I AM
NOT YOUR NEGRO - NÃO SOU O TEU NEGRO
Raoul Peck
França/EUA,
2016, 93', M/12
FICHA TÉCNICA
Realização: Raoul Peck
escrito por James Baldwin
com a voz de Samuel L. Jackson
Montagem: Alexandra Strauss
Imagem: Henry Adebonojo, Bill Ross, Turner Ross
Animado por Michel Blusten
Música: Alexei Aigui
Origem: França/EUA
escrito por James Baldwin
com a voz de Samuel L. Jackson
Montagem: Alexandra Strauss
Imagem: Henry Adebonojo, Bill Ross, Turner Ross
Animado por Michel Blusten
Música: Alexei Aigui
Origem: França/EUA
Ano: 2016
Duração: 93'
FESTIVAIS
Festival de
Berlim - Berlinale Special
Festival de Toronto
Festival de Toronto
CRÍTICA
O grande choque, conta James Baldwin no texto lido em off
por Samuel L. Jackson, aconteceu no momento em que percebeu que, apesar de se
identificar com o herói Gary Cooper, o herói não se identificava com ele – e
que portanto ele, “índio”, negro, não-branco, era o inimigo. A virtude maior do
filme de Raoul Peck sobre o legado de Baldwin é saber pegar nas questões de
imagem e de representação (dos negros americanos) e dar-lhes um sentido, material
e documental, que às vezes é um pouco mais do que meramente ilustrativo.
A representação cultural precede a representação
política, e as palavras combativas de Baldwin voltam insistentemente a este
ponto – contar a história dos negros americanos, antes e depois do movimento
pelos direitos cívicos, é contar a história de um segmento da população que,
durante décadas (ou séculos), não teve direito, pelo menos a uma escala
massificada, à auto-representação. Viveu com imagens criadas por outros,
retratos de “criaturas que existem apenas na imaginação dos brancos” (dixit
Baldwin), sem um espelho (o outro choque, diz Baldwin, é por volta dos cinco
anos, quando “o negro percebe que não é branco”). Se o diálogo é ainda
impossível, ou pelo menos muito difícil, é porque o “negro” é uma “invenção do
branco”, ouvimos ainda nas palavras de Baldwin, possuidoras de um eco
singularmente godardiano (quando o franco-suíço fala, por exemplo, da Palestina
como uma “projecção” de Israel).
Não espanta, pois, que para além das fortíssimas e
complexas palavras de Baldwin (que o filme, na locução sóbria de Jackson,
restitui sem pedagogia nem floreados), boa parte de Eu Não Sou o teu Negro
repouse em imagens – imagens do cinema clássico americano (“reflexo de um mundo
racista” mais do que entidade especialmente racista, como Baldwin frisa),
imagens da publicidade, retratos falsos, fantasiosos, ofensivos.
E depois, o seu contracampo, os mártires (os
três amigos que estão na base do texto de Baldwin: Medgar Evers, Martin Luther
King e Malcolm X, todos assassinados), os humilhados, os linchados, os
cadáveres que são cadáveres por nenhuma razão para além de serem negros.
Peck encontra as imagens que sustentam o texto de Baldwin, ou com que o texto
de Baldwin dialoga, e por vezes, somando dois mais dois, vai um passo em
frente; como naquele momento, perto do final, em que o texto de Baldwin comenta
que o mundo representado pelo rosto de Doris Day nunca foi realmente
confrontado com o mundo representado pelo rosto de Ray Charles, e Peck faz
suceder a um plano do rosto choroso de Doris Day, como um contracampo
imaginário, o documento fotográfico de um negro sumariamente enforcado num
tronco de árvore.
Amplamente documentado, e com muitas imagens de
intervenções públicas e televisivas do próprio Baldwin, montado com dinamismo, Eu Não Sou o teu Negro é uma
peça importante para se perceber um pouco melhor o que raio se passa, o que
raio ainda se passa, na América destes dias.
