MINHA MÃE, Nanni Moretti. IT, 2015. 106' (M/12)
FICHA TÉCNICA
Título Original: Mia Madre
Argumento e Realização - Nanni
Moretti
Fotografia - Arnaldo Catinari
Montagem - Clelio Benevento
Interpretação: Margherita Buy, John
Turturro, Giulia Lazzarini, Nanni Moretti
Origem: Itália
Ano: 2015
Duração: 106’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cannes 2015 – Selecção
Oficial, Em Competição, Prémio do Júri Ecuménico
Prémios David di Donatello 2015 –
Melhor Actriz e Melhor Actriz Secundária
CRÍTICAS
Continuar a viver
A inesperada maturidade de Nanni Moretti num melodrama
de enorme elegância.
Charles Trenet cantava em tempos “o que ficou dos nossos amores”; Nanni
Moretti pergunta-se o que fica da nossa vida quando ela chega ao fim neste
soberbíssimo melodrama de enorme e elíptica elegância, acompanhando a crise de
consciência de uma realizadora a quem o mundo parece cair em cima no exacto
momento em que a mãe é diagnosticada com uma doença terminal.
É uma obra de uma maturidade inesperada, que faz eco não apenas de O Quarto
do Filho (2001, ainda o nosso Moretti preferido) mas também do Caos Calmo
(2008) de Antonello Grimaldi onde o cineasta foi “apenas” actor e
co-argumentista. Todos são filmes sobre continuar a viver quando tudo parece
deixar de fazer sentido, todos são filmes francamente mais complexos e
elaborados do que dão a entender à primeira vista, todos são filmes com aquela
truculenta capacidade de arrancar um sorriso de reconhecimento que durante
muito tempo foi apanágio do melhor cinema italiano.
A grande depressão
Nanni Moretti retoma um dos temas fundadores do seu
cinema.
Nanni Moretti sabe algumas coisas sobre a depressão. Pode nem ser a tecla
mais batida quando se analisa a sua obra, mas a depressão, a depressão
psicológica, habita quase todos os seus filmes. De Ecce Bombo a Habemus Papam,
passando pela Palombella Rossa ou por O Quarto do Filho, é possível descrever
todos estes filme como histórias de homens (ou mulheres) deprimidos.
Psicoterapia e psicanálise, de forma mais séria ou mais jocosa, espreitam quase
sempre, e num dos primeiros filmes de Moretti (os Sogni d’Oro de 1981) o próprio
Freud aparecia como “personagem”.
Vem esta introdução para dizer que Minha Mãe talvez seja o filme de Moretti
mais concentrado na depressão. Em sentido estrito, através da evolução das suas
personagens principais (nomeadamente a de Margharita Buy, a assumir aquilo que,
isso sim, é raro em Moretti: uma protagonista feminina); mas também em sentido
figurado: socialmente, politicamente, e até artisticamente (a protagonista é
uma realizadora em plena rodagem de um filme sobre uma greve numa fábrica),
Minha Mãe é um filme sobre uma grande depressão, uma depressão total.
