Vertiginoso, explosivo, globetrotting e absolutamente obrigatório. CARLOS, de Olivier Assayas, é 2ªf, 21h30, IPJ.

Sócios 2€. Estudantes 3,5€, Restantes 4€

A partir da história verídica de Carlos, "O Chacal", o francês Olivier Assayas assina um épico de câmara, nervoso e urgente, sobre uma década ainda hoje mal compreendida.

Se formos a ver bem as coisas, Carlos, "o Chacal", é capaz de ter sido um dos terroristas mais desastrados de sempre. Sim, matou gente e operação operações espectaculares. Mas fê-lo em nome não de uma causa, não de uma conta bancária, mas sim em nome da fama e do reconhecimento. Carlos seria, então, o primeiro "reality-terrorista" da era moderna, uma "premonição" da ideia de Don de Lillo sobre o terrorismo como arte moderna, um narciso que nunca deixou para trás a sua pose de pequeno burguês fascinado com a sensualidade da violência.

É assim que o francês Olivier Assayas vê Carlos, no seu épico de câmara que, para lá do retrato de Carlos como um playboy do crime, equivalente marxista e mercenário dos mafiosos românticos de Scorsese, assina um diagnóstico certeiro das convulsões políticas da Europa dos anos 1970 como resultado de uma insatisfação social canalizada para ideologias contestárias em modo "vamos brincar aos revolucionários". Assayas pinta o meio revolucionário como um "jet-set" solarizado, capitalismo substituído pela retórica anti-imperialista, mas em ambos os casos fascinados pelas posturas arquetípicas do cinema de acção. E, para melhor o fazer, o mais internacional dos cineastas franceses contemporâneos efectua uma síntese do seu cinema anterior, cruzando o fascínio pelo desenraizamento cosmopolita com a sua atenção às vibrações internas dessas personagens desenraizadas. O que daí resulta é um fresco nervoso e urgente, em fuga para a frente, como aliás é exigido pela "fúria de viver" da sua personagem com tanto de volúvel como de calculista, soberbamente habitada pelo venezuelano Edgar Ramírez.

O mais espantoso destas quase três horas é que passam a voar, arrastando o espectador numa viagem surreal por uma década de história mundial ainda hoje mal compreendida; o que é mais admirável ainda é que Assayas tenha conseguido construir um filme compacto e imparável a partir de quase seis horas de televisão (repartidas por três episódios de cem minutos cada), sem trair a história que quis contar nem criar um simples "compacto" televisivo. Bem pelo contrário: "Carlos" é um filme que só "por acaso" foi feito para televisão, e que tem mais a ver com a "nova" televisão das séries americanos como "The Wire" do que com o marasmo em que ainda hoje se pensa a TV em Portugal. É cinema, por onde se quiser vê-lo.
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Jorge Mourinha, Ípsilon


Ilich Ramírez Sánchez, mais conhecido por Carlos, é um combatente revolucionário venezuelano que, nos anos 70/80 levou a cabo alguns espetaculares atos terroristas na Europa, o mais conhecido dos quais o sequestro dos ministros da OPEP reunidos em Viena, em 1975. Com a queda do Muro de Berlim, a implosão da União Soviética e o consequente fim da Guerra Fria, a atividade de Carlos esfuma-se, ao mesmo tempo que, sempre perseguido pelos serviços secretos do Ocidente, tenta refúgio em vários países árabes. Capturado em Cartum, no Sudão, em 1994, de onde é raptado pelos franceses, que o levam para Paris, Carlos acaba julgado em 1997 e condenado a prisão perpétua, pena que, atualmente, cumpre.

Estes são os factos que perturbaram o mundo durante muitos anos, sumarizados em voo rápido para efeitos de contexto. Devem parecer arqueológicos, a esta distância - e, sobretudo, para quem não os viveu e, entretanto, se habituou a tomar Osama bin Laden como emblema do terrorismo do século XXI. Evidentemente, a realidade política na Europa é, hoje, muito diversa da dos anos 70/80. Mas não é possível compreendermo-nos sem o que então aconteceu.

