14 de Maio, A CAÇA, Thomas Vinterberg (2012) | IPDJ | 21:30!



DIA 14 - A CAÇA, Thomas Vinterberg, Dinamarca, 2012, 111’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: Jagten
Realização: Thomas Vinterberg 
Argumento: Thomas Vinterberg & Tobias Lindholm
Director de fotografia: Charlotte Bruus Christensen
Montagem: Anne Østerud Janus Billeskov Jansen
Música: Nikolaj Egelund
Interpretação: Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Annika Wedderkopp, Lasse Fogelstrøm, Susse Wold, Anne Louise Hassing, Lars Ranthe e Alexandra Rapaport
Origem: Dinamarca
Ano: 2012
Duração: 111' 

SINOPSE
Depois de um duro divórcio, Lucas, 40 anos, tem uma nova namorada, um novo trabalho e está a tentar recuperar a sua relação com o filho adolescente, Marcus. Mas uma mentira que se espalha como um vírus vai mudar a vida de Lucas. A desconfiança abate-se sobre a pequena comunidade e Lucas é obrigado a lutar para salvar a sua dignidade.



CRÍTICA:
Christian, o filho de "A Festa", de Thomas Vinterberg (1998), aparecia no filme como quem entrava num western. Vinha de longe, “anjo vingador”, para acertar contas com o que a família lhe fizera.
À mesa de uma festa de aniversário, em “duelos” intervalados por um intermezzo pianissimo, procedia ao jogo de massacre: “matar o pai” que o violara, e à irmã gémea que entretanto se suicidara, ao longo da infância.
O Lucas de "A Caça" é também um desses homens do cinema de Vinterberg: foi desapossado pelo grupo.
O pai diz a Christian, em "A Festa", que (lhe) fez o que fez porque era isso a única coisa que ele, Christian, sabia fazer. Condenava-o à infância. Fixava-o no tempo. Ele nunca mais pôde crescer para estar à altura daqueles rituais com que os civilizados explodem em violência.
Lucas, professor num jardim de infância em "A Caça", tem 42 anos, vive sozinho numa casa, está em litígio com a ex-mulher e só pode ver o filho ao fim-de-semana (o filho tem pena dele por isso). As crianças tratam-no como o bom gigante que é - e é o corpo de Mads Mikkelsen. É como se fosse uma delas. O que faz de Lucas homem-criança, figura em perda, emasculada. Quando Klara, a menina, se lembra de dizer que viu a “pilinha” de Lucas a apontar para cima e a mentira se espalha pela cidade, isso apenas explicita de forma brutal uma situação que já era de solidão. Na caça às bruxas que se desencadeia a seguir, Lucas, tal como Christian, vai ser “violado”. Lá voltamos a ter, como num western, o homem sozinho na paisagem.
Entre "A Festa" e "A Caça" passaram 14 anos e nada de relevante, cinematograficamente falando, veio de Thomas Vinterberg. Houve inclusivamente uma experiência americana, "O Amor é Tudo" (2003), com Joaquin Phoenix e Claire Danes, e não era de facto nada. O cineasta tem dito que entre 1998 e 2012, fundamentalmente, andou a tactear: não sabendo lidar, profissional e pessoalmente, com o que lhe acontecera, com a aclamação que rodeara o filme que estampara antes do genérico o certificado do Dogma 95 - o conjunto de preceitos puritanos e autopunitivos com que Lars von Trier, que chefiava o bando, & Cia. anunciaram a purificação. Foi como se, tendo irrompido com um pico ("A Festa" é, para alguns, o melhor do Dogma 95 e até Lars deve achar isso porque o repetiu na primeira parte de "Melancolia", em 2011), Vinterberg tivesse acelerado o fim da festa. Ficou a expiar a fama de wonder boy - numa entrevista ao diário britânico Guardian assumia que por essas alturas o Dogma 95 já era só estilo.
