A TOCA DO LOBO | 12 JANEIRO | IPDJ | 21H30




A TOCA DO LOBO
Catarina Mourão
Portugal, 2015, 102’, M/12






FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Catarina Mourão
Fotografia: João Ribeiro, Catarina Mourão
Música: Bruno Pernadas
Som: Armanda Carvalho
Origem: Portugal
Ano: 2015
Duração: 102’

FESTIVAIS E PRÉMIOS:
Festival Internacional de Cinema de Roterdão
IndieLisboa, Competição Nacional - Prémio do Público para Longa Metragem Fox Movies
Viennale - Vienna International Film Festival
Porto/Post/Doc


CRÍTICAS
O que é a família? Um buraco. Não é por acaso que o novo filme de Catarina Mourão se chama A Toca do Lobo. Ele começa profeticamente com uma descida: uma vez, numa sessão de hipnose, a mãe da realizadora imaginou-se no alto de uma grande escadaria; ao descer, encontrou o pai, figura ausente, a quem disseram que desse a mão; ela acordou, em lágrimas, no momento em que deram as mãos.
Tem qualquer coisa de Alice no País das Maravilhas esta expedição ao mistério de uma família: há encontros fantásticos, portas fechadas, uma tia sentenciadora. Quando uma realizadora volta a câmara para a sua própria família, isso não é necessariamente familiar. “Quando abro os álbuns de família da minha mãe há uma sensação de estranheza porque não tenho familiaridade nenhuma com aquelas pessoas”, diz Catarina Mourão, 46 anos, notando que o lado paterno da família lhe foi sempre mais próximo e lugar de afectividade.
A Toca do Lobo começou como um projecto do doutoramento que a realizadora está a fazer na Universidade de Edimburgo, na Escócia. A ideia inicial era, explica, “explorar a questão das memórias que bloqueamos, os sonhos, o inconsciente e como isso é representado no cinema”.

A sessão de hipnose da mãe era o catalisador disso, mas Catarina Mourão não tinha pensado em fazer um filme sobre a sua própria família. Quando ela olhava os álbuns de fotografia, a sua família parecia-lhe “igual às outras – acomodada e funcional”, como diz no filme. Mas a descoberta de um antigo programa de televisão nos arquivos da RTP com o avô materno, que ela nunca conheceu, foi profética: o avô parece estar a falar-lhe directamente, de um tempo em que Catarina ainda não era nascida. “Aí foi o momento em que eu disse: este filme tem de ser sobre o meu avô. Porque senti que, de uma forma quase fantasmagórica, ele me estava a convocar para fazer este filme.”
O avô de Catarina, Tomás de Figueiredo, publicou vários livros, mas A Toca do Lobo não é um filme biográfico. É, antes, uma investigação obstinada onde as memórias de família são confrontadas e postas em causa. Por que é que a mãe de Catarina cresceu longe do pai? Por que é que ele foi internado num hospital psiquiátrico? É verdade que quis entregar o próprio filho à Pide?
Muitas das histórias que a família contou a si própria para sobreviver são falsas. “O filme está cheio de ficções”, diz a realizadora. “O objectivo não é encontrar ‘a verdade’ e responder a todas as questões. Pelo contrário: não sei até que ponto não saio do filme com mais perguntas ainda do que quando comecei. Não sei se sei mais ou se sei menos do que sabia inicialmente.”
Este não é um filme sobre o passado, como se ele estivesse inerte, à espera de ser desvendado ou descrito. O filme assenta numa cadeia transgeracional, freudiana: sendo um filme sobre o avô de Catarina, é também um filme sobre a sua mãe, e um filme sobre a realizadora, como se cada um se prolongasse no outro. Até os filhos de Catarina estão no filme, implicados, como se a genealogia fosse uma conexão inescapável. “Passado, presente e futuro estão todos juntos ali como se fossem um só”, resume.
É um filme diferente dos anteriores por incidir sobre a família da realizadora? Por colocar a mãe à frente da câmara? “A proximidade da história de família, não acho que seja muito diferente. Agora, com a minha mãe, sim. Filmei a minha mãe milhares de vezes. Da primeira vez o microfone não funcionava, da segunda vez o enquadramento não estava bem. Eram actos falhados contínuos”, diz Catarina Mourão. “Apesar de ser a minha mãe, em cinema as pessoas são sempre outra coisa. E isso não é diferente de qualquer outro filme. Foi preciso tempo. Se não, mais tempo ainda. Porque eu conheço-a, portanto topava quando é que a minha mãe se estava a defender.”
O filme é narrado na primeira pessoa pela realizadora, que também aparece – questionando a mãe ou organizando fotografias e documentos como um detective. “Eu sabia que eventualmente a minha voz iria  aparecer. Mas mal comecei a filmar a minha mãe, não me pareceu justo ela estar ali sozinha. Achei que havia momentos em que eu teria de estar com ela. Apareço com ela e depois apareço mais em ligações a coisas, de costas, a mexer nas coisas. Achei importante esse lado de ‘escritório’. É muito um filme de papelinhos, de coisas que se colam.”
Kathleen Gomes, publico



