Programação e informações em
Cineclube de Faro
DOGMAN | 22 JAN | 21H30 | IPDJ
DOGMAN
Matteo Garrone
Itália/França, 2018, 103', M/14
SINOPSE
Num subúrbio de uma periferia suspensa entre a metrópole e o
deserto, onde a única lei parece ser a do mais forte, Marcello é um homem pequeno
e gentil que divide os seus dias entre o trabalho no seu modesto salão de
beleza para cães, o amor por sua filha Sofia, e uma relação ambígua de
submissão com Simoncino, um ex-boxeur que aterroriza todo o bairro. Farto de
ser humilhado, e determinado a reafirmar a sua dignidade, Marcello idealiza uma
inesperada e feroz vingança.
FESTIVAIS
Festival de Cannes - Melhor Actor
+ info: aqui
SHOPLIFTERS | 15 JAN | TEATRO MUNICIPAL FARO | 21H30
SINOPSE
Depois de uma das suas sessões de
furtos, Osamu e seu filho encontram uma menina sob um frio gélido. No início,
relutante em abrigar a menina, a esposa de Osamuacaba por concordarem abrigá-la
depois de saber das dificuldades que enfrenta. Embora a família seja pobre, mal
ganhando dinheiro suficiente para sobreviver, através de pequenos crimes, eles
parecem viver felizes juntos até que um incidente imprevisto revela segredos
escondidos, testando os laços que os unem...
+ informação: aqui!
COLUMBUS | 18 DEZ | 21H30 | IPDJ
COLUMBUS
Kogonada, EUA, 2017, 104', M/12
SINOPSE
Casey vive
com a mãe numa pequena cidade desconhecida do Midwest cativada pela promessa do
modernismo. Jin, um visitante do outro lado do mundo, vem assistir ao seu pai
moribundo. Inquietos com o futuro, eles encontram alívio um no outro e na
arquitectura que os rodeia.
+ informações: aqui!
FELIZ COMO LÁZARO | 11 DEZ | 21H30 | IPDJ
FELIZ COMO LÁZARO
Alice Rohrwacher
DE/IT/CH/FR, 2018, 127’, M/12
SINOPSE
Esta é a história do encontro
entre Lázaro, um jovem camponês tão bondoso que é muitas vezes confundido com
um tolo, e Tancredi, um jovem nobre amaldiçoado pela sua imaginação. A vida na
isolada aldeia pastoral Inviolata é dominada pela terrível Marquesa Alfonsina
de Luna, a rainha dos cigarros. Um elo de lealdade é selado quando Tancredi
pede a Lázaro para o ajudar a orquestrar o seu próprio rapto. Esta estranha e
improvável aliança é uma revelação para Lázaro. Uma amizade tão preciosa que
irá viajar no tempo e levar Lázaro até à cidade no encalço de Tancredi. Pela
primeira vez na grande cidade, Lázaro é como um fragmento do passado perdido no
mundo moderno.
FESTIVAIS
Festival de Cannes - Melhor Argumento
+ informações: aqui!
VERÃO 1993 | 4 DEZ | 21H30 | IPDJ
VERÃO 1993
Carla Simón
Espanha, 2017, 96’, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Carla Simón
Montagem: Didac Palou, Ana Pfaff
Fotografia: Santiago Racaj
Música: Pau Boïgues, Ernest Pipó
interpretação: Laia Artigas, Paula Robles, Bruna Cusí, David Verdaguer e Fermi Reixacha
Origem: Espanha
Ano: 2017
Duração: 97’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlim - Melhor Primeiro Filme e Grande Prémio do Júri / Generation Kplus
SINOPSE
Espanha, Verão de 1993. No comovente filme auto-biográfico de Carla Simón, após a morte dos seus pais, Frida, de seis anos, enfrenta o primeiro Verão com a sua nova família adoptiva, na Catalunha. Antes do fim da estação, a menina tem de aprender a lidar com as suas emoções e os pais adoptivos têm de aprender a amá-la como se fosse filha deles. Marcado por momentos de exuberância infantil e pensamentos amadurecidos, este drama de crescimento, passado entre tonalidades veranis, é um retrato extraordinariamente enternecedor de como ser criança num mundo de adultos, assente nos desempenhos impecáveis das duas jovens estrelas.
Espanha, Verão de 1993. No comovente filme auto-biográfico de Carla Simón, após a morte dos seus pais, Frida, de seis anos, enfrenta o primeiro Verão com a sua nova família adoptiva, na Catalunha. Antes do fim da estação, a menina tem de aprender a lidar com as suas emoções e os pais adoptivos têm de aprender a amá-la como se fosse filha deles. Marcado por momentos de exuberância infantil e pensamentos amadurecidos, este drama de crescimento, passado entre tonalidades veranis, é um retrato extraordinariamente enternecedor de como ser criança num mundo de adultos, assente nos desempenhos impecáveis das duas jovens estrelas.
A ÁRVORE | 27 NOV | 21H30 | IPDJ
A
ÁRVORE
André Gil Mata
Bósnia Herzegovina/Portugal, 2018, 104’, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: André Gil
Mata
Montagem: Tomás Baltazar
Fotografia: João
Ribeiro
Interpretação: Petar
Fredilac, Filip Zivanovic, Sanja Vrzic
Origem: Portugal/Bósnia Herzegovina
Ano: 2018
Duração: 104’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlin (2018) – nomeado para melhor
primeira longa-metragem – André Gil Mata
IndieLisboa (2018) – Melhor realizador na competição
nacional – André Gil Mata
TRAILER
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Em Sarajevo, André Gil Mata encontrou um filme de guerra
que é uma viagem aos nossos conflitos interiores. Depois do furor do Festival
de Berlim e do IndieLisboa, "A Árvore" estreia-se nas salas.
