O MEU BELO SOL INTERIOR | 6 FEV | 21H30 | IPDJ



O MEU BELO SOL INTERIOR 
Claire Denis
França/Bélgica, 2017, 95', M/14

FICHA TÉCNICA 
Título Original: Un beau soleil intérieur
Realização: Claire Denis
Argumento: Claire Denis e Christine Angot
Montagem: Guy Lecorn
Imagem: Agnès Godard – AFC
Música original: Stuart A. Staples
Interpretação: Juliette Binoche, Xavier Beauvois, 
Philippe Katerine, Josiane Balasko, Sandrine 
Dumas, Nicolas Duvauchelle, Alex Descas, 
Laurent Grevill, Bruno Podalydes, Paul Blain, 
Valeria Bruni-Tedeschi, Gérard Depardieu
Origem: França/Bélgica
Ano: 2017
Duração: 95'

FESTIVAIS 
Festival de Cannes - Quinzena dos Realizadores - Filme de Abertura
TRAILER

CRÍTICA 
Juliette Binoche faz amor na primeira sequência deste seu 'sol' que aprendemos a descobrir ser belo.
É uma artista plástica em Paris, divorciada, mãe de uma rapariga, tem a idade da atriz que todos conhecemos, sem subterfúgios, sem vergonha, sem make up. Ao fim de meia hora, descobrimos que ela se chama Isabelle. É como se Claire Denis nos quisesse dizer aquilo que Godard disse quando filmou Bardot nua no início de "O Desprezo": eis a atriz e a personagem, expostas na sua nudez, comecemos por aquilo que os outros filmes guardam para o meio, porque a partir daqui a viagem é interior. Que nos conta este filme de Denis? O percurso sentimental de uma mulher? A sua busca do amor entre um amante e outro, todos homens malsãos que não se comprometem? O da cena inicial, Vincent (papel do excelente cineasta e ator ocasional Xavier Beauvois) é um banqueiro bonacheirão, maníaco, casado não está disposto a romper com a mulher. Nem quer saber do prazer de lsabelle. Outro pretendente, Mathieu (interpretado pelo músico Philippe Katerine), insinua-se, blasé, à protagonista na peixaria do bairro. Sem consequências. Outro amante mais jovem, ator de teatro de quem nunca saberemos o nome e que Nicolas Duvauchelle interpreta, vem de um flirt ocasional, uma ida ao café após o termo de uma representação e que acaba na cama, mas aquele é um homem magoado.
De seguida, também o ex-marido aparece, sem ter esquecido o sermão do trauma pós-casamento. E a história do filme, no fundo, é esta: Isabelle a dizer-nos que "j' ai envie d'un amour, un vrai... " , e a tropeçar em homens ocupados, inquietos, um bocadinho cobardes, irremediavelmente infelizes.