Há algo de regresso, então - à família, ao grupo, como habitat de predação. E de ajuste de contas - para saber onde é que se está enquanto cineasta. Está num sítio diferente.
Na altura do Dogma, e por causa do Dogma, o seu cinema tomava parte activa no roleplaying de contornos sadomasoquistas (para sermos gongóricos: é como se "A Festa" ambicionasse fazer o remake de Fanny e Alexander, de Bergman, versão S & M). Será interessante rever esses filmes para perceber se, descontando a operação de marketing que se intrometeu na purificação, sobrou, como sobra em A Festa, uma intensa energia lúdica. E foi um pagode a patifaria: família em jogo de massacre, criados a presenciarem a cena, a câmara a atiçar o fogo e a atirar-lhes com os planos para melhor os queimar vivos... Vinterberg tanto assustava as personagens como um fantasma como se transfigurava em ghostbuster e castrava os devaneios. Em "A Caça" ele despe o latex mas calça luvas: mantendo-se a pulsão autodestrutiva (sobretudo) dos seus homens, trabalha com delicadeza o risco de arrombamento - é curioso que o filme tenha estreado em Cannes no ano de "Amor", de Michael Haneke, filme que está sempre a negociar a sua intromissão na intimidade das personagens.
É verdade que nada nos mostra de novo (nada que Lang, Peckinpah, Wyler, ou... ou... não tivessem mostrado) sobre a dinâmica dos grupos, sobre a forma como uma mentira passa a constituir a (nova) verdade de uma identidade ou sobre a forma como na mais civilizada das comunidades pode germinar o medo que dá origem à intolerância e que se estatela no fascismo.
Mas há coisas decisivas. Com material que podia fechar-se numa ilustração “casos da vida”, Vinterberg trabalha contra um programa de “exemplaridade”. Meditação outonal ("A Festa" tinha energia de Verão) que não deixa ilusões sobre a derrota social de Lucas, personagem mais ansiosa pelo compromisso do que Christian, agita-se, palpita, acende-se sempre que se aproxima da intimidade. Como se reagisse organicamente a um “fenómeno”. Uma dessas matérias inexplicáveis de luz e de sombras é Mads Mikkelsen.

Vasco Câmara, Ípsilon






ENTREVISTA A THOMAS VINTERBERG E MADS MIKKELSEN


Antes de começar a trabalhar num novo filme, vejo sempre o Fanny e Alexander do Ingmar Bergman”, diz o dinamarquês Thomas Vinterberg. “É uma espécie de ritual.” O realizador fala de uma forma um pouco afectada, dando a sensação de se preocupar muito com a percepção que podemos ter dele. Mads Mikkelsen, actor, transmite uma imagem completamente diferente. E ri muito — mesmo se ao lado de Vinterberg se mantenha reservado.
A Caça é a primeira colaboração entre ambos. Aí Vinterberg traça o retrato de uma pequena comunidade que é abalada quando, um dia, uma menina Iança a suspeita de ter sido abusada sexualmente por um simpático educador de infância Lucas (Mads Mikkelsen). Vinterberg e Mikkelsen explicam nesta entrevista as dinâmicas de uma perseguição colectiva e o que tanto os fascina nos anti-heróis teimosos — mas também figuras (evoque-se aqui A Festa, o filme mais conhecido de Vinterberg) de alguma forma emasculadas ou ameaçadas pela castração.
Ambos parecem ter uma predilecção por figuras masculinas obstinadas, que nunca desistem, custe o que custar.
Thomas Vinterberg: Talvez tenha a ver com o facto de isso fazer parte da minha personalidade. Dizem-me muitas vezes que sou extremamente teimoso. No entanto, no filme, Lucas (Mads Mikkelsen) é também bastante bondoso e civilizado, de forma quase idealista. É um homem muito “dinamarquês”, retratando, no fundo, um escandinavo moderno. É afectuoso, amável, prestável e humilde. Faz tudo o que lhe pedem. Deixou-se espoliar pela ex-mulher. No fundo, é como se estivesse castrado.