André Gil Mata (São João da Madeira, 1978) filmou “A
Árvore” durante um período em que viveu em Sarajevo, onde estava a fazer um
doutoramento de realização. A sua terceira longa-metragem, depois de
“Cativeiro” (2012) e “Como Me Apaixonei Por Eva Ras” (2016), chega finalmente
às salas nacionais, depois de se ter estreado no início de 2018 no Festival
internacional de Cinema de Berlim e das honras de abertura da edição deste ano
do IndieLisboa, onde André Gil Mata venceu o prémio de Melhor Realizador na
Competição Nacional.
Em “A Árvore” acompanha-se o percurso de
duas personagens que caminham para um mesmo local. O cenário é de um inverno
rigoroso, a caminhada é dolorosa, com um sentimento ténue de esperança, embora
o espectador esteja alheado de uma ausência de destino. As imagens são
belíssimas, fortes, e em off ouvem-se sons de guerra, bombas, tiros, tropas a
marcharem. Não há imagens de guerra, há um cenário desolador que a sugere, mas
a sua presença é marcada com mais impacto através do som. O convívio com as
imagens e o som tornam “A Árvore” numa experiência sensorial, o próprio filme
torna-se num lugar para o espectador reflectir, localizar-se com as personagens
e o seu percurso. É um filme de guerra sem o ser, talvez o maior conflito seja
o interior, aquele que o espectador irá sentir enquanto caminha o caminho com
aquelas personagens. “A Árvore” é um encontro interior, um encontro do cinema com
o sagrado.
Estivemos à conversa ao telefone com o realizador, que
entretanto voltou para o Porto, sobre a sua visão do cinema e de como chegou a
esta ideia de filme de guerra.
Ao longo do filme há algumas
referências aos conflitos nos Balcãs no final do século passado. Contudo, o
modo como a guerra marca maior presença é através do som, tornando o seu filme
numa experiência muito sensorial. O que o levou a referenciar a guerra dessa
forma?
Isso surgiu da minha experiência de viver
em Sarajevo durante uns anos [desde 2013 até há poucos meses]. Uma das coisas
de que me consciencializei durante esse período é de que a imagem da guerra,
não necessariamente aquela, mas de todas as guerras, na minha opinião, é
explorada de uma forma que, por vezes, a torna quase pornográfica. Sabia que
não queria fazer da guerra um espectáculo de fundo e de a mostrar através da
imagem. Mas a ideia também surgiu através da criação de uma personagem que se
confronta consigo mesmo, com a solidão durante esse período. Não queria mesmo
mostrar algo que tivesse a ver com o conflito de guerra, porque para mim isso
já está banalizado e eu queria seguir por outro caminho. Queria dar uma
experiência que fosse minha, de forma a que essa experiência também passasse
para o espectador, que se tornasse dele. Queria que o som não andasse com a
imagem, que criasse uma outra linha narrativa e tornasse a experiência da
guerra mais sensorial, e que acrescentasse algo mais à imagem. O que acontece
no fundo é sempre em off, em relação à personagem mas através do som. Sejam as
tropas a caminharem, as bombas…
A árvore acaba também por se
tornar numa personagem do filme, é mais do que um ponto de encontro. Como
chegou a essa ideia?
Fui para Sarajevo para fazer um
doutoramento em realização de cinema e a pessoa que estava a coordenar o
doutoramento ficava muito irritado comigo pelo facto de eu não filmar. Após ter
chegado, durante algum tempo, não conseguia sequer pensar em filmar. A minha
relação com aquele lugar não me permitia sequer pensar em filmar alguma coisa.
Quando não conheço os espaços, ou não tenho uma relação afectiva com eles,
torna-se muito difícil, para mim, filmar. Mas havia essa premissa de filmar e
eu sentia essa pressão. Mas eu não conseguia, andava sempre com uma máquina
fotográfica comigo mas também não conseguia tirar fotografias. Além das
fotografias que tirava no quarto onde estava a viver, a primeira fotografia que
tirei foi na periferia da cidade. O inverno era muito rigoroso, estava sempre a
nevar, e fotografei uma árvore junto ao rio, uma árvore despida com um homem ao
lado, não percebi bem o que ele estava a fazer, mas havia fumo que estava a
sair de junto da árvore. Na minha inocência, por não conhecer os hábitos
locais, pensei que ele estava a fazer uma fogueira. Mas quando revelei a
fotografia percebi que havia um outro rio ao lado e que o fumo não era de uma
fogueira mas do cruzamento das águas: o PH das águas devia ser bastante
distinto e criava uma subida de ar, o fumo provinha dali. Mas fiquei com essa
imagem de quando tirei a fotografia, de alguém que se tenta aquecer na neve. E
daí surgiu-me a ideia de que alguém ao pé de uma árvore pode procurar uma
espécie de aconchego, quando estás num vale, sem mais nada. Foi mais uma
sensação, uma imagem, que se tornou noutra coisa qualquer. Uma ideia muito
simples, de que ao te tentares aquecer encontras um momento tanto exterior como
interior. Nunca estive num espaço de guerra, mas imaginei aquele cenário como
uma situação em que te podes aquecer, exterior e interiormente, para ganhares esperança,
coragem para continuar.
A caminhada de ambas as personagens até à árvore
sugere a ideia de peregrinação, principalmente da personagem mais velha,
carregando as garrafas vazias às costas. A ausência de uma referência de
destino causa essa sensação. A sugestão de peregrinação foi intencional?
Para mim a ideia prende-se mais com um ritual diário
da personagem do que uma peregrinação. Tinha consciência de que esse ritual se
poderia transformar noutra coisa, devido aos elementos presentes e ao que é sugerido.
