16
DE SETEMBRO || 21H30 || IPDJ
O SONHO DE WADJDA
Haifaa Al-Mansour
Arábia
Saudita/Alemanha, 2012, 98’, M/12
FICHA
TÉCNICA
Título Original: Wadjda
Realização e Argumento: Haifaa
Al-Mansour
Montagem: Andreas
Wodraschke
Fotografia: Lutz Reitemeier
Música: Max Richter
Interpretação: Reem Abdullah,
Waad Mohammed, Abdullrahman Algohani,
Origem: Arábia Saudita,
Alemanha
Ano: 2012
Duração: 98’
PRÉMIOS
BAFTA - Nomeação para Melhor Filme Estrangeiro
Festival do
Dubai - Prémio Muhr Arab Melhor Atriz & Melhor
Filme
Festival de
Durban - Melhor Primeiro Filme
Festival de
Friburgo - Prémio do Público
Guild of German
Art House Cinema - Prémio da Liga – Ouro
Festival de
Gotemburgo - Prémio Dragon do Público Melhor
Longa-metragem
Festival de Los
Angeles - Prémio do Público Melhor Filme Internacional
Festival de Palm
Springs - Realizadores a Observar
Festival de
Roterdão - Prémio Dioraphte
Festival de
Cinema Noites Negras de Tallinn - Prémio Dom
Quixote Menção Especial & Prémio Netpac
Festival de
Tromsø - Prémio Norwegian Peace Film
Festival de
Vancouver - Primeiro Filme Mais Popular
Festival de
Veneza - Prémio “CinemAvvenire”, Prémio C.I.C.A.E.
& Prémio Interfilm
Fui
até um país distante — o cinema também serve para isso. Um país enorme quase do
tamanho de uma península desértica do outro lado do mar Vermelho, a Arábia
Saudita. E ainda mais distante em usos e costumes, sobretudo em liberdades no
que ao género feminino respeita. Conheci Wadjda, uma rapariguinha de 10 anos que não se conforma a ser
diferente. Ela tem um amigo da mesma criação, naquela idade em que rapazes e raparigas
ainda podem ter algum convívio. E estão sempre a competir. Ele tem uma bicicleta
e ela aposta que seria capaz de andar mais depressa do que ele se tivesse uma
também. Mas uma bicicleta não é coisa para meninas, sobretudo das
bem-comportadas, socialmente aceites. A ambição dela é, assim, coisa pouca —
uma bicicleta —, mas vai desunhar-se para conseguir uma. É claro que o que ela
quer mesmo é coisa muito maior: ser igual a ele.
“O Sonho de Wadjda” é um filme de uma espantosa acuidade no desenho da situação feminina na Arábia Saudita, onde uma mulher não pode conduzir um automóvel, fora de casa deve vestir uma burka negra até aos pés, é normal estar casada aos 15 anos com um marido arranjado pela família, a quem deve obediência. Ele, todavia, pode ter mais do que uma mulher, pois a letra do Corão permite a poligamia. Extraordinário é que as autoridades tenham permitido a uma mulher, Haifaa Al-Mansour, realizar um filme num país onde as salas de cinema são proibidas e onde não há nenhuma tradição de produção (bem diferente do que se passa no Egito, mesmo ali ao lado).
“O Sonho de Wadjda” é um filme de uma espantosa acuidade no desenho da situação feminina na Arábia Saudita, onde uma mulher não pode conduzir um automóvel, fora de casa deve vestir uma burka negra até aos pés, é normal estar casada aos 15 anos com um marido arranjado pela família, a quem deve obediência. Ele, todavia, pode ter mais do que uma mulher, pois a letra do Corão permite a poligamia. Extraordinário é que as autoridades tenham permitido a uma mulher, Haifaa Al-Mansour, realizar um filme num país onde as salas de cinema são proibidas e onde não há nenhuma tradição de produção (bem diferente do que se passa no Egito, mesmo ali ao lado).
“O Sonho de Wadjda” é, por isso, muito mais do
que um filme. É um gesto — e que ninguém se engane com o seu ar afável e
cálido. É de combate e de duro combate que se trata. Como em “Esposas e
Concubinas” de Yimou, em
“Of- fside — Fora-de-Jogo” de Panahi, em “O Destino”,
de Chahine, o cinema leva-nos lá longe para nos mostrar gente que sentimos aqui
perto, combate também nosso.
