2ªF, 22H, IPJ, É SESSÃO DE SOLIDARIEDADE COM A ASS. MÚSICA XXI!

Devido às inundações de 18 de Maio em Faro, a sede e o património da Associação Música XXI ficaram gravemente danificados.

A entrada na sessão é livre, mas proceder-se-á a uma RECOLHA DE DONATIVOS por forma a ajudar os nossos colegas da Música XXI nesta altura difícil. Contamos consigo! :-)

FARINELLI, UM DOS MAIORES ÊXITOS DA DÉCADA DE 90!



FARINELLI, uma das últimas grandes produções do cinema europeu (Bélgica/França), recria sumptuosamente a vida e a época de urna singular personagem verídica: Carlo Broschi, afamado corno Farinelli, considerado o mais importante «castrati» do século XVIII; um títere cuja extensão de voz, segundo rezam as crónicas, abarcava mais de três oitavas e meia.

Para Gérard Corbiau, é a segunda incursão no universo da criação musical, depois do filme que o revelou, O Professor de Música, também nomeado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Farinelli é, necessariamente, um produto de luxo, extremamente vendável, que discorre com passo lento e por vezes majestoso, e onde se destaca, para além do magnífico trabalho da cenografia e do guarda-roupa, o prodígio técnico de tratamento numérico das vozes de um contra-tenor, Derek Lee Ragin, e de uma soprano, Ewa Mallas Godlewska, sintetizadas numa terceira voz, a do «castrati».

O filme suscitou as discussões habituais sobre os limites da fidelidade histórica no cinema e sobre quais os perímetros atribuíveis à liberdade ficcional, embora esta me pareça uma discussão acessória. O essencial é que Farinelli, apesar de bons momentos e das grandes interpretações de Stefano Dionisi/Farinelli e de Jeroen Krabbe/Haendel, balança por muitos afluentes narrativos sem conseguir coesão orgânica. (...)

Estamos no apogeu do Barroco e podemos dizer sobre a sua essência o que Guy Debord escreveu sobre o espectáculo nas sociedades hodiernas: «O espectáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem.» Ora, assistimos ao drama de um «castrati» que, no corropio entre camas e pela superação das eventuais limitações que à castração se atribui (Farinelli surpreende as mulheres porque além de as arrebatar com a voz é ainda capaz de copular), compreende a dado momento que à sua voz falta um corpo musical que transcenda a imagem em que o projectou a sua acumulação de habilidades técnicas. Profeticamente, Farinelli sente que a sua voz é uma criação sintética sobre um corpo fantasmado, corpo que, mesmo para o acto sexual, necessita da muleta do duplo, o irmão. Faltará sempre a Farinelli o seu Orfeu, no sentido em que só pela superação da morte o seu corpo renascerá, não já corno fénix mas como metabolismo capaz de reprodução. O seu conflito é tanto mais interessante quanto mais reflecte o drama de uma consciência onde o talento surge como uma pulsão emanada das feridas e que se fundamenta contra o corpo. Neste sentido, Farinelli, na sua ânsia de progenitura, é-nos apresentado como um anjo truncado, um anti-Sade, que se quer furtar ao âmbito do espectáculo que o separava da vida. Pena é que, entre tantas sugestões, reine a dispersão, ou o apelo dos números.
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António Cabrita, Expresso, 26/10/95


Montagem de som
A "re-invenção" de uma voz de castrato constitui uma dificuldade técnica hoje ultrapassada pelo Travelling-Auvidis com a participação do IRCAM. Dado que ninguém mais possui a amplitude vocal dos castrati (até três oitavas e meia), foi necessário recorrer a dois cantores, uma soprano e um contra-tenor, partindo do principio que a primeira cantaria os tons mais agudos e o segundo os mais graves.

Durante a montagem, que foi extremamente precisa, misturaram-se as vozes de ambos, para cobrir a amplitude vocal mas igualmente a virtuosidade dos castrati. A banda sonora comporta assim perto de 3.000 pontos de montagem. Foi necessário seguidamente homogeneizar os timbres dos cantores afim de dotar Farinelli de uma voz que lhe fosse própria, simultaneamente nova mas respeitadora das vozes originais.