Acho que tens sempre a consciência que se pode tornar noutra coisa, algo
próximo da caminhada de Cristo com a cruz. Mas a ideia base era esse ritual, de
alguém que sem motivo, esperança na humanidade, no que o rodeia, que sem olhar
para isso sai de casa todas as noites para ir buscar água para ele e para os
vizinhos. Era mais uma ideia de comunhão. Creio que num espaço de guerra, pela
necessidade de sobrevivência, voltas a conhecer os teus vizinhos e as
comunidades tornam-se mais próximas. Aqui no Porto não conheço um vizinho. Hoje
em dia vivemos assim, ninguém se interessa muito pela vida de quem está ao
lado. Penso que nesses momentos a sociedade volta atrás por necessidade, há uma
necessidade de colaborar, porque não conseguimos viver juntos. A ideia partiu
daí, ele está a fazer uma ação, e os vizinhos farão outra, sugerindo uma ideia
de troca, de trabalho pela sobrevivência, num grupo. Escolhi esse ritual
diário, mas poderia ser qualquer outro. A busca da água era bastante
importante, porque levaria a personagem para fora do cerco de conflito,
levava-o para a natureza, para um certo apaziguamento com ele mesmo.
Mas queria sugerir essa ideia de Cristo a carregar a
cruz? O modo como ele carrega as garrafas, com aquele pau, é muito sugestivo…
Tive sempre a imagem desse homem com esse pau de
madeira, com as garrafas presas. Se a iria transformar numa imagem fílmica,
iria ter sempre essa ligação. Agora foi uma escolha de seguir essa vontade, de
ter essa imagem e de ter de viver com essa ligação e conotação, porque os
símbolos se sobrepõem às nossas ideias. Achei que não deveria abdicar dessa
imagem por causa disso. Se as pessoas lerem com essa ideia, de uma caminhada de
Cristo com a cruz, acho que há abertura para isso, para as pessoas interpretarem
assim: não conseguimos controlar o que os outros sentem. Não queria suprimir a
minha ideia com receio do que os outros pensariam.
Quando o velho encontra a criança, junto à árvore, há
varias sugestões, seja o encontro de duas personagens, o encontro de uma visão
de futuro ou de passado (conforme a perspetiva das personagens) ou de um certo
limite, de que já não existe nada para a frente. Quis deixar isso em aberto?
Para mim é mais um encontro do personagem mais velho com uma outra idade, e vice-versa,
sem a personagem mais nova ter essa perceção, porque não consegue, de que está
a falar com ele mesmo.
É quase como se acontecesse algo de sagrado, junto à
árvore. Intensifica a simbologia da guerra.
Acho que a árvore é um lugar sagrado no sentido em que lhe é permitido, naquele lugar, encontrar-se com ele mesmo. O lado sagrado será esse, de conseguirmos, termos um espaço, para conseguirmos estar connosco. Creio que hoje é muito difícil termos esses espaços, é difícil as pessoas terem esses momentos. Se calhar as pessoas antes tinham esses momentos através da religião, se calhar conseguiam isso. Os lugares ditos sagrados, como tu dizes, acho que se perderam na nossa sociedade ocidental, é muito raro as pessoas encontrarem esses lugares. Sinceramente, eu acredito que o cinema se pode tornar um pouco nesse lugar: tu entras numa sala e, quase por obrigatoriedade, tens de estar contigo mesmo, não podes falar, ou pelo menos não deves, estás num lugar de escuridão, que tem uma enorme relação com o sono e o sonho, e é-te dada uma experiência sensorial que te proporciona o confronto contigo mesmo. O cinema pode ser realmente esse lugar, em que te encontras contigo mesmo, tens o espaço e o tempo para esse encontro, podes confrontar os teus medos, erros, o passado: o cinema pode-se tornar num local sagrado se os filmes também o permitirem. E parte da experiência que eu queria proporcionar com o meu filme passa um bocado por aí, permitir ao espectador ter esse tempo e espaço para estar com ele mesmo.
Acho que a árvore é um lugar sagrado no sentido em que lhe é permitido, naquele lugar, encontrar-se com ele mesmo. O lado sagrado será esse, de conseguirmos, termos um espaço, para conseguirmos estar connosco. Creio que hoje é muito difícil termos esses espaços, é difícil as pessoas terem esses momentos. Se calhar as pessoas antes tinham esses momentos através da religião, se calhar conseguiam isso. Os lugares ditos sagrados, como tu dizes, acho que se perderam na nossa sociedade ocidental, é muito raro as pessoas encontrarem esses lugares. Sinceramente, eu acredito que o cinema se pode tornar um pouco nesse lugar: tu entras numa sala e, quase por obrigatoriedade, tens de estar contigo mesmo, não podes falar, ou pelo menos não deves, estás num lugar de escuridão, que tem uma enorme relação com o sono e o sonho, e é-te dada uma experiência sensorial que te proporciona o confronto contigo mesmo. O cinema pode ser realmente esse lugar, em que te encontras contigo mesmo, tens o espaço e o tempo para esse encontro, podes confrontar os teus medos, erros, o passado: o cinema pode-se tornar num local sagrado se os filmes também o permitirem. E parte da experiência que eu queria proporcionar com o meu filme passa um bocado por aí, permitir ao espectador ter esse tempo e espaço para estar com ele mesmo.
André Almeida Santos, Observador
MILLA | 20 NOV | 21H30 | IPDJ
MILLA
Valérie
Massadian
França/Portugal, 2017, 128’,
M/12
FICHA TÉCNICA
Realização e Montagem: Valérie Massadian
Fotografia: Mel Massadian e Robin Fresson
Som:
Aline Huber
Interpretação:
Séverine Jonckeere, Ethan Jonckeere, Luc Chessel, Élisabeth Cabart, Valentine
Carette,
Franck
Williams
Origem: França/Portugal
Ano: 2017
Duração: 128'
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Locarno 2017 - Cineastas do Presente -
Prémio especial do júri
DocLisboa - Grande Prémio Cidade de Lisboa para Melhor
Filme da Competição Internacional 2017
Muestra de Cine de Lanzarote 2017 - Grand Prix
Ficunam - Melhor Realizador Competição InternacionaL
2018
CRÍTICA
Um filme como um pedaço de
acompanhamento de uma vida. Se nos agarrarmos a isto, num filme como um projecto
de doçura, podemos não reparar nas risadas tão tristes como as feridas que não
saram de Milla.