Luís
Miguel Oliveira, Público
ENTREVISTA
AO REALIZADOR
Conversámos com Raoul Peck no último Festival
de Berlim onde ele estreou dois filmes, a ficção "O Jovem Karl Marx"
e este documentário mais valioso, "Eu Não Sou o Teu Negro'.
Peck demonstra que os pensamentos e as causas
de Baldwin [1924-1987], escritor mal conhecido e pouco traduzido na Europa,
continuam a ecoar no presente. E no cinema.
Em que momento da sua vida tomou contacto
com a obra — e o legado político — de James Baldwin?
Nem sei
responder, li-o muito cedo, desde que comecei a ganhar uma consciência
política. Usei-o como um guia, como um filósofo, como um escritor de cabeceira
a que recorremos em tempos de confusão. Baldwin 'não se lê': vivemos com ele. A
sua escrita é tão cheia de realidade, tão rica em metáforas, que não se esgota.
Eu estava bem ciente do papel que ele representou na minha vida. Por isso
mesmo, quando há dez anos decidi começar a fazer este filme, a proposta já não
passava pela minha descoberta. As questões de trabalho que coloquei foram
outras: como é que eu consigo levar os seus pensamentos a uma grande audiência?
Como posso ter a certeza de que Baldwin não será esquecido? Algumas vez as suas
palavras serão estudadas nos liceus e universidades?
O filme recorre a muito material de
arquivo mas também a imagens novas que filmou da atualidade. Porquê?
Essencialmente,
nada mudou é esse o motivo. Acho que nas últimas duas décadas nos habituámos a
ser muito superficiais sobre o que se passa no mundo. Já não olhamos para a
grande História com H maiúsculo. Passamos de anedota a anedota e as nossas
vidas são feitas assim, das breaking news da CNN. Perdemos o foco. Já não discernimos
os episódios corriqueiros da vida das coisas importantes. O Twitter e o
Facebook também estão a alimentar a máquina, o que conta é isto [e estala os
dedos], o momento. Baldwin trabalha sobre outras coisas. Projeta-nos em
problemáticas fundamentais, obriga-nos a pensar nelas. Onde estamos nós? Algo
de fundamental para a sociedade aconteceu hoje? Quantos negros estão nas
prisões americanas e porquê? Quantas famílias negras crescem sem pai ou mãe? Porque é que os negros
não têm o mesmo direito à habitação? Etc. , etc... Nenhuma televisão fala
disto. Baldwin falou.
Donald Trump é desde o mês passado
[a entrevista foi gravada em feveleiro] Presidente dos Estados Unidos. Que
comentário tem a fazer?
Trump faz parte
de toda esta mitologia da inocência que tomou conta do país. Podes cometer os
crimes de colarinho branco que quiseres e depois basta-te pedir desculpa: e és
um homem novo. O Baldwin dizia que vivia num país em que a imaturidade se
tornou uma virtude. Trump é o produto perfeito dessa virtude. É caricatural,
tal como Clinton e tantos outros foram. Enfim, um bocadinho mais do que os
outros... Ele compreendeu inteiramente o poder dessa caricatura. E usou-a em
seu proveito, triunfando.
O cinema também contribuiu para essa
"mitologia da inocência" a que se refere? É o que o seu filme
insinua.
Quando
conhecemos a América — e a Europa não lhe foi imune — sabemos que desde a
infância fomos protegidos por figuras como o John Wayne, que nos habituámos a
ver na tela. Os americanos têm este tipo de sentimentos bem inculcados no seu
âmago. É como se eles não precisassem de crescer, porque o John Wayne está ali,
a protegê-los do perigo. E esta é uma atitude infantil, claro. Uma negação da
realidade. A realidade é Hollywood, a vida é bela e nós também somos heróis.
Podemos construir uma vida inteira alicerçada em mentiras. Foi o que Hollywood
fez à América, e depois ao resto do planeta.
Claro!