Mads Mikkelsen: Partindo desta situação de conflito, interessou-nos desenvolver a questão do que significa ser um homem. Por exemplo, é muito catártico quando Lucas fica tão furioso que se passa. Queríamos descobrir como consegue manter a dignidade sem se tornar violento. Trabalhámos juntos o argumento e penso que o Thomas adaptou o papel a mim.
T.V.: Originalmente, o Lucas era muito mais masculino, um homem taciturno que usava sempre roupas de caçador. Mas cedo tivemos a sensação de que deveríamos dar-lhe uma imagem mais sofisticada. O Mads, este homem muito viril, trouxe para o projecto toda a sua beleza musculada, e resolvemos juntos transformar a personagem num modesto educador de infância. Esforçámo-nos sempre por não o elevar a mito, por ancorá-lo firmemente na realidade. O Mads é um especialista nesse capítulo. Procura sempre respostas. “Porque é que eu faço isto?” “Poderia comportar-me de outra maneira?” “Deveria vestir isto ou aquilo?” Estava sempre a colocar-me as mais diversas perguntas sobre cada cena ou a inventar novas falas.
M.M.: É verdade. Essas falas ou esses improvisos ajudam-me a conhecer realmente a personagem e a enriquecê-la com detalhes. A personagem de Lucas sempre me intrigou, mas também a forma como os outros reagem a ele. As pessoas são vingativas. Quando ele dá um sopapo a um parvalhão no supermercado, o público bate palmas. E perguntamo-nos: “Porquê? Onde é que acaba a civilização?”
Sim, onde?
T.V.: Possivelmente, onde acaba o amor ao próximo.
Esse foi um pensamento determinante no filme?
T.V: Não conscientemente, pelo menos de início. Depois de A Festa ter suscitado burburinho, recebi durante muito tempo os mais diversos pedidos das pessoas para mostrar o outro lado dos casos de abuso tratados no filme. Lembro-me de que, numa noite de Inverno de 1999, me bateu à porta um homem, um pedopsicólogo dinamarquês, com uma quantidade de papéis debaixo do braço. Falou-me das fantasias das crianças e queria mostrar-me um relatório. Utilizou conceitos como “memória recalcada” e — o que foi ainda mais perturbador — falou da sua teoria de que “o pensamento é um vírus”. Não o mandei entrar nem li os papéis. Voltei para a cama e nunca mais me lembrei disso. Só dez anos depois voltei a tropeçar nos documentos e li o relatório. Fiquei chocado e fascinado, e tive a sensação de que havia ali uma história que tinha de ser contada: a história de uma moderna caça às bruxas.
Essa caça às bruxas também se revela no facto de os conhecidos, os vizinhos e os amigos de Lucas reagirem de modo muito radical e limitado às acusações que lhe são feitas por uma criança, embora elas nunca sejam provadas. Não podemos confiar na comunidade?
T.V.: Hoje, todos temos muito medo. Habituámo-nos a ser cautelosos, ao ponto de já não permitirmos um acesso natural à proximidade física. Por princípio, os adultos já não podem lidar livremente com as crianças. O lado bom é que isto torna as coisas mais difíceis para os criminosos. Mas o que se perde nesta sociedade controlada e medrosa é o contacto físico de que todos precisamos, e muito. Cresci numa comuna, nos anos 70, entre gente nua. Foi maravilhoso. Tudo parecia cor-de-laranja, quente, inofensivo. Nesse tempo, um professor podia pegar ao colo numa criança a chorar, e eu até podia sentar-me ao colo de uma pessoa nua! Hoje, seria impensável. Eu sei que há boas razões para isso, que muita gente sofre por ter sido vítima de abusos e que temos de proteger as crianças. Mas também se perdeu alguma coisa. Acho que, com o tempo, o quente cor-de-laranja se transformou num azul cada vez mais frio. Para mim, isso é o mais importante nesta história: a perda da amizade e do amor. Uma comunidade em que todos têm medo nunca pode ser verdadeiramente forte.