Ainda não houve genérico inicial e já se
explicita o desajustamento da personagem de Milla. Há aquele olhar dela sobre
Luc, o seu companheiro, que parece falar de uma perda. Ainda não sabemos o que
está nela, mas pressente-se a tristeza de quem se sente sem posição, sem lugar.
A intervenção do título do filme, Milla,
o aparecimento do genérico inicial, parecendo cortar esse olhar da personagem,
não protege o espectador dos seus efeitos. O olhar ao fixar-se em Luc fixa-se
na sala como se seguisse a fuga de uma esperança irrealizável, já com saudades
dela. O plano corta, o olhar fica connosco.
Não será esse o olhar da actriz Severine Jonckeere
sobre o seu partenaire Luc Chessel a
revelar a inadequação, a maladresse e
até a vergonha, a dificuldade de encontrar o seu espaço no filme? Severine é
uma rapariga de 16-17 anos, já mãe, que a realizadora descobriu numa casa de
abrigo de Cherburgo, e faz um filme ao lado de um
actor-que-também-é-crítico-de-cinema e que visivelmente está, ele sim, no seu
território.
Nessa fracção de segundo, aquele olhar, que reverbera
por toda uma longa-metragem, concentrando diferenças de classe e abandono
afectivo e dispensando as demonstrações temáticas, está a violência e a doçura
do cinema de Valérie Massadian — cinema que se vem fazendo como um pacto,
expondo e amparando a vida agreste das raparigas que são lançadas à conquista
dos filmes.
42 anos, francesa de origem arménia, primeiro
fotógrafa (e editora fotográfica de Nan Goldin, de quem foi “modelo”), agora
realizadora, tem sido fiel, desde a primeira longa-metragem, Nana (melhor
Primeira Obra em Locarno 2011), à prática — por isso tem sido inevitável
lembrarmo-nos de alguém como Maurice Pialat (1925-2003) de cada vez que
encontramos Milla — de ancorar a verdade da ficção na rodagem
do filme e nas relações que ali se forjam. (E é também à la Pialat, já agora, a
forma como Milla se vê livre dos rodriguinhos do cinoche,
termo que era caro ao realizador de La Gueule Ouverte, filme de
1974, e de Aos Nossos Amores, de 1983, para destilar o seu habitual
azedume e dar uma sapatada em tudo o que pudesse ter a pretensão de suavizar as
rugosidades da vida).
Até agora com apenas duas longas-metragens em seis
anos, Nana e Milla (Prémio do Júri na secção
Cineasti del presente em Locarno 2017), podemos dizer que o cinema da
realizadora tem necessitado de tempo para construir a relação com as suas
“actrizes” e ampará-las nos seus gestos — como conversas, diálogos, cujas vozes
até parecem sobrepor-se aos gestos e mesmo às próprias vozes da ficção. Por
exemplo, é como se Kelyna Lecomte, a miúda de Nana, estivesse a
“mandar recados” para fora do enquadramento à realizadora em cada um dos seus
totalitários monólogos de construção do mundo; em Milla é um
diálogo mais paritário e mais explícito porque Massadian inscreve-se às tantas
como personagem na ficção — Milla é Severine, Severine poderá ser Massadian,
que pode já ter estado no lugar de Severine...—, abrindo-se aí caminho à
contemplação da vida, à melancolia e à doçura. O filme é um pedaço de
acompanhamento de uma vida e não já apenas o documento ou a ficção de um pedaço
de vida.
E é aqui, já que poderemos ter pecado com uma desajustada
invocação do santo nome de Pialat em vão, que vamos atribuir a Massadian o que
é de Massadian: a ternura com que investe pela aspereza do mundo.
Nana, vivendo como vivia no bosque sem tempo de
fábula, mostrava uma menina de quatro anos com uma voracidade assustadora a
descobrir e refazer o mundo. Já para Milla, 16-17 anos e já mãe, não há fábulas
à sua altura, tem de se haver com o tempo e com uma paisagem, física, social e
humana, que permanece sem compaixão — haverá um terceiro filme, segundo a realizadora,
para completar esta trilogia sobre raparigas em idades de transição, e para
isso até voltará a Kelyna Lecomte, que hoje é uma pessoa diferente, tem 11
anos.
Além daquele olhar antes do genérico de Severine
Jonckeere — como já se percebeu, esta mãe com filho, Ethan, é uma mãe de ficção
chamada Milla, mas é Severine —, há as risadas dela, que não disfarçam, antes
expõem, o seu desajustamento, o desconforto do seu corpo proletário e redondo
que a rapariga de Cherburgo terá de aprender a esquecer ou a encarar, antes de
conseguir, finalmente, habitar o filme.
De resistência em resistência, porque a morte aparece
pelo meio, o filme autoriza a que se fale de uma calmaria final, um abandono,
um repouso. Severine conquista o seu filme? Uma confissão: lutamos, perante Milla como
perante Nana, contra ceder aos focos de negrume que vemos irromper,
mas é uma luta inglória, encontramo-los a cada revisão; a forma como sobre as
personagens se aperta a claustrofobia (à la Chantal Akerman de Jeanne
Dielman...), os gestos que se repetem de filme para filme, de personagem
para personagem, cada uma sendo o inescapável destino da outra; ou aquela
abertura de Milla a repetir-se no plano final, se calhar é
apaziguamento, sim — ou será que nada mudou, é o mesmo gesto, é a vida que é
assim? Ainda, os blocos de presente com que Milla se instala com as
suas elipses mas que vão acumulando para o espectador memória, fazendo-o
regressar a indícios que estavam lá atrás. Para acabar como no princípio, o
olhar de Severine, e as risadas... tão tristes como feridas que não saram. Está
em todos os planos de Milla, mas vamos fazer por esquecer a vida
agreste e agarramo-nos ao olhar de doçura.