As famílias nem sempre funcionam. Muitas vezes não conseguem sobreviver a experiências fraturantes e acabam mesmo por se partir em estilhaços, grupos ou indivíduos que têm toda uma narrativa sobre como isso aconteceu e que justifica as suas posições. A partir de um álbum de fotografias e de um vídeo de família, Catarina Mourão lança-se numa investigação sobre a sua família, especificamente o seu avô materno.
A tentativa de recolha de mais fragmentos numa relação que, apesar da passagem dos anos, continua ainda sensível, lembra o processo terapêutico. Este sentimento acaba por se reforçar pelo seu tom intimista, pela escala da investigação empreendida e pelos resultados obtidos. Se procuramos aqui alguma grande verdade que se possa aplicar de forma abstrata a qualquer família, não a vamos encontrar. O que não quer dizer que o filme não tenha interesse para outras pessoas. Todo o percurso, tanto da realizadora como da mãe, são fascinantes e a sua candura, tocante.
Construído essencialmente de imagens de arquivo, a forma como estas são apresentadas nem sempre é a mais comum, com a realizadora a procurar mostrar sobreposições, reações e até ausências. Todo o exercício poderia ser demasiado seco, mas a sensibilidade e o sentimento que são introduzidos, quer pela voz off da cineasta, quer pelo discurso da mãe dela, transformam o filme em algo mais: um documentário emocional e emocionante.
João Miranda, c7nema



Começo pelo cinema português e por aquele que considero o melhor trabalho da cineasta até à data, um documentário que traz consigo uma ‘odisseia familiar’ apaixonante: “A Toca do Lobo”, de Catarina Mourão. Foi exibido na secção Spectrum [Festival Internacional de Cinema de Roterdão], em estreia mundial. “A Toca do Lobo” é o nome do romance mais conhecido de Tomaz de Figueiredo (1902-1970), escritor português que dirá pouco à maioria dos leitores de hoje, e avô de Catarina Mourão, que esta não conheceu. A ‘odisseia familiar’ a que nos referimos é a da realizadora. À partida, julgamos estar perante um invulgar álbum íntimo que vai unir quatro gerações da mesma família, recuando a uns anos 40 em que esta vivia confortavelmente em Lisboa, em pleno Estado Novo. Contudo, à medida que as dúvidas da cineasta se vão entrelaçando, levando-a a recorrer a material de arquivo (de home movies descobertos por acaso a uma ‘visionária’ entrevista a Tomaz de Figueiredo feita nos anos 60 para um programa da RTP), é a um fundo de thriller que o filme se entrega: em que circunstâncias, envoltas em segredo, terminou o avô os seus dias? Porque se separou ele da mãe da cineasta a dada altura? Porque não falam mãe e tia há mais de três décadas? E o que aconteceu ao tio, um resistente ao fascismo, preso pela PIDE, de quem a família evitava falar? Neste inquérito pessoal, necessariamente afetivo, “A Toca do Lobo” supera, afinal, o seu registo autobiográfico, revelando tabus e não-ditos de uma vida portuguesa sob a ditadura, bem como as suas consequências no presente.

Francisco Ferreira, Expresso

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