DIA 23 DE SETEMBRO || IPDJ || 21H30

E AGORA? LEMBRA-ME
Joaquim Pinto, Nuno Leonel
Portugal, 2013, 164’, M/12

O filme de Joaquim Pinto "E Agora? Lembra-me" foi escolhido pela Academia Portuguesa das Artes e Ciências Cinematográficas para representar Portugal como candidato ao Óscar 2015 de Melhor Filme Estrangeiro. Trata-se de um documentário autobiográfico já premiado em vários festivais de cinema nacionais e estrangeiros. Narra a história do próprio Joaquim Pinto, ao longo de vinte anos e convivência com a sida e a hepatite C, através de apontamentos variados sobre ensaios clínicos com drogas tóxicas, memórias e o amor.



FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Joaquim Pinto
Cinematografia, Som e Montagem:  Joaquim Pinto e Nuno Leonel 
Com Joaquim, Nuno, Jo, Deolinda,Cláudia, Nelson, Rita
Origem: Portugal
Ano: 2013
Duração: 164’

FESTIVAIS e PRÉMIOS
Locarno - Prémio Especial do Júri e Prémio da Crítica Internacional
DocLisboa - Grande Prémio e Prémio Júri Universidades
Buenos Aires - Melhor Filme
Valdivia - Melhor Filme e Prémio da Crítica Internacional
Montréal - Grande Prémio
Bilbau - Melhor Documentário  
Cartagena das Índias - Prémio Especial do Júri
Cineport -  Melhor Documentário 
Curutiba - Melhor Filme






CRÍTICA

O diário pessoal de Joaquim Pinto é um dos mais surpreendentes e poderosos retratos de nós todos que se viram nos últimos tempos.
A primeira cena de E Agora? Lembra-me parece vinda de um documentário sobre a natureza. Em plano aproximado, e quase “microscópico”, um bicho invertebrado atravessa o ecrã, arrastando-se sobre raminhos e folhagens à sua velocidade de lesma. De certo modo, é um plano para enganar: o filme de Joaquim Pinto será longo mas veloz e ritmado, nunca se movendo a passo de caracol. Mas se nesse sentido é uma abertura em trompe l’oeil, tudo o mais nesse plano constitui um anúncio fiel do que será o filme: um olhar sobre a vida, em todos os seus estados e instâncias (naturais, sociais, afectivos, profissionais), construído numa permanente ligação com o mundo, um mundo feito de todas as coisas, grandes e pequenas, vindas da História ou da contemplação do presente, abordadas pela acção ou pela reflexão.
O género “diarístico”, a que sem grande incorrecção classificativa E Agora? Lembra-me pertence, tende muitas vezes para o solipsismo, e nada contra isso; mas raras vezes, e essa é obviamente uma das coisas notáveis do filme de Joaquim Pinto, se viu uma aproximação ao género que conseguisse, com este poder, ser um diálogo constante entre o autor e o universo, físico e, apetece dizer sem exagero, metafísico, que o envolve. Num filme assombrado por uma ameaça de morte muito concreta — a sida —, esta dimensão vital e vitalista, esta presença de “coisas vivas” (mesmo com a ambiguidade que o filme inteiramente reconhece, pois também os vírus são “coisas vivas”) é porventura o seu factor distintivo mais saliente e mais extraordinário, como se E Agora? Lembra-me resultasse de um gesto etimologicamente “religioso”, confirmado pela presença da religião (agora sem aspas) no filme e na vida de Joaquim Pinto, algo que de resto abre para o título que depois se estreou (a apresentação mundial de E Agora? Lembra-me ocorreu há pouco mais de um ano, em Locarno), co-realizado com Nuno Leonel, O Evangelho Segundo S. João.
O filme tem o seu eixo, a sua estrutura narrativa, no período de sensivelmente um ano em que Joaquim Pinto se submeteu a um tratamento experimental. É uma crónica disso, com a abundância de pormenores suficiente para fazer de E Agora? Lembra-me também uma entrada relevante na história da “filmografia da sida”. É claro que é muito mais do que apenas isso, como começámos por tentar dizer, mas isso não impede que a questão médica adquira até outras formas de importância. Porque marca uma espécie de pauta, a que se retorna sempre depois de cada uma das muitas derivas, e porque, poeticamente mas não só, ela justifica o “fluxo de consciência”, por vezes “febril”, que toma conta da sua narração e da sua organização. Aqueles planos em que Joaquim Pinto se filma deitado ou “zombificado”, com o corpo abatido pela potência dos medicamentos contra o vírus e pela potência dos medicamentos que servem para atenuar os efeitos secundários dos medicamentos contra o vírus, criam um estado de consciência particular, um torpor que é ao mesmo tempo uma “suspensão” do tempo e a sua acumulação, um combate entre um “vazio” e “toda a memória”, todas as memórias deste homem. É dessa bruma que resulta o filme, como se — e agora? lembra-me claramente — o acto tivesse tanto de uma organização da memória como, através dela, de uma conquista de uma forma de clareza ou de claridade. Ou de limpidez.
Essa clareza e essa limpidez mandam no filme, são mesmo aquilo que mais impressiona no olhar e na narração de Joaquim Pinto. Apesar das curvas e contracurvas, no espaço e no tempo, do seu percurso, E Agora? Lembra-me vai sempre a direito, a cortar caminho por entre uma história pessoal e uma história colectiva, por entre um momento pessoal e um momento colectivo. São as memórias dos encontros profissionais e das amizades de Joaquim Pinto — de Serge Daney a João César Monteiro, a Rita Azevedo Gomes — e são as reflexões sobre o Portugal e a Europa da “crise”. É o humor, propriamente cortante, que subjaz ao filme todo e que, sobretudo a propósito da doença, é o sinal de uma “aceitação” sem “resignação” e, ainda mais, sem rendição. É o olhar, ao mesmo tempo muito pudico e muito expressivo, sobre a vida pessoal de Joaquim Pinto e de Nuno Leonel, a maneira como olha para os dois, ou como retrata um a olhar para o outro e tenta arrancar, encontrar, no outro a maneira como ele olha para o primeiro. O filme é uma história de amor, tudo nele releva, como também já tentámos dizer, de um enorme amor pela vida e por todas as suas coisas. Mas é neste olhar, tão delicado como isento de pieguices, sobre uma relação que resiste tanto quanto um corpo humano resiste aos vírus e aos medicamentos, que a história de amor, de algum modo, se perfaz, e se constitui na matéria essencial de E Agora? Lembra-me.
Ao animal invertebrado do primeiro plano respondem vários outros ao longo do filme, dos cães de Joaquim e Nuno à abelha (ou vespa) comedora de hambúrgueres, imagem de um surrealismo que Buñuel não desdenharia. Talvez irracionalmente, é ainda de Buñuel que nos lembramos nos planos finais, com a já célebre camioneta cheia de perus engaiolados, presumivelmente a caminho da degola. Depois de duas horas e tal a falar dele, Joaquim Pinto não nos deixa ir embora sem nos dar um murrozinho no estômago. Aqueles perus em rota para o seu fim são o mais surpreendente e poderoso retrato de nós todos — da “humanidade” — que alguém mostrou em tempos recentes. Memento mori: e agora, lembra-me que vamos todos morrer.
Luís Miguel Oliveira,.publico.pt






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