O MEU
BELO SOL INTERIOR
Claire Denis
França/Bélgica, 2017, 95', M/14
FICHA TÉCNICA
Título Original: Un beau soleil intérieur
Realização: Claire Denis
Argumento: Claire Denis e Christine Angot
Montagem: Guy Lecorn
Imagem: Agnès Godard – AFC
Música original: Stuart A. Staples
Interpretação: Juliette Binoche, Xavier Beauvois,
Philippe Katerine, Josiane Balasko, Sandrine
Dumas, Nicolas Duvauchelle, Alex Descas,
Laurent Grevill, Bruno Podalydes, Paul Blain,
Valeria Bruni-Tedeschi, Gérard Depardieu
Origem: França/Bélgica
Ano: 2017
Duração: 95'
FESTIVAIS
Festival de Cannes - Quinzena dos Realizadores - Filme de Abertura
TRAILER
CRÍTICA
Juliette Binoche faz amor na primeira sequência
deste seu 'sol' que aprendemos a descobrir ser belo.
É uma artista plástica em Paris, divorciada,
mãe de uma rapariga, tem a idade da atriz que todos conhecemos, sem
subterfúgios, sem vergonha, sem make up. Ao fim de meia hora, descobrimos que
ela se chama Isabelle. É como se Claire Denis nos quisesse dizer aquilo que
Godard disse quando filmou Bardot nua no início de "O Desprezo": eis
a atriz e a personagem, expostas na sua nudez, comecemos por aquilo que os
outros filmes guardam para o meio, porque a partir daqui a viagem é interior.
Que nos conta este filme de Denis? O percurso sentimental de uma mulher? A sua
busca do amor entre um amante e outro, todos homens malsãos que não se
comprometem? O da cena inicial, Vincent (papel do excelente cineasta e ator
ocasional Xavier Beauvois) é um banqueiro bonacheirão, maníaco, casado não está
disposto a romper com a mulher. Nem quer saber do prazer de lsabelle. Outro
pretendente, Mathieu (interpretado pelo músico Philippe Katerine), insinua-se, blasé,
à protagonista na peixaria do bairro. Sem consequências. Outro amante mais
jovem, ator de teatro de quem nunca saberemos o nome e que Nicolas Duvauchelle
interpreta, vem de um flirt ocasional, uma ida ao café após o termo de uma
representação e que acaba na cama, mas aquele é um homem magoado.
De seguida, também o ex-marido aparece, sem ter
esquecido o sermão do trauma pós-casamento. E a história do filme, no fundo, é
esta: Isabelle a dizer-nos que "j' ai envie d'un amour, un vrai... "
, e a tropeçar em homens ocupados, inquietos, um bocadinho cobardes, irremediavelmente
infelizes.
Quando vi este filme em Cannes pela primeira
vez (abriu a Quinzena dos Realizadores) julguei que Claire Denis, seguindo o
rasto de Antonioni, nos estava a propor a 'identificação de uma mulher'
(identificação essa que, no filme homónimo do italiano, se perdia entre brumas
e vinha de um olhar masculino). Pensei depois em "Uma Mulher Sob
Influência" , de Cassavetes, em que a alienação, ao contrário do filme de
Antonioni, ficava 'do lado dela' (da Mabel Longhetti que Gena Rowlands
interpretou) — só que a personagem de Cassavetes, também alheia a discursos
moralizadores, era um negro abismo. E Isabelle, pelo contrário, é cristalina
como água, e é outra a sua influência (se guardei a 'influência' do título, é
porque também Denis é uma mulher intuitiva, dada ao que dizem os astros, o
sobrenatural, o destino). Isabelle é uma 'essência de mulher' que Denis
inventou com a argumentista Christine Angot) a partir de "Fragmentos de um
Discurso Amoroso" , ensaio de Barthes que dissolvia com vagar o dito discurso
pela solidão. Ora, a solidão, que vem das misérias do amor, não é outro senão o
tema central de toda a obra da cineasta de "Trouble Every Day",
"L'lntrus" e "White Material". Claire e Christine
fixaram-se depois numa palavra usada por Barthes — “agony" para escreverem
um argumento que, embora influenciado por 'Fragmentos... " , não usou
destes uma só linha. "Aquela palavra" , disse Claire em Cannes,
"colocou-nos num estado de encantamento, de fantasia. E foi de certa forma
o tema das nossas próprias agonias amorosas que nos levou à escrita: a Isabelle
