O AMANTE DE UM DIA
Philippe Garrel
França, 2017, 76', M/14
FICHA TÉCNICA
Título Original: L'amant d'un jour
Realização: Philippe Garrel
Argumento e diálogos: Jean-Claude Carriere, Caroline Deruas, Arlette Langmann, Philippe Garrel
Música original: Jean-Louis Aubert
Montagem: Francois Gédigier
Fotografia: Renato Berta
Interpretação: Eric Caravaca, Esther Garrel, Louise Chevillotte
Origem: França
Ano: 2017
Duração: 76’
FESTIVAIS
Festival de Cannes - Quinzena dos Realizadores
Fotografia: Renato Berta
Interpretação: Eric Caravaca, Esther Garrel, Louise Chevillotte
Origem: França
Ano: 2017
Duração: 76’
FESTIVAIS
Festival de Cannes - Quinzena dos Realizadores
TRAILER
CRÍTICA
No novo
filme de Philippe Garrel voltamos a mergulhar na dissolução de um sentimento
amoroso, caímos de novo num triângulo — tal como aconteceu nos dois últimos
filmes do cineasta, "Ciúme" (2013) e "À Sombra das
Mulheres" (2015) embora o que se vê em "O Amante de Um Dia" ,
perturbador e cruel, não seja um triângulo qualquer.
Garrel
sabe que se o mito amoroso é um poço sem fundo, também há no amor diferentes
formas de amar. Filmou desde sempre encontros e separações, juras de eternidade
que continuam a confundir-se com o próprio cinema (ou com o seu amor pelo
cinema) mas cada novo filme, e é importante que isto fique claro, nunca é
imitação do anterior. Outro lembrete, que vem a calhar: Garrel é um romântico,
no mais nobre e no mais físico sentido do termo. Cada filme dele é um casulo
isolado de ficção que não é a vida 'cá fora' mas que com a vida se confunde
numa sensação quase palpável. Nos seus filmes, as coisas 'parecem estar mesmo a
acontecer' , para cada um de nós, na ilusão do instantâneo e do presente, como
na vida. Trespassam o ecrã. Ficam a pairar no espaço e no tempo. São um ritual,
que depende acima de tudo da luz, da fotografia em película (quase sempre a
preto e branco, de novo assinada por Renato Berta), do som direto (em que cada
passo, cada ranger de maçaneta de porta, traz sempre algo que perturba) e de
uma rodagem que, desde sempre no cineasta, se desenrola cronologicamente no
tempo da ação. No ritual, há gente que ama e que desespera. Há até quem se
suicide ou que fique perto disso, tal como acontece a uma das personagens de
"O Amante de Um Dia". No fundo, Garrel trabalha como um pintor sobre
os mesmos motivos, tal como Cézanne outrora trabalhou, quase 80 vezes noutras
tantas telas distintas, sobre a montanha Sainte-Victoire. Passemos ao filme,
que traz diferenças de peso face aos anteriores do cineasta. Comecemos pelo
triângulo (e pelas tais formas diferentes que o amor tem) pois este é pouco
comum: um pai, a sua filha, e a amante dele. Gilles/ Éric Caravaca, professor
de Filosofia
na casa dos 50 anos, vive com a namorada Ariane/Louise Chevillotte (outra
debutante descoberta por Garrel), sua ex-aluna, de vinte e três anos.
Vinte e três é também a idade de Jeanne/Esther
Garrel, filha de Gilles na ficção e filha de Garrel na vida. Um desgosto de
amor leva Jeanne a bater à porta do pai e a pedir guarida. Jeanne conhece então
Ariane. Partilhando o mesmo apartamento, começam também a partilhar ideias e
confidências próprias da sua idade. Eventualmente, tornam-se amigas, algo que
poderia a priori tranquilizar o
professor maduro, mas que em vez disso o inquieta (ele sente-se excluído dessa
cumplicidade) e depois o desestabiliza. Será que, naquelas circunstâncias, o
amor de pai (por Jeanne) e o amor de homem (por Ariane) se tornam incompatíveis
debaixo do mesmo teto? Vem o primeiro encavalitar-se no segundo e roubar-lhe o
erotismo, o oxigénio, sufocando-o? "O Amante de Um Dia" — e esta é
outra novidade da trilogia de Garrel e deste filme em particular — não está
mais ancorado num ponto de vista autobiográfico e masculino, mas no de Ariane,
que Garrel segue incondicionalmente. A gravidade adensa-se quando Gilles, ele
que às tantas trata Ariane como Narciso, lhe sugere que ela poderia ter outro
amante, já que a infidelidade não os afetaria. Ora, Gilles não só será
imprudente (Garrel, de resto, não lhe reserva qualquer ternura) como se
revelará um homem bem menos tolerante do que ele quer fazer crer. É que Ariane,
perante o que Gilles lhe diz, deduz outra coisa — que ele já não a ama — e
começa a levar a sugestão à letra. Será essa a imagem que o Narciso vai ver ao
espelho. Será nos braços de outros homens que o Narciso procurará o prazer que
desvaneceu com o professor desde que a filha deste lhes entrou em casa.
Ariane é uma amante fogosa, intempestiva,
dominadora. Garrel segue a sua entrega ao sexo, ao prazer, em cenas carnais que
o cineasta jamais ousara até hoje. Segue-a no convite do título, porque só
podem ser de Ariane aqueles amantes de um dia. Segue-a pela voice over do filme, que não é nem a voz
de Ariane nem a de Jeanne, mas a dos pensamentos de qualquer outra mulher
cúmplice que jamais conheceremos. Ate à inversão dos papéis femininos em que
receamos que Ariane — ela que começou o filme a consolar o pranto de Jeanne —
saia de cena tal como Jeanne nela entrou: em lágrimas. Garrel fez um filme sobre
aquilo a que poderíamos chamar 'inconsciente feminino'. Se ele fosse
psicanalista e seguisse Jung, talvez lhe chamasse complexo de Electra. Mas
Garrel é cineasta e, para o cinema, Ariane não é uma teoria, antes um mistério
inalcançável do qual o humor também faz parte. O filme acaba, a vida
continua... Foi ao pensar nisto que me dei conta de como Louise Chevillotte,
mesmo num contexto tão diferente, tanto me recorda outra mulher, a que a
godardiana Marina Vlady interpretou em "Deux ou trois choses que je sais
d'elle".
De Ariane, é o que vamos saber. Duas ou três coisas. Não
mais do que isso.
Francisco
Ferreira, Expresso
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