Quando vi este filme em Cannes pela primeira vez (abriu a Quinzena dos Realizadores) julguei que Claire Denis, seguindo o rasto de Antonioni, nos estava a propor a 'identificação de uma mulher' (identificação essa que, no filme homónimo do italiano, se perdia entre brumas e vinha de um olhar masculino). Pensei depois em "Uma Mulher Sob Influência" , de Cassavetes, em que a alienação, ao contrário do filme de Antonioni, ficava 'do lado dela' (da Mabel Longhetti que Gena Rowlands interpretou) — só que a personagem de Cassavetes, também alheia a discursos moralizadores, era um negro abismo. E Isabelle, pelo contrário, é cristalina como água, e é outra a sua influência (se guardei a 'influência' do título, é porque também Denis é uma mulher intuitiva, dada ao que dizem os astros, o sobrenatural, o destino). Isabelle é uma 'essência de mulher' que Denis inventou com a argumentista Christine Angot) a partir de "Fragmentos de um Discurso Amoroso" , ensaio de Barthes que dissolvia com vagar o dito discurso pela solidão. Ora, a solidão, que vem das misérias do amor, não é outro senão o tema central de toda a obra da cineasta de "Trouble Every Day", "L'lntrus" e "White Material". Claire e Christine fixaram-se depois numa palavra usada por Barthes — “agony" para escreverem um argumento que, embora influenciado por 'Fragmentos... " , não usou destes uma só linha. "Aquela palavra" , disse Claire em Cannes, "colocou-nos num estado de encantamento, de fantasia. E foi de certa forma o tema das nossas próprias agonias amorosas que nos levou à escrita: a Isabelle somos nós, pedaços das nossas vidas, frações das nossas histórias. Só depois Juliette Binoche se materializou no nosso espírito, impondo-se como a intermediária ideal. Precisávamos de um corpo cremoso, voluptuoso, desejável (e Binoche esteve tão bela como aqui), uma mulher bela de cara e de carne, pronta para os combates amorosos e pela qual a vitória, sem estar ganha à partida, é possível. "
 O que é que se passa neste filme que Claire Denis fez um pouco por acaso, entre o tempo em que ela espera financiamento para uma obra arrojada de ficção-científica com Robert Pattinson? Passam-se cenas formidáveis em que cada homem de Isabelle é uma espécie de sonho, a responder não a cada cor do arco íris mas a um defeito: o egoísmo, a indiferença, o ciúme, a preguiça... Ao passo que Juliette, disse também Denis, "deu à personagem uma capacidade imensa de esperar". Ao rever o filme agora, não pensei mais em Antonioni ou em Cassavetes, mas noutro caminho que aqueles decidiram não trilhar, e onde talvez existam fantasmas que não se anunciam (como em tantas outras obras de Denis): e se Isabelle, no fundo, ela que está tão viva em praticamente todos os planos, ela que, nalguns planos de corte (que são regards caméra), parece olhar para a audiência, fosse um espelho para nós? E se fosse ela a ilusão? E se este filme só tratasse, não de Isabelle, mas dos seus amores descompostos, isto é, da confusão que os homens têm em relação ao amor? Não estou seguro que Claire Denis partilhe esta opinião, mas ela é admissível.

Em "O Meu Belo Sol Interior", estamos num ambiente “infeto” (o da burguesia intelectual parisiense) onde se passam tantos filmes franceses detestáveis, num tempo suspenso de banalidades em que Isabelle, ela que é a única que tem dúvidas e que faz perguntas, se dá ao luxo de se se virar às tantas para um taxista com isto: "Como é que vai a sua vida?" Ora, o que é espantoso neste filme de uma mulher "mesmo mulher, sem tabus; nem puta nem ninfomaníaca" (Denis dixit), ela que estará mais perto "do hedonismo de um Casanova do que de uma versão  feminina de Don Juan" , é que tudo se sedimenta, não nas sebentas da dramaturgia, mas numa ironia finíssima. Não é comédia idiota de rir a bandeiras despregadas, nem adaptação literária (embora a ironia  esteja no texto de Barthes) , antes uma farsa que se vai descobrindo e encarnando a pouco e pouco, numa construção intuitiva e inteligente.
Numa cena mais perto do final em que Isabelle se deixa embalar pelo 'At Last' , de Etta James ("At last my love has come along..."), conduzida por um homem duro que nada tem que ver com aquele meio social (é Paul Blain que o interpreta, numa cena de sedução muito conseguida), julgamos que a protagonista vai finalmente encontrar um equilíbrio entre aquilo que ela procura nos homens e o que deles obtém. Mas não: para que a farsa continue e, por fim, se concretize num pleno de risos e lágrimas, faltará a Claire Denis um medium com corpo de ogre, capaz de por em cima da mesa todos os matizes do jogo, capaz de ‘curar almas' pela musicalidade de um discurso que, jura-se, não responde em nada à razão (é um momento de esplendor a nascer de um absurdo indescritível), mas que faz todo o sentido. Ao filme e a Isabelle, pois serve-lhe, enfim, de miraculosa consolação: "vous avez besoin de l' authentique... ' Esse encontro entre dois atores tão gigantes como são Juliette Binoche e Gérard Depardieu, jura-se também, mergulha no âmago dos seres e faz tremer o ecrã. Não me perguntem como é que isso é possível, é por isso que o cinema às vezes é grande, apenas digo que o belo sol interior vem dali. E é isto, o filme de Claire Denis: uma obra iluminada à procura de impossíveis, com dois fantasmas que vêm ao nosso encontro e devolvem uma mulher à realidade da vida, tudo em souplesse, na "lumière ardente de l'âme". 
Francisco Ferreira, Expresso





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