M.M.: O filme aborda também a enorme velocidade a que, actualmente, as acusações se propagam, como se fossem vírus, e isso também tem a ver com a construção da identidade condicionada pelo exterior. No mundo actual, em que a comunicação se tornou incrivelmente mais simples, as pessoas são moralmente avaliadas e julgadas em todos os canais. E incontrolável. O pânico e a histeria que esta acusação desencadeia dão cabo da vida de Lucas. As histórias que contamos sobre os outros transformam-se rapidamente na sua identidade. Os habitantes da cidadezinha do filme rotulam Lucas e constroem assim uma identidade dele a que ele nunca mais poderá fugir. Acho isto interessantíssimo — e assustador.
A comunidade do filme parece conviver bastante bem com a mentira, como se não estivesse nada interessada na verdade e a mentira a unisse ainda mais.
T.M.: Talvez tenha razão. Na vida real, é possível que isso aconteça. Dá às pessoas uma razão de viver, uma coesão reforçada contra o inimigo. Precisamos sempre de inimigos. Mas espero que as minhas personagens não sejam tão mesquinhas. Considero todas as minhas personagens inocentes. Todas: a menina, a mãe. São puras e afectuosas — seres humanos que partilham uma boa vida. Até que algo que vem de fora lhes rouba a pureza. E uma perda da sua inocência, como num conto de Hans Christian Andersen ou também na minha própria vida, afinal.
O paradoxal é que Lucas é acusado de um comportamento imoral, mas é o único que se mantém sempre moralmente impoluto.
M.M.: É verdade mas, neste filme, as pessoas não são monstros. Embora as coisas que fazem sejam condenáveis, sim. Mas, na realidade, são gente simpática, de coração puro, a quem algo simplesmente retira o discernimento.
A propósito de coração puro, Klara, a criança, talvez não seja a bonequinha inocente que parece ser...
T.V.: Acho curioso a ideia comum de que as crianças não mentem. Mas mentem, e sofrem por isso. Compreendo profundamente esta menina. Acho que ela ama Lucas. Ambos já foram abandonados, na sua vida, por pessoas importantes para eles, e isso une-os. Ela não é uma intriguista maquiavélica, nada disso. Mentiu porque se sentia triste.
Nesta cidadezinha, a mentira propaga-se porque, desde o início, há pouca transparência.
T.V.: A directora d jardim-de-infância comporta-se de forma irracional e com as melhores intenções de proteger a criança, o que não é invulgar. Já li sobre vários casos destes. É incrível o que as pessoas fazem. O que se vê no filme é, em certa medida, um resumo da vida real. E claro que fìzemos muita pesquisa sobre pedofilia e também encontrámos casos em que crianças foram transformadas em vítimas a partir de uma mentira inocente. De resto, essas crianças desenvolvem os mesmos sintomas que as que são realmente abusadas.
Apesar dessa pesquisa, a cena do interrogatório da menina não é muito realista.
T.V.: Eu sei disso. Na vida real haveria outros passos, um outro espaço, várias conversas com pedagogos — peIo menos, assim o espero — e não apenas uma única. Mas condensámos as coisas, em prol da dramaturgia. O interrogatório que é feito no filme é a transcrição de um interrogatório policial. Na realidade, ele seria muito mais assustador. As palavras que o homem diz à criança foram um escândalo. Mas a polícia já melhorou entretanto. Esta transcrição data dos anos 90, e não me pareceu correcto apontar o dedo a pessoas que se esforçam por melhorar.
Nadja, a namorada de Lucas, representa a antítese, como estrangeira, da histeria local.