O filme de Olivier Assayas é uma soberana oportunidade de nos aproximarmos dessa compreensão. Antes de mais, o filme dá-nos a ver um momento traumático no seio da esquerda eu¬ropeia, quando muita gente, descrente dos velhos partidos comunistas, se radicalizou numa luta revolucionária armada que depressa se confundiu com terrorismo. Carlos é um produto desse caldo cultural. Estudou em Londres e em Moscovo, tornou-se poliglota e ainda não tinha 25 anos quando se foi oferecer ao líder do braço armado da Frente Popular de Libertação da Palestina. É a soldo dessa organização que leva a cabo os primeiros atentados, incluindo o assalto à reunião da OPEP em Viena. Move-se em território europeu e na sua rede de contactos e pontos de apoio vão estar vários movimentos esquerdistas do velho continente, com destaque para a Alemanha Federal. O filme dá-nos a ver essa teia e até o recorte romântico com que, a partir de certa altura, Carlos se aureola - a boina à Guevara, o olhar sedutor -, como se ele fosse um combatente pela liberdade. Assayas ousa mesmo chegar à erotização da violência (arrepiante - e não apenas no sentido medonho da palavra - a fetichização sexual das armas) e a criar efeitos de suspense que invocam, à boa maneira hitchcockiana, uma empatia do público com o protagonista. Teme¬mos por ele, por exemplo, durante a operação OPEP ou quando os polícias franceses entram pelo apartamento em Paris, desejamos, no íntimo, que ele se safe (até porque a ambiência é cordial, fraterna, musical) - mas eis que a violência rebenta e ficamos paralisados com a ferocidade. Magnífico resultado de um trabalho fílmico onde se quer perceber como foi possível (no fundo, como é que gente decente pô¬de andar por tais caminhos), ao mesmo tempo que não se vira a cara ao horror inteiro.

"Carlos" é um filme épico com um protagonista, mas sem herói. Matiza-se a personagem principal com uma gama de cambiantes que a excelente interpretação de Édgar Ramírez e a extensa duração tornam possíveis (e estamos em presença de uma versão curta, esperemos poder ver em Portugal a versão integral de mais de cinco horas!). É um filme onde a política internacional aparece como uma coisa viscosa, despida de dignidade. É uma tragédia onde um homem sem escrúpulos é conduzido por vários poderes em presença que jogam com ele (e com quem ele joga) num eixo que vai de Tripoli a Beirute, a Damasco, a Bagdade, a Moscovo e a Berlim. Um homem que, um dia, se apaga, quando os franceses lhe deitam a mão - e já estava reduzido a has been. Daí que o desfecho do filme, brutalmente seco e abrupto, seja como que uma pedra sobre o assunto e a personagem. Como quem diz que aquilo acabou e acabou mesmo. Com um suspiro de alívio.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso


Nasceu como mini-série, chega a Portugal como filme. O verdadeiro Carlos diz que a obra lhe mancha a reputação.

De hábitos nocturnos, solitário e fã de carcaças de animais. Falamos de chacal, o bicho de quatro patas. Já chacal, a pessoa, é designada como alguém que explora os desgraçados, garantem os dicionários. O terceiro chacal é Ilich Ramírez Sánchez, o terrorista venezuelano, baptizado de "Carlos, o Chacal", graças ao jornal inglês "The Guardian". Em 1975, depois de Carlos ter assassinado dois detectives franceses e um informador em Paris, encontraram um saco que pertencia ao terrorista na casa do amigo da ex-namorada do terrorista. Ainda connosco? Com medo da polícia, Barry Woodhams, o tal amigo, telefonou para o jornalista do "The Guardian" que revistou o saco e viu o livro "O dia do Chacal", de Frederick Forsyth numa prateleira ali por perto. Concluiu logo que Carlos o tinha lido. E assim nasceu "Carlos, o Chacal".

Nesta altura, Ilich Ramírez Sánchez já era conhecido mas demoraria mais de 20 anos até ser preso. O mercenário teve como pai um marxista convicto que baptizou os filhos de Vladimir, Ilich e Lenine, ou seja, o nome completo de Lenine. De convicções fortes, Ilich juntou-se à juventude comunista e mais tarde, com 24 anos, ingressou na Frente Popular para a Libertação da Palestina. Nesta época já tinha deixado Caracas e vivia em Londres onde fez a primeira vítima, ao assassinar o empresário Joseph Shieff, presidente da Marks & Spencer e vice-presidente da Federação Sionista do Reino Unido e Irlanda.

