FILHA DA MÃE - o 2º de CANIJO é o nosso penúltimo a ele dedicado

4ªf, Sede, 21h30, Entrada livre


O segundo filme de um jovem realizador português confirma alguns traços pessoais, perde-se em pequenas cenas e torna-se perturbante quando finalmente se encontram duas fortes personagens.

A mais evidente afinidade entre "Filha da Mãe" e "Três Menos Eu", o primeiro filme de João Canijo, é o triângulo sentimental. No outro filme um rapaz circulava entre duas raparigas, neste um homem circula entre duas mulheres. Mas em "Filha da Mãe" a relação triangular tem uma maior intensidade (questão física que se deve entender no sentido perturbante da relação entre três corpos) e é também mais generalizada.

Júlia (Lídia Franco) mantém uma relação com Gigi (Miguel Guilherme), que por sua vez tem uma relação com Dalila (Alexandra Lencastre). Na relação mãe-fiha entre Júlia e Maria (Rita Blanco) vem interpor-se Álvaro (José Wilker). Entre os dois triângulos é Júlia o factor comum; mas há outras relações. Por exemplo, o namorado de Maria, Adriano (João Cabral) trafica com Gigi, que para esse fim se vale dos apoios monetários, voluntários e involuntários, de Júlia. É a troca um elemento constituivo de todas as relações? Sim, mas não apenas como comércio sujeito a pagamentos monetários. Cada personagem exige a outra, ou outras, algo mais do que elas supõem poder dar-lhe e a lógica geral da circulação sobrepõe-se aos acordos mútuos - o roubo é uma parte integrante da troca.

Recordar-se-à que no filme anterior de Canijo a introdução de um dos elementos do trio, o rapaz, ocorria pelo roubo de uma cassete numa loja de discos, e que "O Roubo" foi o título inicial deste segundo filme. Independentemente da alteração do título, o roubo é uma forma de transacção marcante em "Filha da Mãe", sublinhada pela presença de mais duas personagens, dois cúmplices de Adriano, Lázaro (Diogo Dória) e Victor (Adriano Luz).

A insistência é mesmo excessiva, porque tende a focalizar a noção do roubo em actividades publicamente marginais às relações sociais admitidas, desviando-se do campo íntimo e afectivo onde ela é dramaticamente mais forte. Torna-se nítido o desequilíbrio entre duas partes do filme, a primeira sendo sobretudo uma crónica das pequenas trocas e delitos, a segunda concentrando-se na relação entre Maria e Álvaro e na consequente exclusão sentida por Júlia e Adriano.

João Canijo é um caso, raro em Portugal, de coexistência do encenador teatral com o realizador cinematográfico. Entre as duas actividades um forte denominador comum é o trabalho com os actores. Neste caso, a relação estabelece-se também pela presença explicita no filme de cenas de uma representação teatral, observadas directamente pela câmara cinematográfica ou através de re-produção em vídeo. É uma cena primitiva, a de Clitemnestra e Electra, quer num sentido mitológico (uma das cenas fundadoras do teatro europeu, se recuarmos até à “Oresteia" de Ésquilo), quer no sentido psicanalítico da relação entre a mãe e a filha da qual a primeira excluiu o pai.

É óbvia, demasiado óbvia, a duplicação das cenas; começamos, por exemplo, por ver Júlia ensaiar uma cena com a sua filha, e veremos depois que no teatro o papel é interpretado por Dalila, de facto rival de amor de Júlia, como Maria tentará rivalizar com a mãe na relação com Álvaro. A teatralidade é redundante e mesmo gratuita, no modo como os actores se exibem em gesticulações estereotipadas ou poses grandiloquentes. Apenas na sequência final, e por uma opção bem simples mas coerente (o antepenúltimo plano, "desfecho" da acção, é filmado exactamente como uma cena em cima do palco, com um cenário de três paredes), as relações entre as personagens e a representação teatral se tornam equivalentes e não apenas duplicação. Mas entretanto ocorrera, depois das cenas caricaturais da primeira parte, uma mudança: a efectiva entrada em cena de uma pers¬nagem, Álvaro, e de um actor, José Wilker.