Jorge
leitão Ramos, Expresso
ENTREVISTA
Escolheu abordar um tema complexo como a situação das mulheres na
Arábia Saudita, através de uma história aparentemente simples de uma menina que
quer uma bicicleta. Porquê?
Eu queria dar um rosto humano ao debate intelectual, uma história
com que as pessoas pudessem identificar-se e perceber. O filme não mostra uma
grande história, pelo contrário, é a história das emoções das poucas
personagens principais, uma menina e a sua mãe, as vidas destas personagens
dentro da sua sociedade. Não creio que as pessoas queiram ver um filme e levar
um sermão. A ideia é levá-las numa viagem inspiradora e comovente. Por mais
simples que pareça a história, acho que é tecida por temas mais complexos. Para
mim, era importante que a história fosse um retrato fidedigno da situação das
mulheres na Arábia Saudita e que as personagens fossem credíveis como pessoas
comuns, que têm de se movimentar pelo sistema da única maneira que sabem.
A personagem de Wadjda foi inspirada pela sua própria infância? Há
elementos autobiográficos nesta história?
Bem, eu venho duma família muito liberal, que me apoiou muito.
Lembro-me de ser criança e o meu pai levar-me com os meus irmãos para ir
comprar bicicletas e eu escolhi uma verde. Tenho muita sorte por ter um pai que
queria que eu me sentisse digna enquanto mulher, mas a situação das minhas
colegas e amigas era diferente, elas nunca sonhariam em pedir uma bicicleta.
Mas acho que o coração da história é algo com que todos se podem
identificar, que é a ideia de sermos rotulados de diferentes ou perversos por
querermos algo fora do que é tradicionalmente considerado aceitável. A cultura
saudita pode ser especialmente brutal e implacável para as pessoas à margem da
sociedade, por isso há um medo real de ser considerado um proscrito. Por isso,
de certa forma, a história é parte da minha vida e das coisas com que me
deparei na minha vida. Muitas das minhas experiências, bem como as dos meus
amigos e família, estão refletidas de algum modo no filme, não são apenas um
produto da minha mente.
Há várias personagens femininas fortes, a própria Wadjda, a sua
mãe, a diretora da escola. Este é um filme de mulheres?
Talvez seja! Mas não foi essa a minha intenção. Eu queria fazer um
filme sobre as coisas que eu conheço e pelas quais passei. Uma história que
contasse as minhas experiências, mas também as das sauditas vulgares. Para mim
era importante que as personagens masculinas no filme não fossem retratadas
como um simples estereótipo ou vilões. Tanto os homens como as mulheres no
filme estão no mesmo barco, ambos são pressionados pelo sistema para agir e se
comportar de certa forma e depois são forçados a lidar com as consequências do
sistema por qualquer ação que tomem. Gosto muito das cenas da mãe e filha
juntas e acho que transparece na sua relação muito amor e emoção, quando estão
a cozinhar ou a cantar juntas, há algo de muito bonito nisso.
Ao crescer num país sem cinemas, como descobriu o cinema e decidiu
fazer dele um modo de expressão e uma carreira?
Cresci numa pequena cidade da Arábia Saudita. Não quero dar a
ideia de que éramos totalmente isolados do mundo exterior, mas também não se
passava grande coisa. Embora os meus pais fosse viajados, enquanto eu era
criança fizemos apenas algumas viagens pela região. Toda a minha vida de
adolescente se centrou naquela cidade. O conceito do grande mundo terminava nas
cidades a umas horas de distância. O mundo para lá disso parecia muito distante
e fora de alcance. Sempre li livros e vi filmes e quis fazer parte do grande
mundo, de algum modo. A Arábia Saudita é um país sem cinemas, onde os filmes
são proibidos, mas o meu pai tornou o cinema acessível a nós e fazíamos serões
familiares em que víamos filmes juntos. Eu gostava muito de filmes, mas nunca
pensei que seria cineasta, quanto mais a primeira mulher realizadora na Arábia
Saudita.