Vasco
câmara, Público
CONVERSA COM A REALIZADORA
"Já não tenho 20 anos, não faço
cinema para fazer uma carreira. Já vivi na verdade muitas vidas e o cinema é
apenas a última — sem nada de fatalista, porque me dá a sensação de ter
encontrado o meu lugar. No cinema, as possibilidades são para mim infinitas:
amanhã posso perfeitamente pegar na minha máquina fotográfica e no meu iPhone,
ir fazer um filme e fico perfeitamente bem. Mas, quando fiz Nana, foi um tal milagre tê-lo feito
sozinha, com 80 mil euros, em absoluta liberdade — havia uma certa virgindade
que, desta vez, não existiu. Houve muita gente que gostou de Nana, mas em França não me levaram muito
a sério. Houve algumas pessoas pelo mundo fora que me tomaram logo por
realizadora, disseram, 'OK, aqui há qualquer coisa', mas não foram muitas! E
por muitas razões — o meu sexo, a minha idade, o meu meio social, as minhas vidas
anteriores, a minha franqueza, a minha falta de maneiras — não pertenço à casta
[francesa] do cinema. Isso não me impedirá de fazer filmes mas..."
O
discurso é torrencial, pontuado por gargalhadas sinceras, pausas para pensar,
uma ou outra passa nos cigarros comprados em Portugal, tirados de uma carteira
onde se vêem crachás de promoção de filmes de amigos seus — O Ornitólogo, de
João Pedro Rodrigues, e A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho. Valérie Massadian
tem uma "história" com Portugal: foi a descoberta do cinema de Pedro
Costa que fez esta fotógrafa passar à imagem em movimento; Portugal foi dos
raros países onde Nana (2011),
história de uma menina de quatro anos à solta na floresta e vencedor do prémio
de Melhor Primeira Obra em Locarno 2011, teve estreia comercial; e o colectivo
português Terratreme é co-produtor da sua segunda longa, Milla, que saíu vencedora do Prémio do Júri na competição
secundária de Locarno 2017, Cineasti del presente.
Esse prémio
está ainda no futuro quando conversamos com Valérie Massadian, num pátio
recolhido de uma pequena pensão de Locarno, num dia quente de Agosto, pouco
depois da primeira sessão pública de Milla.
A segunda longa da fotógrafa francesa de ascendência arménia é um dos
títulos-âncora da competição do Doclisboa 2017, o que pode parecer estranho
para um filme que tem os
contornos de ficção, acompanhando o percurso de uma adolescente à
deriva, vivendo "à margem" com o seu namorado. Mas a actriz que dá
(literalmente) vida a Milla, Séverine Jonckeere, é uma não-profissional
recrutada num longo casting em centros de acolhimento, contracenando com Luc
Chessel, que tem no currículo pequenos papéis em filmes de Nicolas Klotz ou
Benjamin Crotty mas que é, na "vida real", crítico de cinema do
jornal Libération. E, tal como Nana
cruzava as fronteiras das "ficções do real" ao se deixar levar, no
momento, pela presença e pela fantasia da sua pequena actriz, também Milla flutua num limbo onde é dificil
perceber o que é real e o que é encenado.
O que
Valérie filma é, por entre uma história esboçada de modo solto, o documento do
encontro destes corpos, destas pessoas, num enquadramento de cinema, como
explica entre um cigarro e um copo de água. "Tive vontade de confrontar
estas duas inteligências — a Séverine tem uma inteligência de sobrevivência,
quase animal, e o Luc uma
inteligência estruturada. Para mim confrontá-los era o melhor meio de conseguir
falar da possibilidade, e da impossibilidade, amorosa entre os seres.
Porque vão sempre existir momentos de incompreensão. "
Perguntamos-lhe
se espera que haja uma "faísca" frente à câmara. "Talvez não uma
faísca," diz, "porque uma faísca é qualquer coisa que faz barulho,
que se nota. Não, quando coloco a câmara num local, espero que chegue a
graça." Explica melhor: "Posso ter uma ideia de realização, mas isso
não passa de um ponto de partida. Essa ideia é algo para ser destruído,
submergido, partido, perdido, para encontrar outra coisa em seu lugar. O meu
primeiro desejo é que, nesses enquadramentos extremamente estruturados, que
podemos considerar como fixos, de repente aconteça qualquer coisa de sanguíneo,
de vivo, que não se controla — nem o enquadramento, nem quem está à frente da câmara,
nem quem está por trás da câmara. Algo que escape à ideia."
Mais à frente na conversa, Valérie falará,
entre risos, de "espeleologia" — "é um pouco como andar a
pesquisar ouro, e de repente encontramo-lo, na montagem, quando reparamos que
está lá qualquer coisa que não tínhamos visto durante a rodagem, uma espécie de
prenda." Mas não há improvisação, "ou certamente não como a
entendemos, porque a improvisação seria um trabalho sobre o texto e sobre o que é
dito," explica a realizadora. "Ora nada está escrito, aliás
os argumentos para mim não
existem, são apenas pretextos para assaltar bancos!" diz entre gargalhadas
sonoras, referindo-se à necessidade burocrática de apresentar um documento
escrito para garantir apoios. "Não há diálogo escrito, e o meu trabalho
com os actores é um pouco como se faz em música — sobre uma palavra, uma nota,
uma emoção. Encontrar esse momento de graça não é improvisação, é apenas tempo.
