, de certo modo, desmentir, ou pelo menos interpelar, em Ritual. Será também a partir destas premissas que Tarkovski construirá o seu Andrei Rubliov, revendo O Sétimo Selo segundo a perspectiva daquele pintor de frescos da igreja, que por momentos conversa com Jons.

Viu-se no cavaleiro Block o símbolo do homem ocidental contemporâneo, crivado de dúvidas perante a presença da morte. Mas se já nesta altura Bergman tivesse a mesma opinião que manifestaria anos depois, a de uma total recusa do simbolismo nos seus filmes, poder-se-á então olhar para esse cavaleiro, em tudo o oposto de um crentíssimo D. Quixote, com olhos menos turvos e um pouco mais vastos de horizontes. Procurar o simbolismo num filme é interditar-se quase automaticamente para o transcendental, reduzindo a visão à segurança dos significados imediatos e O Sétimo Selo é, na sua essência, uma obra metafísica. E de tal modo o é que logo a primeira sequência evoca esse fabuloso Dies Irae de Dreyer, pelo acordo entre a tensão do preto e branco e a atmosfera soturna que naquela parcela de praia revela a alma dos personagens. Mais tarde veremos também, como se fosse marginal à ansiedade do cavaleiro, a mulher condenada por bruxaria, de tão resplandecente branco vestida que é impossível não ver logo (intuir, portanto) a sua inocência.

É um mundo desocupado pelos sinais de Deus este de O Sétimo Selo. A morte entrará de seguida em cena e de tal modo o faz, e sempre assim o fará, que por um genial raccord se entende que sempre ali esteve à espera do cavaleiro. Quando não acontece a sua presença, ficam os efeitos da sua passagem: a peste que destrói o rosto dos que se sentaram à beira do caminho, esses rostos sempre tão queridos do cinema de Bergman, ou a humilhação que se abate sobre os puros, tal como se vê na cena da taberna em que o pobre Jof é obrigado a passar por urso até à exaustão. Neste mundo sem sinais, logo sem símbolos de redenção, em que a Morte é um substantivo feminino encarnado por um actor masculino, a grande vitória é a de conseguir mexer os dedos dos pés perante a ansiosa eternidade e a grande moral de O Sétimo Selo vem contida na pergunta: "É assim tão inconcebível querer compreender Deus com os sentidos?" Nesta frase, afinal, condensam-se todas as questões que o cinema de Bergman tinha procurado colocar segundo diversos ângulos: a impossível supremacia dos sentidos contra as insistentes formulações da razão, ou seja, a felicidade que se sabe estar onde é inadmissível ir buscá-la. É disto afinal que, depois de se ver O Sétimo Selo, retrospectivamente nos acabam por falar Um Verão de Amor e Mónica e o Desejo, de forma talvez mais solar mas decerto tão contrastada, sempre num jogo entre duas pessoas que não admitem resguardar o seu envolvimento amoroso das violências do mundo e diante delas sucumbem. Porque aquilo que liga o cavaleiro ao seu escudeiro é a recíproca consciência que cada um deles tem dos limites do outro, ao contrário do casal de saltimbancos, Jof e Mia, que possuem o espelho de um filho - Mikael, certamente de S. Miguel, o santo protector das almas - tal como o farsante Skat, que ao seduzir Lisa, a mulher do ferreiro, obtém nesse gesto a satisfação assumidamente efémera dos sentidos, o que deixa de tornar inexplicável que morra ao simular a sua morte, quando ao fugir das iras do marido cornupto se recolhe na paz segura do anjo negro. O sétimo selo a ser aberto é o último do livro que desencadeará o apocalipse, então dos céus se ouvirá o cântico, à glória da ira de Deus. De um Deus que só se encontra na morte e tanto se procura nos filmes de Bergman, junto à terra e às paixões.

José Navarro Andrade in 100 Dias 100 Filmes, Cinemateca Portuguesa

(colaboração com Allgarve '10)
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