QUE
HORAS ELA VOLTA?
Anna Muylaert
Brasil, 2015, 111’, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Anna Muylaert
Montagem: Karen Harley
Fotografia: Barbara Alvarez
Música: Vitor Araújo e
Fábio Trummer
Interpretação: Regina casé, Michel Joelsas, Camila
Márdila, Karine Teles, Antonio Abujamra, Helena Albergaria
Origem: Brasil
Ano: 2015
Duração: 111’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlim – Prémio do Público
Festival Sundance – Prémio do Júri
Festival Sundance – Prémio do Júri
CRÍTICA
Se dissermos que há muito tempo não nos
retorcíamos na cadeira com tamanho desconforto durante um filme, isso deve ser
entendido como um enorme elogio à brasileira Anna Muylaert, que põe com esta
sua quarta longa-metragem o “dedo na ferida” das desigualdades sociais. É
verdade que Que
Horas Ela Volta?, centrado numa empregada interna que vive em
casa dos patrões ricos, se ancora numa realidade especificamente brasileira.
Mas o que está em jogo aqui, de modo muito mais universal, é a dignidade humana
e as relações de poder, entre os que “têm” e os que “não têm” (dinheiro,
educação, classe).
Val (Regina Casé) é empregada de uma
família paulista há quase 20 anos, ao ponto de ser mais mãe do filho do casal
do que da sua própria filha Jessica, que deixou para trás na província enquanto
ganhava dinheiro para a sustentar. Quando Jessica vem a São Paulo para o exame
de admissão à faculdade de arquitectura, a sua chegada abala o equilíbrio
social estabelecido na vivenda do Morumbi: ela não encaixa no lugar-comum da “filha
da criada”, e a sua recusa em jogar o jogo dos ricos e dos pobres vem baralhar
o status
quo,
entalando um pauzinho na engrenagem que mantém Val subserviente à mesquinhez
aleatória da patroa Bárbara. Não por acaso, nesta arena doméstica onde tudo se
joga de modo subterrâneo, através de palavras e actos calculados para ferir
onde mais magoa, os homens são simples figuras emasculadas que servem ao mesmo
tempo de testemunhas e fantoches. O verdadeiro poder está nas mãos das
mulheres.
Anna Muylaert filma esta história de
guerra psicológica com uma distância calculada para criar o máximo efeito,
jogando de modo extremamente inteligente com o fora de campo, com o espaço da
casa, com os planos de conjunto. Mas não resiste a “pacificar” o filme com um
final “feliz” que, sem ser descabido, neutraliza parte da violência psicológica
do que veio antes, inscrevendo-se numa lógica narrativa que deixa a história
embrulhadinha e atadinha. Nesse aspecto, O
Som ao Redor de
Kleber Mendonça Filho (2012) apresentava um retrato menos arrumadinho da luta
de classes que borbulha logo abaixo da superfície do Brasil moderno. Mas é
também sinal de que a realizadora compreendeu que o que estava em jogo era a
necessidade de uma catarse e de uma redenção para o espectador, e que isso exigia
um final certinho. E é mesmo só por aí que Que
Horas Ela Volta? fica
aquém do que promete durante a maioria da sua desconfortável duração.
Jorge Mourinha, Público
ENTREVISTA
Numa conversa com o C7nema, realizada por ocasião da estreia por cá (03/12) do seu muito falado Que Horas Ela Volta?, Anna Muylaert não variou muito do discurso que tem sustentado no Brasil, onde algumas polémicas intensas acompanharam o lançamento do filme. Por razões enviesadas, essa perspetiva acentuadamente feminina sobre a relação de classes ganhou o lugar de bastião do feminismo depois que dois famosos (e controversos) realizadores brasileiros, Lírio Ferreira e Cláudio Assis, interromperem a apresentação do filme numa sessão com a realizadora no Recife com comentários alegadamente machistas.
A controvérsia na imprensa e nas redes sociais foi longa e, embora Muylaert já na altura ter perdoado os colegas pelos insultos de que foi alvo (algo que reiterou na nossa conversa), a cena tornou-se simbólica de um ano em que, seguida pela magnífica trajetória internacional do filme (com prémios em Sundance e Berlim), foi também de grande sofrimento. E, segundo ela, este vem exclusivamente do facto de que, se por um lado as mulheres hoje "podem fazer de tudo", quando alcançam o sucesso a conversa muda de tom...
De resto, enquanto o seu novo projeto entra em fase de pós-produção ("Mãe É só Uma"), sobre um adolescente transgénero, Anna Muylaert aguarda a divulgação, agendada para janeiro, da lista de projetos nomeados para o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira.
Guerras, glórias e... cotoveladas
Eu sofri muito esse ano, não foi um ano só de glórias, mas de guerras também. Eu descobri que as mulheres hoje podem, de facto, fazer tudo o que quiserem, mas é difícil elas ocuparem um papel de destaque. Isso continua. Eu posso fazer filmes, mas se o meu filme ganhar em Berlim, complica. É que eu me torno uma figura que ninguém sabe onde eu sento. Porque o poder no cinema está na mão dos homens. Mulher pode fazer o seu filmezinho... se for curta, ainda. Mas ter destaque igual? Não tem cadeira para mim. Eu me torno uma figura perigosa.
O Brasil tem várias realizadoras, mas que tenham alcançado um certo nível de sucesso internacional não existem. Eu sou a primeira. Pode procurar na sua memória. A última que fez algum sucesso internacional foi a Susana Amaral há 30 anos atrás. Mas o mercado era outro. Eu mesma já fiz filmes de sucesso, mas não tanto. Na hora que eu cheguei nesse lugar levei muita cotovelada. Levei rasteiras o ano inteiro.
