Amar, Beber e Cantar de Alain Resnais | 14 Abril | IPDJ | 21h30


AMAR, BEBER E CANTAR
Alain Resnais, França, 2014, 108’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: Aimer, boire et chanter
Realização: Alain Resnais
Argumento: Laurent Herbiet, Alain Resnais, Jean-Marie-Besset, baseado na peça Alan Ayckbourn
Montagem : Hervé de Luze
Fotografia : Dominique Bouilleret
Música: Mark Snow
Interpretação : Hippolyte Girardot, Sabine Azéma, Caroline Silhol, André Dussollier e Sandrine Kiberlain
Origem: França
Ano: 2014
Duração: 108’

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlim - Prémio FIPRESCI
Festival de Berlim - Prémio Alfred Bauer

COMENTÁRIO DO REALIZADOR
Porquê o título original AIMER, BOIRE ET CHANTER, que nada tem que ver com o título original da peça de Alan Ayckbourn, Life of Riley? É uma questão de ritmo. A música dos Pink Floyd atravessa toda a peça. Para mim, é um indício de uma época específica, os anos 1960 e 1970, e queria afastar-me dela. Faço um grande esforço para dar ritmo às mudanças de andamento nos filmes, de forma à realização ser rica em contrastes: momentos em que a realização é reservada e académica e depois, subitamente, uma mudança de tom. Eis o que sonho: que o espetador no cinema diga para si mesmo, “pronto, está bem, é teatro filmado”, e depois, de repente, mude de opinião: “sim, mas no teatro não podemos fazer aquilo...” E andar para a frente e para trás, do teatro para o cinema, e, às vezes, para banda desenhada num estilo Blutch. Gostava de conseguir aquilo que Raymond Queneau chamou em Saint-Glinglin “la brouchecoutaille”, uma espécie de ratatouille, deitando abaixo o que divide o cinema do teatro e, assim, atingir uma total liberdade. Digo isto em todos os meus filmes: o que me interessa é a forma e, se não houver forma, não há emoção. Ainda me entusiasmo muito a juntar o que não deve ser juntado. É aquilo a que chamo a atração pelo perigo, pelo abismo.
Tenho constantemente presente a resposta que costumo dar à pergunta, “Porque é que faz filmes?” - “Para ver como são feitos.” Por essa razão, apaixonei-me naturalmente pelo teatro de Ayckbourn, que pode parecer comédia leve, mas que não o é, de todo. Basta ver os riscos que corre com a construção dramática. Um dia, ele disse o seguinte, “Tento fazer cinema com o meu teatro, e o Resnais faz teatro para o cinema.”
Como é que tudo começou? Li numa revista que o muito prolífero Sr. Ayckbourn encenava as suas peças num pequeno resort à beira mar, em Scarborough, num teatro em que o próprio público formava as três paredes. Fui lá com a Sabine [Azéma], como se num safari a uma selva exótica. Vimos uma peça. Os atores tinham de se lembrar das três “paredes” de espetadores e, como o público, tinham de dar um salto de fé e acreditar naquilo que não viam. Essa é também uma boa definição de cinema. Desse momento em diante, pensei para comigo, “Aquele é o meu homem.” Regressámos a Scarborough nos quatro ou cinco anos seguintes, anónimos, até que um dia um ator me reconheceu num intervalo e disse, “O que faz aqui? Os franceses nunca vêm aqui. Há japoneses, alemães, mas franceses não.” Conheci finalmente Ayckbourn, bebemos uma cerveja e elogiei-o. Suspirou, “Obviamente, não sou o Chekhov.” Respondi-lhe, “Bem, não, é muito melhor do que o Chekhov.” Foi um encontro cheio de emoção. Alguns anos depois, vi a Sabine a rir-se sozinha a ler uma enorme peça de Ayckbourn intitulada Intimate Exchanges, com apenas dois atores a representar uma multiplicidade de personagens e em que tínhamos de ir doze vezes ao teatro para a ver na íntegra! Encontrei-me com Ayckbourn para lhe perguntar se aceitava que eu a adaptasse, no que se veio a tornar FUMAR/NÃO FUMAR. Na altura, ele já escrevera quarenta peças. Disse-me, “Esperava tudo, menos que pegasses nessa. És ainda mais doido do que eu.” Eu sabia, porque lera num artigo, que ele detestava que o adaptassem para cinema, por causa das obrigações envolvidas. Por isso, fiz-lhe uma promessa: “Se encontrar um produtor para financiar o filme, não te digo, não te ligo, não te peço para ler a adaptação, nem te convido para jantar. Não saberás nada de mim até o filme estar acabado e to possa mostrar. Nessa altura, e só nessa altura, poderás decidir se o apadrinhas ou não.” Ele ficou encantado. E mantive a minha promessa até hoje. Também em CORAÇÕES (cuja peça original é Private Fears in Public Places).
A grande dificuldade em adaptar Life of Riley era a seguinte: como é que o público de cinema compreendia que há quatro jardins que não se cruzam? Usei os desenhos de Blutch, fotografias de Yorkshire e algumas cenas na estrada, para que as pessoas percebessem que os jardins chegavam a ter vinte quilómetros de distância. Esperava que, ao misturar estes três elementos que não se complementam – os desenhos de Blutch não se assemelham aos cenários de Jacques Saulnier, que por seu lado não são nada parecidos às estradas de Yorkshire – o público tivesse a noção da distância. Queria liberdade a fazer o filme. Trabalhei com o Laurent Herbiet de uma forma muito especial. Herbiet é um mágico ao computador. Bastava dizer algo, aparecia logo na máquina. Por vezes, escrevia o que eu dizia antes mesmo de o dizer. Ele pegou na peça e fez logo o storyboard. Para esta fase do trabalho, uso pequenas figuras de plástico que representam os atores e movimento-os. São muitas vezes personagens de filmes que trago das minhas viagens. Gosto que sejam tão anónimas quanto possível. Ajuda-me imenso, posso descrever o todo, enquanto o Herbiet sugere atalhos e ligações entre as sequências. Certa vez, Ayckbourn riu-se quando lhe disse, “Sou contra os cortes, mas gosto de contrações.” Foi ao Jean-Marie Besset, cuja obra de adaptação e como escritor conhecia e admirava, que coube então a tradução, trabalhando na versão inglesa já cortada. AMAR, BEBER E CANTAR? Pensemos em três casais normais, ou considerados normais, sejam felizes ou infelizes. Basta um único acontecimento para perturbá-los, a chegada de George, e tudo fica histérico. Sim, é divertido mas, ainda assim, há momentos em que a sombra da morte passa, com música leve. Algo bastante raro aconteceu com este filme: quando terminámos, eu e o montador Hervé De Luze notámos que o caixote das offcuts – para onde deitamos as offcuts ou cenas eliminadas – estava vazio. Não cortámos nada, aproveitámos tudo. Sim, podemos dizer que não fizemos lixo! A verdade é que havia muitas cenas de sequência, cenas filmadas em continuidade. De facto, os atores foram incríveis. Juntavam-se e ensaiavam de livre vontade, fora da agenda de produção. Isso poupou-nos muito tempo.
O que ainda o faz ser cinema, apesar de termos usado todo o tipo de artifícios do teatro, como substituir portas por cenários pintados que podiam ser puxados para o lado? É um verdadeiro mistério. Claro que, embora tenha resultado a favor do filme, era preciso poupar dinheiro. A minha abordagem passou por um grande salto para trás no tempo, pensando em Sacha Pitoëff e na sua mulher. Sempre que encenavam uma peça no Théâtre des Mathurins, não tinham dinheiro para os cenários. Usavam cortinas velhas e pediam emprestadas carpetes antigas, conseguindo sugerir interiores suntuosos. Eu disse ao Jacques Saulnier, “Se o Sacha Pitoëff fazia, também podes fazer.” Ele tentou protestar, dizendo “Sim, mas no cinema...” mas eu respondi-lhe, “Bem, temos de tentar.”
Alain Resnais