T.V.: Exactamente. No jardim infantil que os meus filhos frequentaram, as crianças já não podem usar luvas com atilhos, para não correrem o risco de se estrangularem com eles. Não acredito que uma criança tentasse hoje molhar sequer os pés. Estão completamente protegidas, o que é curioso. Nadja vem da Europa de Leste e eu tenho esta ideia nostálgica de que, por Iá, as coisas ainda não estão assim tão mal. Na Europa de Leste as pessoas ainda fumam ao pé das crianças. As crianças ainda se podem sentar ao colo dos adultos.
Quando Nadja, por instantes, duvida de Lucas, isso pretende mostrar como a mentira é contagiosa.
Lucas tem
uma ligação tão forte com os seus companheiros de caça para
que, depois, a sua queda seja mais trágica?
T.V.: Procuro sempre criar um filme à volta do filme, dar às personagens um passado que seja tangível. Quero que as pessoas acabem de ver o filme e digam que conhecem estas personagens. Num ritual de caça é visível a repetição, e espero que também se note que aquelas pessoas se conhecem há anos. E quis oferecer ao público um filme após o filme. Quero que elas se perguntem: o que acontece depois com Lucas? E com os outros?
M.M.: É um pouco como um filme subterrâneo, sobre a vida secreta das pessoas. O que é que elas não contam, o que é que se passa sob a superfície? E o “telhado” do filme é a relação delas com Deus.
E quanto à cena na igreja, na véspera de Natal? Pretende mostrar a hipocrisia da Igreja ou trata-se apenas de um truque dramatúrgico, para reunir todas as personagens num só lugar?
T.V.: É sobretudo um truque dramatúrgico. Queria que o filme fosse um bocadinho “cor-de-laranja”. Submarino (2010), o meu filme anterior, é muito azul, muito sombrio. Eu queria calor, e por isso pus as crianças a cantar na igreja. Mas também queria que todos estivessem juntos. A igreja é o único sítio de onde ninguém pode ser expulso. Para mim, isso foi determinante para fazer esta cena. Ficou muito sentimental, mas é a minha preferida.
M.M.: E se a rodámos vezes sem conta (ri)...
T.V.: E verdade... Essa cena foi meticulosamente preparada, mas filmámo-la de muitos ângulos diferentes. O Mads teve de passar e voltar a passar pelos mais diversos estados de espírito, da determinação ao colapso e da fúria ao alívio. Chorou durante oito horas seguidas, o dia inteiro, da mesma maneira em cada take. Nunca antes tinha visto um tal profissionalismo.
O pastor parece ser o único que não sabe de nada da história.
T.V: Se eu tivesse sido criado em Itália, como católico, teria de lançar lama sobre o padre. Mas fui criado com bons cristãos e tentei crer em Deus, embora não acreditasse que viesse a consegui-lo. Portanto, fui criado como ateu socialista. Mas a minha mulher estuda Teologia e tenho muita curiosidade em relação à religião e ao seu efeito sobre as pessoas.
Surpreendentemente, o final tem um tom optimista.
T.V.; Eu quis voltar  a unir aquelas pessoas, porque tive saudades da sua concórdia anterior. O final não está claramente definido, mas talvez se aproxime da verdade. Todavia, fica uma pequena interrogação, pois aquilo que um dia foi dito jamais pode ser apagado.
Foi um dos fundadores do movimento Dogma 95. Vislumbra uma nova geração de realizadores dinamarqueses que tornam a rebelar-se?
T.V: Sem dúvida. Actualmente, a Dinamarca tem um panorama e uma indústria cinematográfica muito pujantes, em grande parte originária da Danske Filmskole, em Copenhaga. A existir um denominador comum, é certamente aproveitar as limitações e convertê-las em inspiração. No fundo, o Dogma 95 foi uma actualização deste conceito. Hoje, na escola de cinema, as pessoas continuam a odiar o sistema. E eu faço parte dele, quer queira quer não. As pessoas não me vão dizer isso na cara, porque são cobardes. Na Dinamarca há bons novos realizadores, com carreiras impressionantes, e são muitos, para um país tão pequeno! Mas os filmes deles não me impressionam assim tanto. São pouco ousados. São bons filmes, profissionais, mas muito middle of the road.