"Filha da Mãe" é, para além das conotações da expressão em linguagem corrente, aquela que não é filha de "pai e mãe", por aquele estar ausente. Para Maria, esse ausência não pode deixar de ser sentido como um roubo por parte da mãe - ela retirou-lhe o pai. Para Álvaro, regressado de um passado obscuro e de paragens distantes, a recusa de Júlia em apresentar-lho o filho (ou filha) de ambos, aquele de que ela estava grávida quando Álvaro partiu é outro roubo – ela apossou-se sozinha da sorte do filho de ambos (abortou, diz).

É Maria filha daquele pai? Nunca o saberemos, elemento fundamental da perturbação e intensidade da segunda parte, quando enfim o filme se concentra nas relações entre Maria e Álvaro, nos contraditórios receios e desejos de posse de outrem, no sentimento de Júlia e Adriano de terem sido roubados.

Como segundo filme, Canijo fez dois, o da primeira e o da segunda parte. Seguindo a ordem cronológica, o interessante é então o seu terceiro filme, de que o segundo foi um esboço caricatural.
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Augusto M. Seabra, Público, 4/05/90


ENTREVISTA A JOÃO CANIJO E A RITA BLANCO
Saguenail - A minha primeira pergunta é sobre o significado (tanto no TRÊS MENOS EU como na FILHA DA MÃE) duma ficção que acaba numa casa, num cenário muito particular, iso¬lado do mundo...
João Canijo - No TRÊS MENOS EU, por razões de produção: não havia dinheiro para mais. E neste porque convinha fechar aquilo. O filme começa duma maneira cómica e, de repente, deixa de ser cómico. Isso é de pro¬pósito.
S. - Sim, mas apesar de tudo há uma escolha do lugar. Nos dois filmes constata-se uma oposição entre um meio urbano (a cidade é identificável) e um lugar isolado, um sítio fora de qualquer sitio...
J. C. - Sim, mas a oposição não é essa. É antes entre meio com gente e meio isolado.
Regina Guimarães - Tu lá sabes... Mas a impressão que fica é - eu iria mais longe ¬- de meio próximo da natureza. No TRÊS MENOS EU é o mar e neste último, talvez com menos presença, é a terra. As pessoas vêm à janela e vêem vinhas...
J. C. - As ideias são diferentes. Se calhar vai dar ao mesmo, mas vou tentar explicar. No TRÊS MENOS EU era uma zona de praia, fora da estação balnear, onde não havia ninguém. Na FILHA DA MÃE é uma casa isolada, dum tipo que outrora lá viveu e que volta passados vinte anos. Regressa a uma casa completamen¬te abandonada que ele anda mais ou menos a pintar e a restaurar. Era para ser um espaço tão abandonado quanto ele. A única coisa que existia era ela, quando chega. (...)
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Saguenail, Regina Guimarães, Rui Madeira, A Grande Ilusão, n. º11

(ler a entrevista - muito longa - na íntegra)


Realização: João Canijo
Argumento: João Canijo, Olivier Assayas, Teresa Villaverde, Paulo Tunhas e Manuel Mozos
Direcção de Fotografia: José Luís Carvalhosa
Montagem: Sabine Franel
Interpretação: José Wilker (Álvaro), Rita Blanco (Maria), Lídia Franco (Júlia), Miguel Guilherme (Gigi),
Diogo Dória (Lázaro), João Cabral (Adriano), Adriano Luz (Victor), Alexandra Lencastre (Lilita),
Elsa Bruxelas (Mula), Vasco Sequeira (Policia), Manuel João Vieira (Gangster)
Origem: Portugal
Ano: 1989
Duração: 105’
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