Eu não sabia que isso existia. Se você me entrevistasse há um ano atrás eu diria: "mulher faz o que quer". Depois que eu ganhei uns prémios grandes como estes tudo mudou. Tanto é que acabou se virando em torno do filme toda uma discussão de feminismo.
As confusões no Recife e o machismo: "é natural desqualificar a voz da mulher".
O que é machismo? O que a mulher pode, o que não pode? Um homem que bate na mulher não é machista, é um criminoso. O machismo é feito de pequenas regras que ninguém sabe identificar, que põe a mulher para baixo, que as desqualificam e tiram a sua voz...
O debate no Recife, por exemplo. Foi uma besteira, eles estavam bêbados. Eles queriam me prestigiar. Mas como eles são tão importantes, pegaram no microfone e falaram no meu lugar. É natural, é antigo. Não é maldade. Tem voz? Deixa que eu falo. Uma das regras do machismo é "o que nós temos para falar é mais importante do que elas têm para falar".
É uma atitude mental enraizada. Eu estava num avião indo de Los Angeles a São Paulo e pensei que, se o piloto fosse mulher, eu não iria confiar. Depois raciocinei: bom, se o piloto fosse mulher, ela teria tido o mesmo curso que um homem, teria aprendido a mesma coisa, até porque as mulheres são estudiosas. Mas tive de fazer o raciocínio, pois são lugares onde você nunca viu uma mulher.
Que Horas Ela Volta?: mulheres fortes, homens com dinheiro.
Não foi intencional que os homens do filme sejam fracos, mas acho que foi natural. Porque eu acho que quando o assunto é a educação de uma criança só tem mulher... Mas isto tem sido muito discutido. Acho que a mulher está num momento forte e o homem precisa entender o seu lugar e lidar com essa mulher e acho que ainda não entendeu. Mas de toda a maneira, o dinheiro do mundo ainda está na mão do homem e isso o filme também mostra. Ele (o dono da casa) não faz nada, mas o dinheiro era dele. Como ele diz, "todo mundo dança mas sou eu que ponho a música".
Relações universais de poder.
No começo tínhamos medo até que não fosse entendido, justamente por ser um filme muito específico na forma de relação que mistura o afeto com o trabalho, que é uma realidade que pode não ser comum fora do Brasil. Mas ele foi logo compreendido, então reparei que a relação de poder está em todo o lugar. No escritório, por exemplo,uma relação de poder vertical está presente.
Maternidade
A ideia para o filme surgiu quanto eu tive um filho, portanto a questão da maternidade veio primeiro – e com ela de como o trabalho de mãe é desvalorizado. Depois entrou o enfoque social, pois percebi que esta perspetiva era muito rica na medida em que, na cultura brasileira, a confusão começa já na primeira infância, pois a mãe é desvalorizada e, muitas vezes por ser pobre, tem de deixar os filhos para segundo plano. Aí entra a questão do compromisso e tudo o mais. E houve uma atualização há seis meses da filmagem que foi a figura da jessica e o modo como ela é no filme, é uma figura contemporânea, de um novo Brasil, que não existira há 20 anos atrás.
Nada de telenovelas.
Eu não assisto a novelas, eu não gosto de melodrama. Achei que tinha de ser seco mesmo, foi natural. E a fotógrafa, a Bárbara Alvarez, ajudou muito neste sentido, porque ela não gosta nem de movimento de câmara, então tudo é muito seco, muito cru no filme. Eu acho que juntei uma equipa muito crua. Não dá margem para o sentimentalismo, embora dê margem para a emoção. O fim do filme, a cena da piscina são emocionais, mas não sentimentais. Não há uma tentativa de produzir emoção, ela vem da história.
Influências cinematográficas.
As influências cinematográficas começam pelas trazidas pela diretora de fotografia, Bárbara Alvarez, que trabalhou em Whisky (de Juan Pablo Rebella, Pablo Stoll, Uruguai, 2004), que esteve em Cannes e é um filme incrível, feito inteiramente de planos médios. Ela também fez El Custódio, filme argentino do Rodrigo Moreno, onde a câmara está sempre no guarda-costas e você nunca vê a cena principal.
O Som ao Redor [de Kleber Mendonça Filho] também teve uma influência a nível ideológico, porque a Jéssica, durante muitos anos, era o cliché da filha da empregada. Ela vinha fraca e O Som ao Redor me ajudou a encontrar esse caminho de encontrar a filha de uma empregada forte, visível. Durante anos ela vinha para se viabilizar... e terminava como babá. Depois do argumento pronto me falaram que estava muito parecido com o Teorema e aí eu fui rever e me ajudou – principalmente o facto de ser inteiramente dentro da casa. Antes havia uma cena que incluía uma viagem, mas foi cortada em função do orçamento. E quando eu vi o Teorema percebi que é possível fazer algo passado inteiramente no mesmo lugar. Foram as minhas influências.
Sem dúvida que sinto a pressão. Mas eu já fiz outro filme, que estou terminando, e não tem nada a ver com esse. É um filme sobre adolescentes, com câmara na mão e é a história de um menino transgénero. Chama-se Mãe só Há uma. Mas com certeza, no próximo projeto toda essa experiência agora faz parte de mim, não só do sucesso mas do debate que o filme gerou. Entendi que o filme político vai mais longe. Eu tenho muita vontade hoje de fazer um filme sobre o machismo. Investigar como ele acontece, porque ele é invisível, é escondido, está em baixo da mesa. Neste momento não sei como ele acontece. Eu gostaria de investigar isso. O "Força Maior", o filme sueco, é um filme que fala disso de um jeito interessante.
Rori Nunes, c7nema.net
TRAILER
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