M.M.: Do que eu mais gostei nos filmes Dogma foi daquela energia de rock’n’roll, aquela forma livre de trabalhar. Acho que o tempo ensinou muita coisa a toda a indústria dinamarquesa, incluindo aos actores. Mas fico contente por também existirem outros géneros.
Mads Mikkelsen também já trabalhou vários géneros...
M.M.: Sim. Gosto de alternar entre os chamados filmes de capa-e-espada e as composições de (ri). Antes de ficar velho para isso, gostava de fazer filmes de acção. Repare, aos oito anos eu ainda não via dramas franceses nem obras-primas italianas. Não, cresci a ver filmes de acção. E também nunca sonhei tornar-me actor. Mas queria ser aquele pirata que via nos filmes quando era pequeno. Ou aquele espadachim. Em todo o caso, alguém que vive alguma coisa.
Sofre da síndroma de Peter Pan, enquanto actor?
M.M.: Certamente, mas para as minhas colegas é bastante pior. Em princípio, a carreira delas acaba aos 22 anos e só recomeça a partir dos  50, porque estes são os papéis femininos que existem. Embora nós, homens, não estejamos tão sujeitos à pressão do tempo neste ramo, a nossa maior preocupação é a boa forma física. Para poder interpretar uma personagem num filme de acção temos de poder dizer: sim, ainda estou em forma, ainda consigo saltar aquele ribeiro.
Thomas, alguma vez passou por uma crise de criatividade? Os seus filmes depois de A Festa estiveram longe de ser êxitos, por exemplo O Amor é Tudo ou Querida Wendy...
T.V.: Quis fugir à histeria que A Festa provocou. Fiz muitas experiências nesses filmes porque tinha a sensação de ainda não ter esgotado o espaço em que me encontrava. Era como se precisasse de vasculhar cada centímetro quadrado de chão para perceber onde estava. Foi uma experiência fantástica, porque caminhei todo o tempo sobre uma fina camada de gelo. Mas é claro que houve também uma ou duas vivências dolorosas. No fundo, o enorme êxito de A Festa não me trouxe grande coisa. Do ponto de vista artístico, fez-me perder o rumo durante algum tempo. Sentia-me como um futebolista que marca um golo fabuloso, cujas imagens são repetidas vezes sem conta. Entretanto, procuro reencontrar a pureza e a vulnerabilidade do filme com que conclui o curso de realização [Last Round], aquele estádio em que as especulações sobre o futuro não tinham qualquer cabimento e eu apenas me esforçava por olhar o mais seriamente possível para pessoas em determinadas situações. Para alcançar isso, não posso pensar em mim próprio como senhor da minha carreira.
O que o atrai na realização e também na produção?
T.V.: Realizar e produzir filmes é uma experiência fervilhante. A combinação da logística quase militar do todo com os pequenos momentos sem rede com os actores é uma vivência em que sou viciado. Sempre gostei muito da rodagem, mas devo reconhecer que sei valorizar cada vez mais a fase da escrita. Talvez porque, a pouco e pouco, vou envelhecendo.
Está a escrever algum filme novo?
T.V Eu e o Tobias Lindholm, com quem escrevi A Caça e também o Submarino, resolvemos continuar a nossa colaboração. Neste momento estamos a escrever um filme que celebra o consumo de álcool. Além disso, estou a trabalhar num projecto sobre a maravilhosa e Iouca comuna em que cresci, antes dos frios anos 80, e em mais duas ou três coisas. Espero escrever algo com o Tobias que nos mova. E que me meta medo. Espero ter coragem artística.
Alexandra Zawia, Ípsilon, 8/3/13

 


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