Chacal torna-se famoso mundialmente aos 26 anos ao raptar 11 - atenção não foram dois nem três - foram 11 ministros dos países membros da OPEP que estavam reunidos em Viena. Estávamos em 1975 e depois deste feito, conseguiu escapar. Foi o início da ofensiva. Bombas em farmácias, atentados, sequestros de aviões passaram a ser o seu dia-a-dia. Na década de 70 e 80 era o criminoso mais procurado.

"Carlos", o filme Olivier Assayas, realizador de "Paris, je t''aime", decidiu fazer um retrato da vida do terrorista. Criada como uma minissérie para a televisão francesa, "Carlos" tem a duração de cinco horas, mas a Portugal chega a versão com 2h45. O protagonista Édgar Ramírez, que conquistou rasgados elogios da crítica, até recebeu uma carta do verdadeiro Carlos, a cumprir as três penas de prisão perpétua em França. Ao contrário dos críticos, o revolucionário não gostou do filme. Carlos disse à AFP que o filme tem muitas falsificações e que lhe vai manchar a reputação. Hugo Chávez, presidente da Venezuela, ainda não falou sobre o filme, mas nunca escondeu a sua admiração por Carlos ao compará-lo a Che Guevara. O realizador Olivier Assayas compreende explica o fascínio por este homem. "Na década de 70, eles eram militantes, faziam aquilo porque acreditavam que depois da revolução o mundo seria melhor. Agora, a al-Qaeda usa miúdos alimentados à base de ideias absurdas e míticas de religião e com promessas de um paraíso depois da morte. Eles não são soldados, são mártires. Algo que Carlos nunca consideraria", disse ao "The Guardian".
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Vanda Marques, Jornal I



Aconselha-se a versão dita "televisiva" de "Carlos" [JÁ DISPONÍVEL EM DVD], onde a sensação de algo em movimento, de marcha do Tempo e da História, é mais física e inexorável. É esse o tema de "Carlos", na verdade - na versão cinematográfica o condensado corre contra o tempo e por isso corre menos nele o tempo. E é aí que "Dreams never end", canção dos New Order, entra: música de perda, de melancolia. Ouvimo-la em duas sequências, à primeira vista excêntricas, que pontuam este puzzle sobre o terrorismo das últimas décadas do século XX: o corpo de Edgar Ramírez nu, acariciando-se, ao espelho, o canto de galo e o canto do cisne do terrorista.

É que "Carlos" é também um filme sobre a(s) estratégia(s) de sedução de um homem, sobre a sensualidade como arma para chegar ao topo. É um filme sobre um corpo que se gasta nesse excesso, não deixando de se exibir na orgia (momento Robert deNiro para Édgar, que teve de engordar para a segunda parte do filme). E o que é ainda notável? A forma como Olivier Assayas utiliza a base da "co-produção" internacional em seu favor - actores de diferentes nacionalidades interpretam personagens dessas nacionalidades, descartando-se, para os diálogos, o inglês da convenção -, fazendo assim da forma o espírito do filme. E a própria matéria sensual de "Carlos".
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Vasco Câmara, Ípsilon


ENTREVISTA AO REALIZADOR

Qual é a origem deste filme, que é quase um folhetim?
Nasceu tudo da ideia de um produtor do Canal+. O projeto não me interessou logo: parecia-me muito transversal e estava demasiado centrado na prisão de Carlos. Ora, eu acho que a história dele só faz sentido se estiver completa, com um princípio, um meio e um fim. Comecei a imaginar um filme e quando meto de facto o nariz no assunto dou-me conta que era impossível fechar aquela história num telefilme de 90 minutos. Peço um segundo filme ao Canal+, eles aceitam.
Aprofundo o trabalho, 'estico a corda': peço um terceiro filme. Eles voltam a aceitar. Gosto da estética do romance-folhetim, até fiz uma tese de mestrado sobre o tema, mas confesso que essa ideia, que tem uma 'boneca russa' lá dentro, nunca me veio à cabeça para este filme. O que me interessava eram os factos reais e a possibilidade de trabalhar com uma narrativa frontal. O argumento veio de um ponto de vista jornalístico. Ou seja, quando eu refletia sobre o filme, não inventava cenas, encontrava-as. Em fait-divers.