CRÍTICA
[...] É também de além-tumba (ou quase) que nos fala o último Resnais: “Amar, Beber e Cantar”. O que temos aqui? A adaptação de uma peça de Alan Ayckbourn (em cujo universo o cineasta mergulha pela terceira vez, depois de “Fumar/Não Fumar” e “Corações”), que sobressai pelo seu desejo de artifício e de absurdo. A confirmá-lo está a primeira sequência, que aterra num jardim do countryside inglês toscamente recriado em estúdio (como todos os cenários do filme), convidando-nos então a seguir o diálogo de um casal burguês de meia-idade que, de modo teatral, vai discutindo acerca da qualidade de uma marmelada que mais ninguém vê.

Quando, por fim, o silêncio leva a melhor, a mulher saca do guião que contém as palavras que acabou de proferir, advertindo o marido para o facto de não a ter deixado dizer a totalidade das suas falas. Fica pois claro, desde o início, que estamos perante um filme que não receia expor a sua natureza ficcional, construindo uma representação dentro da representação e forçando os atores a assumirem-se enquanto tais. Ora, após este prefácio, as personagens instalar-se-ão na residência de um casal amigo, tomando aí conhecimento de uma sinistra notícia: a de que o seu camarada George se encontra a contas com um cancro terminal, restando-lhe apenas seis meses de vida. Trata-se de uma figura que todos afirmam conhecer, sobre a qual todos falam, mas que — como o Godot de Beckett — permanecerá ancorada ao fora de campo até final. E é justamente a partir do invisível que George (um alegado galã) exercerá o seu magnetismo sobre as personagens, pondo a circular o rumor de que pretende passar os seus últimos dias de vida em Tenerife na companhia de uma mulher. O boato tem o condão de fazer despertar os desejos ocultos das mulheres e os ciúmes latentes dos maridos, originando assim uma divertida comédia de enganos, onde compete à morte a tarefa de colocar o amor em equação (como sempre aconteceu no cinema de Resnais).
Mais bela e coerente despedida é difícil de imaginar.
Vasco Baptista Marques, Expresso, 11/10/14

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