O GRANDE KILAPY
Zézé Gamboa
Angola/Portugal/Brasil, 2012, 100’, M/12
FICHA
TÉCNICA
Realização: Zézé Gamboa
Fotografia: Mário Masini
Diretor de Arte: João Torres
Montagem: Pascal Latil
Interpretação: Lázaro Ramos,
João Lagarto, Pedro Hossi, Hermila Guedes, Buda Lira, Patrícia Bull, Pedro
Carraca
Origem:
Angola/Portugal/Brasil
Ano: 2012
Duração: 100’
PRÉMIOS
- Festival Caminhos
do Cinema Português – Melhor Guarda-Roupa — Teresa Campos
- 12 Nomeações
para Prémios Sophia 2015:
Melhor Som (Hugo Leitão e
Branko Neskov),
Melhor Maquilhagem e Melhor
Caracterização (Sano de Perpessac),
Melhor Guarda-Roupa (Teresa
Campos),
Melhor Direcção Artística
(João Torres),
Melhor Argumento Original
(Luís Alvarães e Luís Carlos Patraquim),
Melhor Actriz Secundária
(São José Correia e Silvia Rizzo),
Melhor Actor Secundário
(Manuel Wiborg),
Melhor Realizador (Zézé
Gamboa),
Melhor Actor Principal (João Lagarto),
Melhor Filme
CRÍTICA
O filme é despoletado por uma memória de infância, de Zézé Gamboa, vivida pelas ruas de Luanda. Aos dez anos o realizador conheceu uma figura que não só lhe despertou o interesse como o fascinou pelo seu modo de vida. Tratava-se de uma Luanda colonial, culturalmente mestiça e forte.
"Eu era muito garoto quando me apercebi de uma personagem que andava sempre em grandes automóveis e acompanhado por lindas mulheres. Isso na altura causou-me algum espanto e tornava-se impressionante porque na cidade de Luanda ele era dos poucos jovens africanos que conduzia carros último modelo e fazia uma vida de playboy", contou o realizador.
Mais tarde, Bruxelas, anos 80 Zézé Gamboa encontra Joãozinho numa discoteca e propõe-lhe fazer um filme em que contasse a sua história. E assim nasce "O Grande Kilapy". Alguns consideram-no um filme baseado no cinema afro-americano dos anos 70. Talvez o seja pela estética, ironia e aventura que lhe são inerentes, mas por outro lado a blaxploitation, não comporta a componente política existente em "Kilapy": a presença portuguesa em Angola e a forma como a sociedade colonial estava organizada.
O filme entrou pela porta da frente em festivais por todo o mundo. Começou pelo TIFF Toronto International Film Festival, dirigiu-se depois para o BFI London Film Festival e em seguida marcou presença nos Emirados Árabes Unidos no DIFF Dubai International Film Festival e no GIFF – Goteborg International Film Festival. Posteriormente viaja para Ouagadougou, para o mais importante festival de cinema africano a nível mundial, o FESPACO - Festival Panafricano de Cinema e em seguida é escolhido como Filme de Abertura e em Competição no CinemAfrica em Estocolmo.Filme ambicioso que pretende recriar uma década de relações entre Portugal e Angola no período colonial. Para isto utiliza-se da quase anedótica história do "don juan" angolano João Fraga (Lázaro Ramos), filho de uma família abastada que o envia para concluir os seus estudos em Lisboa. Bem pouco interessado em livros, no entanto, ele dedica-se àquilo que faz melhor: colecionar mulheres. Só que 1965 os tempos não eram fáceis na capital portuguesa, com agentes da Pide a infiltrarem-se por todos os lados – o que termina por ter consequências. Na segunda parte do filme, "Joaozinho" está de volta à sua terra natal, novamente num contexto político desfavorável – uma vez que se está às vésperas da guerra colonial. Ao seu desporto favorito, no entanto, ele aqui acrescenta outro – a burla financeira.
Essa história aparentemente leve e bastante divertida em alguns momentos serve para o realizador angolano Zezé Gamboa fazer um comentário nada inocente a propósito das complexas relações entre metrópole e colónia naqueles tempos – com o colonialismo e o racismo no centro do conflito. As conquistas amorosas do seu protagonista são intercaladas com várias situações de abuso de autoridade – fazendo um cruzamento interessante entre uma trajetória individual insólita e um panorama histórico e político.
[...] O Grande Kilapy tem Lázaro Ramos em grande forma – carregando o filme nas costas e assegurando que ele chegue a bom porto – com uma abordagem histórica relevante sobre questões nada fáceis de abordar.