somos nós, pedaços das nossas vidas, frações das nossas histórias. Só depois
Juliette Binoche se materializou no nosso espírito, impondo-se como a
intermediária ideal. Precisávamos de um corpo cremoso, voluptuoso, desejável (e
Binoche esteve tão bela como aqui), uma mulher bela de cara e de carne, pronta
para os combates amorosos e pela qual a vitória, sem estar ganha à partida, é
possível. "
O que é que se passa neste filme que Claire
Denis fez um pouco por acaso, entre o tempo em que ela espera financiamento
para uma obra arrojada de ficção-científica com Robert Pattinson? Passam-se
cenas formidáveis em que cada homem de Isabelle é uma espécie de sonho, a
responder não a cada cor do arco íris mas a um defeito: o egoísmo, a
indiferença, o ciúme, a preguiça... Ao passo que Juliette, disse também Denis,
"deu à personagem uma capacidade imensa de esperar". Ao rever o filme
agora, não pensei mais em Antonioni ou em Cassavetes, mas noutro caminho que
aqueles decidiram não trilhar, e onde talvez existam fantasmas que não se
anunciam (como em tantas outras obras de Denis): e se Isabelle, no fundo, ela
que está tão viva em praticamente todos os planos, ela que, nalguns planos de
corte (que são regards caméra), parece olhar para a audiência, fosse um espelho
para nós? E se fosse ela a ilusão? E se este filme só tratasse, não de
Isabelle, mas dos seus amores descompostos, isto é, da confusão que os homens
têm em relação ao amor? Não estou seguro que Claire Denis partilhe esta
opinião, mas ela é admissível.
Em "O Meu Belo Sol Interior", estamos
num ambiente “infeto” (o da burguesia intelectual parisiense) onde se passam
tantos filmes franceses detestáveis, num tempo suspenso de banalidades em que
Isabelle, ela que é a única que tem dúvidas e que faz perguntas, se dá ao luxo
de se se virar às tantas para um taxista com isto: "Como é que vai a sua
vida?" Ora, o que é espantoso neste filme de uma mulher "mesmo
mulher, sem tabus; nem puta nem ninfomaníaca" (Denis dixit), ela que
estará mais perto "do hedonismo de um Casanova do que de uma versão feminina de Don Juan" , é que tudo se
sedimenta, não nas sebentas da dramaturgia, mas numa ironia finíssima. Não é
comédia idiota de rir a bandeiras despregadas, nem adaptação literária (embora
a ironia esteja no texto de Barthes) ,
antes uma farsa que se vai descobrindo e encarnando a pouco e pouco, numa
construção intuitiva e inteligente.
Numa cena mais perto do final em que Isabelle
se deixa embalar pelo 'At Last' , de Etta James ("At last my love has come
along..."), conduzida por um homem duro que nada tem que ver com aquele
meio social (é Paul Blain que o interpreta, numa cena de sedução muito
conseguida), julgamos que a protagonista vai finalmente encontrar um equilíbrio
entre aquilo que ela procura nos homens e o que deles obtém. Mas não: para que
a farsa continue e, por fim, se concretize num pleno de risos e lágrimas,
faltará a Claire Denis um medium com corpo de ogre, capaz de por em cima da
mesa todos os matizes do jogo, capaz de ‘curar almas' pela musicalidade de um
discurso que, jura-se, não responde em nada à razão (é um momento de esplendor
a nascer de um absurdo indescritível), mas que faz todo o sentido. Ao filme e a
Isabelle, pois serve-lhe, enfim, de miraculosa consolação: "vous avez
besoin de l' authentique... ' Esse encontro entre dois atores tão gigantes como
são Juliette Binoche e Gérard Depardieu, jura-se também, mergulha no âmago dos
seres e faz tremer o ecrã. Não me perguntem como é que isso é possível, é por
isso que o cinema às vezes é grande, apenas digo que o belo sol interior vem
dali. E é isto, o filme de Claire Denis: uma obra iluminada à procura de
impossíveis, com dois fantasmas que vêm ao nosso encontro e devolvem uma mulher
à realidade da vida, tudo em souplesse, na "lumière ardente de
l'âme".
Francisco
Ferreira, Expresso
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