Não é errado, mas é curto, ver Minha Mãe como um espelho de O Quarto do
Filho. Esse era um filme sobre o luto dos pais, sobre a perda súbita e
inesperada. Este é um filme sobre a perda anunciada, sobre o luto dos filhos —
ou mais correctamente, sobre a sua antecipação, visto que a senhora (Giulia
Lazzarini, um prodígio de delicadeza enxuta) está viva durante praticamente
todo o filme. A personagem da mãe não sai diminuída com isso, o olhar de
Moretti sobre ela é sempre inteiro, mas o centro do filme e das suas
preocupações não é tanto a velhice (pelo menos da mesma forma como em Habemus
Papam), é mais aquele momento da meia idade em que a velhice passa a estar à
vista. Na complexa teia emocional de Minha Mãe, e sem prejuízo do que se joga
na relação entre mãe e filhos (e neta), o papel decisivo da senhora é
representar esse capítulo final, fazer as outras personagens confrontarem-se
com ele, e assim desencadear a crise, ou a grande depressão. É o filme que Buy
está a fazer que avança mal, a realizadora cheia de dúvidas sobre o seu retrato
de um conflito laboral (questão “lateral” mas que não deixa de estar presente e
é obviamente uma preocupação morettiana: como abordar hoje, com justiça, sem a
“retórica” que “cansa” como diz a personagem, os assuntos de política laboral);
é ela que se descobre num impasse, numa espécie de vala subitamente visível a
afastá-la de todos os outros — da mãe, do irmão (Moretti ele mesmo), da filha,
dos ex-maridos ou ex-namorados. Esta solidão, caída como um nevão de que não se
estava à espera, é o verdadeiro motor do filme, que pode, a partir dela,
desenhar os contornos pouco definidos entre a realidade tangível e a realidade
“interior”: os sonhos, a descrição dos sonhos, sempre na maneira mais correcta
e eficaz de os filmar, ou seja, sem distorções nem sinalizações oníricas,
sempre tão realistas como qualquer cena quotidiana, com o despertar e a
revelação do que afinal era sonho a nunca estarem mais longe do que um simples
corte e mudança de plano. Por vezes trazem mistérios, como aquela cena
belíssima (ao som do Famous blue raincoat de Leonard Cohen) em que a
protagonista se descobre anos atrás, numa fila enorme para um cinema onde se
projecta — percebemo-lo pela alusão no cartaz, mas nunca explicitada — As Asas
do Desejo de Wim Wenders. Para além de um “outro tempo” — o tempo em que os
adultos iam ao cinema —, o que traz essa referência (ainda implícita num
diálogo da velha senhora) ao filme de Moretti? Não é certo, e não é nada de
certo, mas é algo que fica a pairar, assim como um “clima”, assim como, de
resto, as palavras de Cohen naquela canção, talvez os mais desconsolados versos
de abertura de qualquer canção (“são quatro da manhã no fim de Dezembro”), e
tudo concorre para que este seja também o “tempo” do filme de Moretti.
Mas o mais arriscado talvez seja a inclusão da personagem de John Turturro,
na pele de um actor americano que vem interpretar um papel no filme de Buy.
Está sempre fora de tom, incapaz de encontrar o perfil justo, no “filme dentro
do filme”, mas por inerência também sempre em “dessincronia” com o filme de
Moretti, ou como um peixe fora de água — e isso atribui à personagem dele uma
qualidade solitária, que se estranha primeiro e depois se entranha, como se ele
fosse o reflexo bufão da personagem de Margharita Buy e acabasse por haver, no
reconhecimento desse reflexo, uma possibilidade de entendimento. Também
contribui para Moretti dizer algumas coisas sobre o cinema, num filme obcecado
por uma ideia de justeza (e Turturro é tão mais “justo” quanto mais “falso” ou
“artificioso”, num milagroso paradoxo conseguido por Moretti), mas que talvez
também evoque aqueles tempos em que era frequente ver actores americanos a
trocarem o aquário de Hollywood pelas “selvagens” terras italianas (Broderick
Crawford no Bidone de Felllini, Steve Cochran no Grito de Antonioni, Orson
Welles na Ricotta de Pasolini, e outros).
Nos seus modos “benigni-escos”, Turturro é a expressão da inquietação que a
personagem de Buy abafa e interioriza. E se, para o final, está reservada a
cena mais pacífica de todo o filme (a velha senhora a ajudar a neta nos
trabalhos de latim — e o latim sempre como um eco profundo), essa inquietação
não se resolve: Minha Mãe fecha-se entre a paz da morte e o desassossego da
vida, sem um sorriso nem uma saída.
ENTREVISTA
‘Como mudança radical acho que não; como maior serenidade também não; como maior tolerância, acho que sim’ Augusto M. Seabra, Público, 13/11/2015
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