O Melhor: o cruzamento entre trajetória individual e panorama político e histórico
Roni Nunes, c7nema.net/
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Pelas ruas de Luanda, quando criança, Zézé Gamboa conheceu uma figura que não só lhe despertou o interesse como o fascinou pelo seu modus vivendi. De seu nome Joãozinho das Garotas. Uma espécie de Don Juan angolano que vivia não só rodeado de belas mulheres como exibia grandes carros pelas ruas da cidade. A esta personagem junta-se toda uma história política de uma Angola colonial que não só caracteriza o filme como lhe atribui um acutilante carácter histórico…
Conta-me como surgiu a ideia para fazer este filme. A génese da história baseia-se numa personagem que conheceste em Angola, o Joãozinho das Garotas. Eras pequeno na altura e ficaste fascinado…
Eu tinha 10 anos, e vivia numa Luanda colonial, culturalmente mestiça e forte. As pessoas viviam muito na rua, não só por causa do clima como fazia parte do contexto da vida nos trópicos. Eu era muito garoto quando me apercebi de uma personagem que andava sempre em grandes automóveis acompanhado de lindas mulheres. Isso na altura causava-me algum espanto e tornava-se impressionante porque na cidade de Luanda ele era dos poucos jovens negros que conduzia carros último modelo e fazia uma vida de playboy. Mais tarde, nos anos 80 eu venho de Bruxelas passar férias em Lisboa e encontro o Joãozinho numa discoteca. Conversa, puxa conversa, propus-lhe fazer um filme em que contasse a sua história. Primeiro fingiu que não queria e disse que a sua vida nunca poderia dar um filme e depois achou que era possível. Cheguei inclusive a dizer-lhe que poderia colocar uma frase no fim do filme a dizer: “qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência”, ao que ele respondeu: “não, não, não, eu quero que as pessoas saibam que sou eu”. Na altura ele dividia a sua vida entre Lisboa e Londres e combinámos que eu lhe faria uma entrevista para que me contasse toda a sua história, e assim foi. Estive a conversar com ele entre as 16h e as 04h da manhã, numa conversa que elaborou o argumento que mais tarde viria a ser o filme.
Para conseguir viver da forma como o fazia, Joãozinho roubou muito dinheiro ao Estado…
Sim, mas ele nem tinha a noção do valor do golpe. Foi muito dinheiro que ele ia tirando ao Estado semanalmente. Eu creio que ele deveria ter um cúmplice, mas sempre negou essa hipótese.
Tinhas várias memórias de infância quando o entrevistaste?
Tinha algumas memórias, e há o olhar que eu tinha na altura e um olhar 40 anos depois. Entretanto cresço, ganho consciência política e o que me deu vontade de realizar o filme foi o facto de ele ter ousado desafiar uma Angola colonial. Fazia vida de rico sem o ser, e a PIDE e a Polícia Judiciária perseguiam-no pensando que ele mantinha um negócio de diamantes, facto que ele nunca assumiu, nem negou. Fazia uma vida de rico, tinha apartamentos e vivia confortavelmente. Como na altura não havia assim tanto dinheiro que permitisse este tipo de vida, as pessoas estranhavam. A distribuição da riqueza era feita de outra forma e havia sempre a ditadura. As fortunas pertenciam aos homens do café, algodão e cacau, os roceiros, mas nada tinha a mesma dimensão que se vê hoje em dia, numa Angola pós-independência. Actualmente são muito mais ricos que os ricos da Angola colonial. O Joãozinho, sendo negro, saía fora do esquema habitual.
Certamente o Joãozinho gostaria de ter visto o filme. Se ele fosse vivo o que gostarias de lhe dizer?
Se ele fosse vivo gostaria de terminar o filme a dar uma volta de carro com ele por Londres, com a sua imagem a rodar na parte dos créditos e música. Hoje dir-lhe-ia que não sendo ele um homem ligado à política, ele acabou por ser um contestatário sem ter feito nada por isso na realidade. As coisas passavam por ele e simplesmente aproveitava.
Porquê o nome “O Grande Kilapy”?
O filme era para se chamar “O Filho do Império”. Há 15 ou 20 anos atrás quando reencontrei o Joãozinho, comecei a trabalhar com uma pessoa para o argumento, que na altura não conseguiu entrar no ambiente de uma Angola colonial e acabou por não trabalhar comigo, mas registou o nome “O Filho do Império” no IGAC. Quando enviámos para lá o argumento, o nome já estava registado. Foi assim que decidi optar pelo título Kilapy, que em kimbundu (uma das línguas bantus mais faladas em Angola) significa golpe.
Como definirias o filme a nível de imagem? Não é um filme ligado à estética africana e ligo-o um pouco à imagem afro-americana, da blaxploitation, de filmes como “Shaft”.
Eu próprio tenho dificuldades em classificar o filme. É um filme urbano dos anos 60 aos 70. A blaxploitation, não tem esse lado tão político como existe neste filme e é esse lado que está relacionado com a presença portuguesa em Angola, na forma como a sociedade estava organizada. Ao passo que filmes como “Shaft” relacionam-se mais com a aventura. Este filme acaba por ter os dois lados, tornando-se num híbrido.