Como escolheu os seus atores?
Num lugar tão conservador como a Arábia Saudita, é difícil
encontrar mulheres e raparigas que queiram aparecer em frente às câmaras, em
público. O obstáculo era ainda agravado pelo facto de não termos uma indústria
cinematográfica local nem infraestruturas para apoiar todo o processo. Não
existem castings abertos, por isso demorou bastante até conseguirmos encontrar
atores. A Waad veio a uma das sessões que fizemos em Riade e eu vi logo que ela
tinha o visual e atitude para o papel. Todas as meninas que tínhamos visto
antes dela não tinham a garra necessária; ou eram demasiado doces ou pouco
descaradas. E de repente surgiu Waad, com os seus auscultadores na cabeça, a
usar calças de ganga e com tatuagens nas mãos. Eu procurava também uma rapariga
que tivesse uma boa voz, para poder cantar com a mãe, que memorizasse e
recitasse o Corão, por isso uma boa voz era um requisito essencial e a Waad tem
uma voz muito bonita e doce. Eu tinha visto muito do trabalho de Reem Abdulla
na televisão e sempre achei que ela seria ideal para o papel de mãe. Ela fez um
excelente trabalho ao adaptar-se da representação de televisão para a do cinema
e acho que ela teve um desempenho poderoso.
Como foi para si, enquanto mulher, realizar um filme em Riade?
Foi ao mesmo tempo um grande desafio e muito compensador. Cada
passo foi difícil e foi uma aventura. Por vezes tinha de fugir e esconder-me na
carrinha de produção, em zonas mais conservadoras, onde as pessoas não
aprovavam que uma mulher realizadora convivesse profissionalmente com homens no
plateau. Por vezes tentei realizar através do walkie talkie, na carrinha, mas
ficava sempre frustrada e acabava por sair e fazer as coisas pessoalmente.
Tivemos alguns casos de pessoas que expressaram verbalmente o seu desagrado com
o que estávamos a fazer, mas nada de grave. Todos tínhamos as autorizações
necessárias, por isso, duma maneira geral, tudo correu de forma relativamente
pacífica.
Como é vista na Arábia Saudita e no mundo árabe? É considerada uma
exceção? Uma pária? Uma pioneira?
Acho que por vezes posso ser vista como uma figura polarizadora,
pois algumas pessoas acham que uma mulher fazer filmes ou trabalhar neste meio
é algo controverso. Mas a minha intenção não é ofender ninguém. Não acredito em
armar sarilhos sem qualquer objetivo, mas acho que devemos trabalhar para
perceber como devemos incorporar a mudança inevitável e a modernização na nossa
cultura de forma razoável. Claro que as ameaças de morte podem ser
assustadoras, mas não podemos deixar os extremistas afetar o nosso trabalho e
os objetivos que temos para desenvolver o nosso país. Espero ter feito um filme
que seja próximo das vidas das mulheres sauditas e que as inspire e lhes dê
força para desafiar as complicadas amarras sociais e políticas que as rodeiam.
Embora seja difícil desconstruir as tradições fortemente enraizadas e que negam
às mulheres uma existência digna, sobretudo porque estão misturadas com
interpretações literais da religião, esse é um objetivo pelo qual vale a pena
lutar.
Qual é a situação atual das mulheres sauditas que têm aspirações
criativas ou artísticas?
Estou muito impressionada com todas as jovens que conheci na
Arábia Saudita agora e sabem que estão a crescer numa era diferente da minha,
com muitas mais oportunidades. Quero ajudar a proporcionar uma plataforma para
as suas vozes nunca antes ouvidas e ajudá-las a contar as suas histórias ao
mundo. É muito difícil para as mulheres serem elas mesmas. Se agirem fora de
certas normas aceites, são consideradas “controversas” em qualquer parte do
mundo, e mais ainda num local tão conservador e com regras sociais tão rígidas
como a Arábia Saudita. Espera-se que as mulheres sejam duma certa forma e sempre
que se afastam dessa convenção, costumam ser rotuladas e estigmatizadas. Espero
que os meus filmes ajudem algumas delas a encontrar coragem para arriscar e
falar dos assuntos que são importantes para elas.
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