E o tempo é a coisa mais preciosa que existe no cinema: o tempo de fazer, o
tempo de pensar, o tempo de montar. "
Por essa mesma bitola, Valérie
confessa que há algo de profundamente instintivo no seu cinema. "Foi-me
muito fácil filmar Nana. É-me muito
fácil trabalhar com crianças — basta-me estar ali, de gatas, toda suja, sem
nada que explicar, a brincar e a filmar e a divertir-me. Aqui ia ser diferente,
porque estou a trabalhar com gente que já é adulta, que já faz parte do mundo,
que já tem consciência da sua imagem, do que vão pensar deles, e é muito mais
dificil aceder a esse abandono. Funciono muito por instinto, e no plateau tudo é muito orgânico, sem um
pensamento estruturado." É também aí que entra a definição de "ficção
do real", porque o que a realizadora filma é também a aprendizagem da vida
frente à câmara; o que acontece
é, de facto, um do confronto dos seus com a realidade. "Mas procuro ampará-los,
senão seria um vampiro, sentir-me-ia suja. A Milla é alguém atirada para um mundo ao qual não está
minimamente adaptada — não sabe fazer a cama, dobrar roupa, mas tenta,
esforça-se, e aprende e de repente tem de aprender a ocupar-se de uma criança. Nessas cenas
queria mostrar a sua fraqueza mas sem cair no ridículo. Porque ela esforça-se, ela tenta, e tenho
vontade de a proteger."
Valérie
admite, aliás, gue o seu maior medo ao terminar um filme não reside no
acolhimento da crítica ou do espectador. “É sentir que não
estive à altura das pessoas com quem trabalhei. Lembro-me que acabei Nana uma noite às três da manhã, e saí de casa para ir andar a pé, estava
praticamente a levitar e chorava que nem uma madalena, 'consegui, acabei o
filme, e não os traí’”. Mais gargalhadas. “ Aqui não acabei
o filme às três da manhã nem chorei, mas senti o mesmo: que me podia olhar a própria ao espelho
e olhá-los a eles nos olhos, e eles não se ima sentir sujos, traídos, gozados. O filme
era digno, honesto, humano,
não era perfeiro, mas se eles o vissem e nele encontrassem a alegria e a ternura que procurei, então
outras pessoas também o iriam
sentir."
Porque, na verdade, é isso que Valérie Massadian quer fazer: levar os espectadores a sentir.
”Se me pedem para ir passar horas
com gente que não conheço numa sala
escura, não quero que
me dêem a papinha feita. Dou por mim
com cinco anos de idade
como
se fosse criança. Fico a ver, à espera que
o filme me diga o que tem para me dizer ou para me fazer sentir. Não espero nada de
um filme, porque não há na esperar:
o filme é projectado e cabe-nos a nós decidir o que vemos nele. A maior parte filmes não nos deixam espaço para sermos nós mesmos, para sentirmos,
para pensar. Tudo é dito, redito, explicado, mostrado. Lembro-me de mostrar Nana na aldeia onde o rodámos, e no fim da
projecção uma miúda dos seus 25 anos, com três meninos pela mão, veio ter comigo e disse-me
'desculpe, acha que podia ver outra vez o filme? É gue quando vejo um filme é
como se me dissessem, aqui sinto isto rio-me e aqui penso desta maneira. E com
o seu filme não. Posso ser eu própria a
vê-lo.' Virei-me para a minha mãe e disse-lhe, ‘
pronto, já posso morrer feliz."
Valérie
Massadian solta uma
gargalhada.
Jorge
Mourinha, Público
THELMA | 13 NOV | 21H30 | IPDJ
THELMA
Joachim
Trier
NO/FR/DK/SE,
2017, 116’, M/16
FICHA
TÉCNICA
Realização: Joachim Trier
Argumento: Eskil Vogt e Joachim Trier
Montagem: Olivier Bugge Coutté
Fotografia: Jakob Ihre
Música: Ola Flottum
Interpretação: Eili Harboe, Kaya Wilkins, Henrik Rafaelsen
Origem: NO/FR/DK/SE
Ano: 2017
Duração: 116’
CRÍTICA
Thelma é uma variação inteligente, adulta, sobre o cinema de género, como Kubrick a filmar De Palma, pelo autor de Oslo, 31 de Agosto.
Ficámos abananados quando descobrimos a segunda longa de Joachim Trier, o devastador Oslo, 31 de Agosto, ainda hoje um dos grandes filmes do século XXI. O norueguês respondeu a esse pequeno clássico com uma experiência em inglês que ficou aquém das expectativas (Ensurdecedor, com Isabelle Huppert e Gabriel Byrne) e regressa agora à terra natal para uma peculiar incursão no género que prolonga os temas dos filmes anteriores: segredos, famílias, silêncios, solidões. O centro de Thelma é a adolescente que lhe dá título — uma miúda normalíssima, algo solitária, metida consigo mesma, sem grandes experiências emocionais que veio da província estudar para uma cidade grande. Nada de original não se desse o caso da miúda ser religiosa e dos pais parecerem ter um ascendente bastante grande sobre ela.
Com o tempo — que Trier continua a saber gerir admiravelmente — perceberemos o porquê da super-protecção: Thelma tem poderes que desconhece e não compreende, que surgem sempre que ela cede às emoções, se deixa levar pelos seus desejos, em suma, que vêm da sua transformação de menina em mulher. É isso que Trier desenha, de modo calculadamente preciso, ao longo das duas horas de Thelma: o descobrir da sexualidade, a procura de uma identidade própria, a tensão entre família e personalidade, comunidade e individualismo, numa idade em que tudo é vivido com uma intensidade devastadora.
Não é descabido falar de Thelma como uma versão nórdica, cerebral, exangue da Carrie que Brian de Palma filmou, como se fosse um Kubrick em modo geométrico a dirigi-lo; ou como um equivalente “de género” do magnífico Requiem de Hans-Joachim Schmid, onde a passagem à idade adulta de uma jovem religiosa desencadeava tormentos que tanto podiam ser psíquicos como demoníacos. A comparação não abona em favor de Thelma, mas é inevitável — apesar da performance impecável de Eili Harboe no papel principal [...]
Mas isto também não deve minimizar o interesse e a inteligência que Thelma realmente tem, o modo como cria quase subrepticiamente um ambiente de mal-estar sem para isso precisar de “inventar”: tudo se passa em cenários quotidianos, realistas, que o espantoso trabalho de fotografia de Jakob Ihre torna alienígenas, desconfortáveis. O problema de Thelma é só um: houve um filme chamado Oslo, 31 de Agosto e Joachim Trier deixou a fasquia demasiado alta. Thelma não chega lá, mas fica mais perto.