A minha ideia com os actores é sempre dar-lhes a noção de liberdade total, ou seja, ao mesmo tempo que explico o que pretendo, dou-lhes a possibilidade de comporem a personagem. Há uma cumplicidade que crio com eles no sentido de me poderem dar tudo na direcção da história do filme, o que resulta bem. Há também um bom trabalho de casting porque se os actores forem mal escolhidos é seguro que a história não vai resultar.
E como foi trabalhar com o Lázaro Ramos? Ele é brasileiro, vem de uma realidade totalmente diferente e portanto está longe de saber o que é o colonialismo. Como conseguiste dar-lhe os ingredientes para que Lázaro conseguisse desempenhar tão bem a personagem do Joãozinho?
No início dei-lhe uma grande explicação do que era Angola na altura, através de dados históricos, e a explicação do porquê dos portugueses estarem em Angola. Toda essa informação ajudou muito a compor a personagem. Cheguei a pensar em mostrar-lhe a entrevista que fiz ao Joãozinho, mas depois mudei de ideias porque não queria influenciá-lo e não queria que imitasse o João de forma alguma. O Lázaro é um excelente actor e ficou acima das minhas expectativas.
Consideras que o facto de o actor principal ser negro pode tornar mais complicada a venda do filme?
Não sei, mas como é uma história mista que se passa entre Angola e Portugal, com muitos actores brancos e alguns negros, não sei como é que os vendedores vão receber o filme. Tudo vai depender das suas capacidades para o vender às televisões. A verdade é que nos anos 60, nos Estados Unidos, as receitas do cinema estavam a diminuir e descobriram que ao colocarem actores negros, como Sidney Poitier, começaram a vender mais. Por isso não sei se o mesmo poderá acontecer com o cinema africano.
Utilizas a voz-off no filme, esta é normalmente desvalorizada, mas tem uma grande importância no contexto do “Kilapy”. Achas que poderá haver uma desvalorização em que as pessoas entendam a voz-off como uma explicação do filme?
Nesta história é uma mais-valia, por duas razões. Primeiro porque remete o filme ao cinema africano pela questão dialéctica da tradição oral, em que as pessoas contam histórias. Este contador é branco e ele próprio escreveu um artigo nos anos 80 sobre o João Faria intitulado “O Homem Mais Rico do Mundo”, e tivemos no filme algumas frases retiradas deste artigo. Tem esse lado africano e um lado histórico que faz com que as pessoas entendam melhor a história entre Angola e de Portugal.
Inspiraste-te noutros realizadores que retratam o colonialismo?
Neste caso, de todo, porque eu não conheço histórias coloniais que tenham personagens assim. Quando se fala da colonização aborda-se sempre o lado mais antropológico e este filme trata de relações humanas e do abordar de um quotidiano normal.
Consideras que existe no filme alguma ironia e perversidade em relação à visão colonial?
Sim, tem muita ironia, umas vezes subtil, outras vezes mais densa. E o lado perverso é o mais natural porque tem a ver com a forma particular como os portugueses estiveram em Angola. É quase incompreensível, como é que num quadro de colonização pudessem haver brancos pobres, a morar nos bairros de lata e negros e mestiços a morarem na cidade, numa sociedade completamente estruturada. De um ponto de vista que não existia nas outras Áfricas, normalmente eram os colonos os ricos e os colonizados os pobres.
Se este filme tivesse saído na altura de Salazar teria sido censurado?
Certamente. Acho mesmo que não haveria filme.
Do ponto de vista, da forma de vida actual angolana, há mudanças estruturais porque o poder político mudou, mas do ponto de vista humorístico, de estar e viver é muito semelhante. Isto porque o Joãozinho é o típico homem de Luanda. Houve um período difícil em que existia um partido único e as pessoas estavam mais condicionadas à liberdade de expressão, mas que por outro lado não tirou o modo de estar e viver. E isto está muito presente no filme, e é um lado muito forte.
Por outro lado trata-se de um olhar muito próprio sobre os anos 70 portugueses. É uma mais-valia do filme porque acaba por torná-lo histórico…
Sim, o que me parece é que as pessoas querem esquecer os anos difíceis da ditadura ou simplesmente não se interessam. Quis trabalhar este lado da memória, a situação das pessoas que vinham de África e que estavam na Casa de Estudantes do Império, e a forma como se relacionavam com a Lisboa da época.
Existe um sentido de humor especial que se alterna com alguns momentos dramáticos. Crias um subtexto no filme, narrativo, mas em que está implícito o contexto político.