Sentiu-se a fazer cinema na TV?
Acho que a definição é justa, sim. A primeira regra que me impus foi criar um 'cordão sanitário' entre TV e cinema. Isto passou por dizer 'não' a quase tudo o que vinha do Canal+. Ou seja, os técnicos do filme são os meus colaboradores habituais. Quando as filmagens começaram dei-me conta que "Carlos" tinha mil desenvolvimentos possíveis. A máquina já não podia voltar para trás. Era preciso pensar num filme de 5 horas e meia, filmado em scope, em 35mm. E assim foi. "Carlos" foi produzido com um orçamento muito apertado para as suas ambições [18 milhões de eu-ros], tendo em conta a amplitude do projeto. Sem uma lógica de produção de cinema independente, jamais teria tido êxito. Uma série de TV normal teria custado o dobro. No cinema industrial, o quíntuplo.

A experiência não se repetirá...
Porque "Carlos" é um 'filme impossível’. É um protótipo sem nenhum... como dizer... sem 'valor de uso', porque não se reproduz. Vem de um gesto de bricolage que é contraproducente à lógica de fabricação da TV.


Carlos" devolve-nos o mito do terrorista ou, pelo contrário, põe a nu a sua figura através de uma persona¬gem de ficção?
O mito de Chacal não me interessava. É muito mais produtivo pensar de outra forma: como é que esse mito se construiu a partir da história daquele homem? A existência de Carlos é feita de aventuras, excessos, atos de loucura e de destruição e era preciso mostrar dele todas as suas facetas, sem medo. E se no fim do filme ficamos com uma espécie de natureza mítica residual de Carlos é porque essa natureza nasceu de uma acumulação de factos, não de uma invenção mediática. Se eu tivesse voto na matéria, o filme não se chamava "Carlos". Chamava-se "Ilich Ramírez Sánchez".

Compreendeu a militância de Carlos com este filme?
Não. O seu engagement é, no mínimo, opaco. Aos vinte e poucos anos ele está nas colinas da Jordânia, de metralhadora na mão no movimento palestiniano. Paixão pela revolução? Ligação ao KGB? A questão é insolúvel e o filme não lhe responde. Filmei por isso um jovem militante do Terceiro Mundo com as convicções de esquerda da sua geração e da sua época e que se bate no terreno. Creio que Carlos não é nem nunca foi alguém com uma consciência política vasta. Ele executa operações, só isso. Excluído por Wadie Haddad da Frente Popular para a Libertação da Palestina depois do fracasso da operação em Viena, excluído dessa causa, restou-lhe tomar-se um mercenário de países autoritários, um agente secreto cada vez mais cercado depois do colapso do Bloco de Leste.

Carlos viu o filme?
Essa história é longa... Bom, tenho que dizer que não sei ao certo em que estado Carlos está hoje. Preso há 17 anos, receio que viva numa espécie de realidade paralela. Carlos esteve ativamente desconfiado do projeto desde o início. Convenceu-se que este filme lhe seria hostil. Leu mais tarde o argumento. Disse numa entrevista que havia erros pontuais: nunca fumou cigarros, por exemplo, só charutos. Coisas da ordem do detalhe. O Canal+ esperava ser chamado à barra do tribunal, mas os processos não apareceram.

Se calhar ele gostou do que viu...
Duvido... A sua relação com o filme deve ser difícil, ambivalente, e digo isto para ser otimista. Deve ser um embaraço para ele rever a sua juventude. Há coisas que estão muito próximas da realidade histórica. Meses depois, já o filme estava em DVD, Carlos falou finalmente dele numa entrevista a uma revista alemã. Tinha ficado descontente e incomodado com as cenas de nudez. Tomou isso como uma agressão indigna de Ilich Ramírez Sánchez. Sobre o filme, não disse mais palavra. Mas isto prova uma coisa: de certa forma, Carlos continua dependente da imagem que ele próprio criou.
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Francisco Ferreira, Expresso




Título Original: Carlos
Realização: Olivier Assayas
Argumento: Olivier Assayas, Dan Franck, Daniel Leconte
Montagem: Luc Barnier e Marion Monnier
Fotografia : Yorick Le Saux e Denis Lenoir
Interpretação: Édgar Ramírez, Alexander Scheer, Alejandro Arroyo, Ahmad Kaabour,
Talal El-Jordi, Juana Acosta, Nora von Waldstätten, Christoph Bach

Origem: França/França
Ano: 2010
Duração: 163’
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