Jorge Mourinha, Público
ENTREVISTA AO REALIZADOR
O cineasta de Oslo 31 de Agosto e de Ensurdecedor está de regresso. Estreou na quinta-feira, Thelma um conto de terror sobre uma universitária que descobre ter poderes maléficos. Uma experiência com o carimbo Joaquim Trier, norueguês que ao DN jurou a pés juntos que faz um cinema sem amarras.
Antes de chegar aqui lia algures que Joachim Trier fez um "filme de terror lesbiano". É capaz de se rir com essa denominação?
É divertida!! Se isso aguçar a curiosidade do povo, venha! A verdade é que o filme é um pouco isso mas também é mais do que isso. Se calhar, jogo com essa cena meio de mau gosto associada a certo cinema de vampiros e de como se filma uma lésbica...Trata-se de uma tradição. Ao mesmo tempo, queria fazer um filme com uma personagem forte de uma jovem mulher. Venho de um país que ainda queimava as bruxas no século XVIII...Na Noruega há também um estigma em relação à figura da mulher com poder. Quis fazer um filme sobre uma mulher jovem com super-poderes, um pouco como se fosse uma história de vingança. O terror que o filme tem é muito alegórico. Do momento ponto de vista, é um conto moderno de crise de identidade.
Ao escolher a jovem como protestante e ela ser de uma família muito conservadora, não está também a abordar o tema da culpa?
Ela é de uma facção protestante mais radical, cada vez em maior ascensão na América e na Noruega. Eles são muito anti-gay, mas felizmente as igrejas públicas agora na Noruega já casam pessoas do mesmo sexo! Isso é muito importante, sobretudo porque ainda temos esses pequenos grupos protestantes a estigmatizar tudo isso. Lá está, quis colocar toda essa questão do conflito individual acerca da sexualidade num contexto de terror.
E é interessante a maneira como vemos os símbolos... A serpente, por exemplo.
Sim, mas no cinema um símbolo deixa de ser um símbolo. Um animal, na cabeça cristã de uma rapariga, pode ser algo muito poderoso. A mim deu-me muito gozo filmar as serpentes, é um animal lindíssimo. Apetecer tocar naquelas criaturas! Dá-me mesmo muito gozo filmar o lado sensual destes animais.
Mas em relação às cenas de sexo não quis ir pela via do "kinky"...
Sim, preferi a elegância. Quis transmitir uma certa ideia de sonho puro e transgressivo, coisa que acontece apenas nas mentes mais jovens. A Thelma é alguém que desconhece o seu lugar na vida. Estou a filmar a sua libertação.
Filma o corpo feminino com um conceito de pureza. Acredita que um corpo de uma mulher possa ser uma fonte primitiva de cinema?
Sim, de que maneira! É muito interessante essa questão, pois estou a fazer um documentário sobre Edward Munch e ele tem uma série de retratos femininos. A sua irmã morreu muito cedo e o desgosto parece ganhar uma camada sensual. Há ali também uma combinação de pele nua e pureza.
Aposta muito no suspense através da fantasia. Preza o conceito "suspensão de descrença", como se constrói isso?
Perguntam-me muito se acredito no sobrenatural, mas o que está ali é só cinema! O que me interessa é pesquisar a imaginação humana. Fiz uma série de filmes que lidavam com ocorrências reais, mas o conceito do sonho sempre fez parte do meu imaginário. Desta vez quis ir mais longe.
Sim, mas como consegue depois dar credibilidade a tudo isso?
Passa pelo facto de ela ser uma personagem real.
Mas ao apostar num tema em que converge a questão de um certo fanatismo religioso, está a tocar num tema fundamental da sociedade atual. Não acha que cada vez mais os cineastas deveriam abordar este tema? Wim Wenders fê-lo recentemente mas parece ser um tópico desconfortável...
Sim, os cineastas têm de fazer mais filmes com este tema. Thelma aborda, do ponto de vista religioso, o abuso do poder na nossa cultura. Mas é muito fácil apontar o dedo às novas religiões que estão a impor-se com atitudes fundamentalistas e de opressão aos nossos comportamentos livres. É muito mais complicado depois suster um ponto de vista sobre isso...Creio que o meu filme chegou na altura certa, sobretudo agora que o cristianismo fundamentalista também está a crescer.
O cinema nórdico parece também estar na moda. A Palma de Ouro para o sueco O Quadrado, de Ruben Ostlund, foi uma espécie de rastilho...
É difícil aferir sobre isso, prefiro acreditar que é mais o valor individual de cada um dos cineastas. Não sou muito apologista que possa estar a acontecer um movimento, mas posso afirmar que estão a surgir mais financiamentos para que se faça um cinema mais livre. Sou um cineasta com poder de montagem final - sempre tive direito ao corte final dos meus filmes! Deixam-me criar tudo o que quero fazer...É preciso continuar a apoiar um sistema que nos dá esta liberdade. Mas na América também se pode filmar recorrendo à subversão, basta olhar para Logan, de James Mangold. Houve ali contrabando: do western para o filme de super-herói. Tudo isso acontece porque no sistema americano não há liberdade. Já ninguém pode fazer cinema puro, são todos obrigados a irem para o filme de super-herói.
Depois de Ensurdecedor/Louder Than Bombs vai voltar aos EUA para filmar?
Estou interessado, mas o problema é que sou um cineasta do "final cut" e na América é complicado. Gostaria de regressar, vamos ver...Mas foi excitante explorar coisas novas com Thelma. As pessoas estão convencidas que nós temos uma estratégia, um plano para as nossas carreiras, mas na verdade limito-me a fazer os filmes que me apetece na altura em que me apetece.