O contexto político faz parte porque era muito difícil passar ao lado do mesmo. Naquela altura houve a fuga de muitos alunos da Casa de Estudantes do Império. Angolanos, moçambicanos e guineenses que foram para fora e mais tarde tornaram-se nos grandes dirigentes dos movimentos de libertação. Nunca poderia passar ao lado desta situação e a força histórica e política está aí. Foi uma traição para o próprio Salazar, que constrói esta Casa para melhor poder controlar os estudantes que vinham de África e de repente é lá que se forjam as cabeças dos melhores revolucionários que lutam contra o seu sistema. Vira-se o feitiço contra o feiticeiro. Isso no filme não é muito explícito, mas é suficientemente claro para as pessoas o entendam.
Achas que a sociedade actual superou a realidade do colonialismo, ou este continua enraizado nas mentalidades?
Acho que ainda não está ultrapassado. A colonização é doentia, não só para o colonizado, como para o colonizador e se do ponto de vista da educação escolar, não houver critérios que ajudem as crianças a ultrapassá-lo irá ficar sempre enraizado. Há o problema dos pais que eventualmente terão vivido a colonização e cuja ideia nunca é sadia. Depois acho que a única forma de o ultrapassar é através da escola e da educação, que aí terá um papel muito forte de fazer acreditar as crianças que a colonização fez parte de uma época histórica, para que se desfaça este mau estar existente. Crianças que não viveram a colonização têm uma ideia falsa através daquilo que lhes é dito, como se o mundo fosse feito de bons e maus.
A sociedade conseguiu transformar essa realidade em algo mais actual?
Não me parece. Eu acho que quando há situações de bem estar tudo flui, mas quando estamos em crise, volta a vir ao de cima. Acho que as sociedades ocidentais ainda não o conseguiram ultrapassar. Neste momento há um regresso aos países potencialmente mais ricos das antigas colónias, como Angola e Moçambique, e do ponto de vista político há governantes que incentivam esta realidade. O problema está na integração e no funcionamento desta interligação. Há 15 anos Portugal estava numa situação confortável e muitos brasileiros começaram a vir para cá, mas havia algum chauvinismo em relação aos mesmos. Actualmente acontece o contrário, os portugueses estão a ir para o Brasil. Estando bem ou mal a interligação deveria ser mais forte.
Há uns anos atrás assistia-se a um preconceito relativamente a namoros de brancos com negros. Este continua a existir?
Muito menos, acho que os jovens de hoje têm uma mentalidade mais aberta, independentemente dos pais terem esse preconceito. A vida mudou muito, antigamente as turmas também se dividiam entre rapazes e raparigas. Hoje são mistas e essa ligação ajuda a uma relação mais fácil e natural.
O colonialismo prossegue de alguma forma como um estigma?
Em algumas cabeças sim, mas é relativo. Acho que há pessoas que o ultrapassaram pela sua vivência, forma de estar e educação e outras que não. Politicamente pode haver uma conjugação de forças que queira que sim, mas individualmente não. No entanto hoje existe muito mais comunicação, a televisão chega a todo o lado e as pessoas são muito mais informadas do que há 40 anos atrás.
O teu primeiro filme “O Herói” é completamente diferente do “Grande Kilapy”. “O Herói” é um filme mais neo-realista sobre o pós-guerra em Luanda e este é uma extravagância fantasiosa com laivos políticos…
“O Herói” é uma história inspirada numa fotografia que a agência Reuters faz de um mutilado de guerra, deitado numa rua de Luanda com uma prótese ao lado, e é a partir daí que nasce o filme. Esta imagem traz-nos uma realidade que é comum numa Luanda pós colonial. Houve uma guerra civil muito violenta, que durou até 2002, e que deixou marcas profundas na sociedade angolana. Partimos dessa ideia para mostrar como era a vida socialmente e as dificuldades que as pessoas poderiam ter, no caso dos jovens que eram obrigados a ir para a guerra. Muitos deles ficaram mutilados, outros morreram e eu quis fazer esta história. “O Grande Kilapy” é uma história política e de aventuras, que retrata outra Angola, menos neo-realista. Nas cidades as pessoas viviam como se não existisse guerra, o que dava um falso bem-estar porque objectivamente não sentiam a guerra. 90% dos angolanos não tinham noção política, na cabeça deles eram portugueses, embora pudessem sentir que algo estava errado.
Tendo em conta que os teus dois filmes são completamente diferentes, como será um terceiro?
Não sei qual vai ser o terceiro filme, mas tenho pelo menos três histórias para contar. Tudo vai depender do financiamento do ICA, e estando na situação em que se encontra não sei como é que tudo se vai desenvolver. No entanto todas as histórias que tenho para contar se passam na pós-independência de Angola e estão mais próximas do “Herói”, não sendo neo-realistas.
Elsa Garcia, david-golias.com