O trabalho vocal de cada um dos artistas foi portanto, de certa maneira, "fotografado", identificando-se e analisando-se as frequências constitutivas do timbre de cada uma das vozes. Esta "fusão de timbres" pelas técnicas de tratamento numérico dos sons, resultou numa voz inédita, para além das capacidades humanas actuais mas sem consistir uma voz sintética.
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s/indo de autor, trad. do francês de Anabela Moutinho


O Terceiro Sexo
Cosa natura/e é o que os mestres italianos chamam ao canto. Mas esta naturalidade é acompanhada, na ópera, pela mais alta técnica, por um grau de sofisticação quase artificioso. Dir-se-ia, antinatural. Ora, dentro deste universo, a figura do castrado, durante o século XVIII, é porventura - no sentido literal- o lugar por excelência do antinatural. Não só porque resulta de uma amputação do corpo mas também, porque, para actuar e se exibir, se reveste em termos iconográficos de uma panóplia de artifícios e de adereços persuasivos. É esse o "drama" da personagem central do filme Farinelli, de Gérard Corbiau. (...)

Claro que foi a proibição das mulheres cantarem na ópera que esteve na origem dos castrados. Uma proibição que em Portugal se prolongou até ao reinado de D. Maria, o que não é de espantar, dado que era um mero prolongamento ou consequência de uma vivência geral da corte, onde a separação dos sexos era rigorosa.

No século XVIII, (...) a voz do castrado distinguia-se - facilmente, aliás - da voz infantil e da voz feminina, sem contar com os timbres vocais que apenas a sua condição fisiológica permitia e que eram a sua condição fundamental. Precisamente, a dificuldade ou o problema que a voz do castrado levanta é a de ser uma voz que foge a todos os códigos, que participa de todas as categorias: feminino, masculino, infantil ou juvenil. (...)

A castração executada por um cirurgião ou pelo simples barbeiro da aldeia era efectuada entre os sete e os doze anos, ou seja, no começo da puberdade, e constava da extracção dos dois testículos. Ao contrário dos eunucos de harém, a quem todos os orgãos sexuais visíveis eram extraídos, o castrado europeu poderia ter por isso uma relação sexual mais ou menos normal. dado que a erecção e a ejaculação (sem espermatozóides) eram possíveis.

Esta pode ser, sem dúvida, uma das razões para o enorme sucesso e para as paixões avassaladoras que as mulheres da corte nutriam pelos castrados. Residia na ambiguidade sexual da figura do castrado o seu maior encanto. (...) Com ele, mesmo em sociedades controladas e arrigementadas, a fonteira do sexo esbatia-se e possuía uma caução social, artística, culta e cortesã. (...) Mais do que isso: o castrado possuía uma série de características comuns aos dois sexos; e, porventura, partilhava das qualidades dos dois e de nenhum dos limites.
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Isabel Carlos, Expresso




Título Original: Farinelli
Realização: Gérard Corbiau
Argumento: Andrée e Gérard Corbiau
Fotografia: Walther Vanden Ende
Música: Georg-Friedrich Haendel. Riccardo Broschi, Nicola Porpora,
Johann Adolf Hasse, Giovanni-Battista Pergolesi
Vozes sintetizadas numericamente de: Ewa Mallas-Godlewska (soprano) e Derek Lee Ragin (contra-tenor)
Orquestra: Les Talens Lyryques
Direcção Musical: Christophe Rousset
Montagem: Joelle Hache
Interpretação: Stefano Dionisi, Enrico Lo Verso, Elsa Zylberstein, Caroline Cellier, Jeroen Krabbe,
Jacques Boudet, Marianne Basler
Guarda-Roupa Olga Berlutti, Anne De Laugardière
Décors Gianni Quaranta
Origem: França/Itália/Bélgica
Ano: 1994
Duração: 111’
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