"Tarzan"! E quando aos 8 anos fui com os meus pais ao Congo, fiquei
assustado: a África não é nada disto, eles não andam todos contentes a dançar à
roda do tambor com flechas na mão a darem-me as boas-vindas!
Ainda vê filmes americanos?
Vejo
menos. Procuro filmes que estão fora do sistema e de Hollywood. Há gente
importante a tentar fazer coisas importantes. Mas os clichés continuam. Estamos
em Berlim e quando vemos um alemão no cinema americano ele continua a ser uma
caricatura. Com os franceses, pior. Então imagine o que Hollywood fez com o
terceiro mundo... Com os negros, com os latinos, os gays. ..
Mas há exemplos de filmes que lutara,
contra isso e que você incorporou em “Eu Não sou o Teu Negro”. O “Adivinha Quem
vem jantar”, do Stanley Kramer.
O filme
do Stanley é de 1967, eu era um miúdo quando o vi e, claro, fiquei orgulhoso.
Estava pela primeira vez a ver um homem negro, bonito, inteligente, que além de
médico qualificado e com provas dadas andava a namorar uma miúda branca. E pela
primeira vez — lembro-me tão bem disto — eu não tive medo do que podia
acontecer à personagem. Os brancos respeitavam-no. Mas há outra coisa: é que,
ao mesmo tempo Hollywood estava a colocar-me a fasquia do nível de homem (isto
é, médico, bonito, etc.) que eu precisava de ser para ser aceite enquanto
negro. Ou seja, também esse filme é um pau de dois bicos. Hollywood funciona
assim. Há sempre um preço a pagar. O Baldwin estava constantemente a
desconstruir casos destes. E criticou duramente os liberais americanos dos anos
60 e 70.
A
representação dos negros no cinema americano é um tema da ordem do dia... [à
data da entrevista, "Moonlight" não tinha ainda ganhado o Óscar de
Melhor Filme do Ano].
Existe essa corrente de solidariedade pública,
é certo, mas concretamente, o que está a ser feito? Óscares brancos ou menos
brancos: para mim, essa é uma discussão superficial. Toda a gente sabe que o
problema do cinema e da representação dos negros no cinema vem do poder da
produção, de quem dá ou não luz verde para que um filme de grande audiência se
faça. E quantos negros conseguem fazer esses filmes? Quantas mulheres
realizadoras conseguem impor o seu ponto de vista àquele grupo de 5 ou 6 jovens
executivos, brancos e impecavelmente vestidos que saíram das universidades de economia
e gestão? O capitalismo e a social-democracia habituaram -se a saber aconchegar
certos grupos minoritários sem destruírem a máquina que serve os seus
interesses. Não me parece por isso que Hollywood possa mudar alguma coisa.
Você
está nomeado para o Óscar de Melhor Documentário. O que vai dizer no palco se
ganhar?
Acha que lhe vou dizer isso?
Pode
falar do footage que usou no seu
filme? O "Imitation of Life" [1934], do Stahl , é uma escolha óbvia,
muito mais do que a de "King Kong".
Não concordo. Em "King Kong" eu sou o
macaco selvagem que pode dar uma dentada na rapariga. Você nunca se viu na pele dele, mas
eu vi. Eu estava lá. Eu ando a dizer que este filme me levou dez anos, mas na
verdade levou-me mais de 30. Porque esses filmes fazem parte de mim. Quando eu
brincava em criança aos cowboys e aos índios, queria ser o cowboy que recebia a
pistola no Natal. Levei um bocado de tempo a perceber que, na verdade, eu era
antes o índio. O negro, tal como o índio, é sempre o primeiro a morrer para a
história possa continuar. E nós ainda não saímos dessa história. Dessa
ideologia. Continuamos expostos.
Porque é que chamou ao seu filme 'Eu
Não Sou o Teu Negro"?
É um título
provocador que não pede licença para ser o que é. A prova de que este filme é
meu. E é um statement que convida o
espectador a assumir um compromisso.
Francisco Ferreira, Expresso