CRUZEIRO
SEIXAS - AS CARTAS DO REI ARTUR
Cláudia Rita Oliveira
Portugal, 2017, 85’, M/12
PRESENÇA DA REALIZADORA
FICHA TÉCNICA
Realização e Fotografia: Cláudia Rita Oliveira
Criação Gráfica: FIM (com participação de Tânia Pires)
Vozes: André Albuquerque | Joana Manuel
Música: Mighty Sands | Ricardo
Freitas | Sara Vicente
Montagem: Cláudia Rita Oliveira
Origem: Portugal
Ano: 2017
Duração: 85’
CRÍTICA
Poderia ser um filme sobre a vida e obra do Mestre,
mas é sobretudo um filme sobre o vínculo, fusional e determinante, entre
Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny, dois nomes maiores do movimento surrealista
em Portugal. A realizadora conta que o objectivo inicial seria fazer um
documentário sobre a obra de Cruzeiro Seixas, mas ao longo de quatro anos de
uma rodagem complicada (por falta de tempo e de financiamento), o nome de
Cesariny surgia recorrente nas entrevistas, independentemente do episódio em
discussão. Em todos os momentos, Cruzeiro fala de si através de Cesariny – por
oposição, por comparação, por referência – como se a ligação a Cesariny fosse a
lente através da qual relembra o seu passado.
Cruzeiro Seixas – As Cartas do Rei Artur rouba o nome
a um excerto de uma de muitas cartas enviadas por Cesariny a Cruzeiro entre
1941 e 1974, compiladas no livro Cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro
Seixas (2014). É através delas e dos seus 57 diários (de apontamentos,
fotografias, citações, colagens e desaforismos) que Cruzeiro Seixas
revisita, com um misto e saudade e ironia, 95 anos de pintura e poesia vividos
à sombra de Cesariny. As recordações de que dá conta são ambíguas e sem
cronologia (como os seus diários), mas possuem uma lucidez que incomoda.
Neste
filme, conhecemos Artur Manuel Rodrigues do Cruzeiro Seixas, o homem que não
gosta de se afirmar como um artista (mas apenas como um homem que pinta), e
acedemos a uma narrativa feita de solidão, arrependimento e desencontros.
Ficamos também a conhecer, na mesma medida, o Mário Cesariny – amigo, colega,
talvez amante – que Cruzeiro conhece na juventude quando ambos frequentavam a
Escola António Arroio, que exibia a sua homossexualidade de forma provocatória
enquanto Cruzeiro a resguardava, que ostentava a sua rebeldia e independência
enquanto Cruzeiro se conformava, que o assombrava na arte e na vida. Conhecemos
a história de amor que nunca o chegou a ser, sendo essa ausência de
plenitude que conservou viva uma paixão que sobreviveu ao tempo, à distância e
à morte. Na casa de Cruzeiro em Vila Nova de Famalicão (para onde se mudou a
contragosto depois de doar o seu espólio ao Centro de Estudos do Surrealismo da
Fundação Cupertino de Miranda), existe um quadro escrito a fósforos que formam
a frase: A Palavra Amor é Incendiária.
Transparece no documentário um sentimento profundo de afecto e admiração, mas
também de sujeição perante um homem que, depois de morto, é ainda o seu elo de
ligação à vida.
A
primeira longa-metragem da Cláudia Rita Oliveira – estreada no DocLisboa’16 – conseguindo atravessar
o universo pessoal de uma personalidade tão singular, oferece um retrato
directo e sem artifícios da sua intimidade. É um filme-confissão, que se
constrói a partir da sua personagem e aos poucos se desloca para outra, que
mora nas memórias da primeira. Mas seria redutor considerar que As
Cartas do Rei Artur é
apenas sobre a história de amor e desamor entre estes dois homens. Cuidadoso na
montagem das conversas, registos, objectos e imagens de arquivo e aceitando a
figura de Cesariny como fio condutor inevitável, é também um documento
necessário sobre um certo tempo, um movimento artístico, uma sociedade e uma
elite, e uma homenagem maravilhosa que faz finalmente justiça a um sobrevivente
esquecido de uma geração desaparecida: Um homem sofrido, deixado às suas
lembranças – que nos diz que não viveu, mas nos deixará os documentos
desse não viver.
Edite Queiroz, arte-factos
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