Rui Pedro Tendinha em Toronto, dn.pt
MARIPHASA | 6 NOV | 21H30 | IPDJ
MARIPHASA
Sandro Aguilar
Portugal, 2017, 86’, M/14
TRAILER
Sandro Aguilar
Portugal, 2017, 86’, M/14
FICHA TÉCNICA
Realização, Argumento e Montagem: Sandro Aguilar
Fotografia: Rui Xavier
Som:
Miguel Moraes Cabral
Interpretação: António Júlio Duarte, Albano
Jerónimo, Isabel Abreu, João Pedro Bénard, Cláudia Éfe, Luísa Cruz, Gonçalo
Waddington
Origem: Portugal
Ano: 2017
Duração: 86’
FESTIVAIS
Berlinale Forum [DE 2018]
Hong Kong International Film Festival [HK 2018]
Indielisboa [PT 2018]
Adana Film Festival
[TR 2018]
TRAILER
NOTA DE
INTENÇÕES
Veremos facas, espingardas, presas e caçadores,
monstros e pesadelos, numa alternância pendular, do movimento à estagnação. Lugares
aos quais impiedosamente se regressa, depósitos espontâneos da memória afectiva
dos seus ocupantes e sintomas da sua desagregação. Sobretudo madrugadas e
noites, urgentes e amnésicas como num filme de lobisomens, em diferido. Do
sangue ao corpo - invólucro e contentor. Retenho particularmente do terror, do fantástico,
ou do western, a sua capacidade de suspender a descrença do espectador,
inaugurando uma comovente disponibilidade para aceitar as naturais propriedades
do cinema para propor as suas realidades; para tactear o mundo a partir de um
território que não é o nosso.
ENTREVISTA
A SANDRO AGUILAR
Para
começar, se quisesses falar sobre a forma como Mariphasa surgiu.
É um
projeto que teve a sua primeira versão já há alguns, penso que seis, sete anos,
pelo menos. Já não ei o que na altura iniciou tudo. Mas era um projeto que
vinha na continuidade de coisas que eu tentei fazer o princípio das minhas
curtas-metragens, no Corpo e Meio, por exemplo.
Tentar
explorar uma lógica vagamente narrativa, e que tivesses aquele aspeto pendular
que tinha o Corpo Meio. Ter uma
espécie de linearidade de um personagem que vai de um espaço a outro e depois
regressa o que pode trazer de
transformador nesse regresso. Começou por ser um projeto que tinha a ver com a
realidade de um espaço, foi pensado e escrito a pensar nos decors que eu tinha encontrado
no Corpo e Meio. Não sei porque razão, quando passei para a segunda
longa-metragem apeteceu-me voltar ao um filme inicial. É a minha quarta
curta-metragem e apetecia-me ter essa espécie de linearidade, de limpeza, pelo
menos na premissa inicial. É claro que depois o projeto sofre muitas alterações
durante o processo criativo, se somarmos àquilo que é o meu processo normal de
trabalho, seis anos de intervalo entre uma primeira ideia e a execução, sendo
que eu não continuei a trabalhar sobre aquela ideia. Aquilo que me desperta
criativamente tem a ver com a natureza concreta daquilo que ando à procura nos
decors, dos atores, de pequenas coisas que vou tropeçando e, portanto, não
valia muito a pena estar a trabalhar, começo efetivamente a trabalhar e a
enriquecer um projeto na fase em que estou perto do arranque da rodagem. E por
isso o projeto ficou em pousio. Foi escrito mais ou menos há seis anos e depois
foi repegado dois ou três meses antes da rodagem, em que comecei a ter as primeiras
conversas com atores, comecei a visitar decors e as coisas foram-se alterando e
o projeto foi ganhando um carácter menos concreto e mais onírico.
No projeto original, uma das primeiras ideias, tinha a ver com fazer um remake
estranho do Dr. Jekyll and Mr. Hyde: a ideia de haver, num mesmo
personagem uma linha de divisão entre um carácter mais domesticado ou
civilizado e um carácter mais selvagem e isso poder coabitar no interior de uma
personagem. E depois no processo ao estar a escrever comecei a espalhar essa duplicidade
por dois espaços, por várias personagens e a coisa começou a espalhar e a mudar
um bocadinho o carácter. Dessa ideia inicial resiste a ideia do andar de cima e
do andar de baixo, dos dois vizinhos, de um personagem que se olha ao espelho e
um personagem diferente que também se olha ao espelho quase vinte minutos mais
tarde. Há coisas que vêm dessa primeira abordagem, mas é tudo tão alterado que
é difícil perceber de onde é que aquilo tudo vem, porque vai sendo tudo criado
à medida que o processo vai avançando.
Curioso
falares do Corpo e Meio, porque Mariphasa parece assentar sobre
uma ideia perda, parece que falta alguma coisa: começa com um acidente e com
uma morte e vemos o que acontece depois.
Durante
o tempo que estava a escrever, eu tenho uma espécie de esquemas, quase geométricos
da minha relação com as personagens e das relações entre as personagens. A
haver um tema “humano” relacionado com este filme tem a ver com qualquer coisa
de displacement, de estar fora do seu lugar. Cada personagem aparece a
preencher o lugar de outro omisso, digamos assim. Cada um dos personagens do
filme tem alguém que falta. E alguém está a preencher o lugar dessa entidade
que falta. E, portanto, tal como em Corpo e Meio a ideia de omissão, de alguém
que desapareceu e que já não está lá, e de uma coisa, de uma presença ou de
outro personagem que equivocamente está a ocupar esse lugar é aquilo que faz
avançar tudo. E por isso o filme tem aquela lógica da porta fechada. Havia até
explicitamente no argumento original uma alusão à fábula do lobo e dos três
porquinhos, do soprar a casa e levar tudo. Lá está, a questão do selvagem e do
domesticado, de haver ali uma linha de fronteira física entre qualquer coisa
que se passa num interior, que parece estar resguardado, mas que já foi
devassado e está em processo de transformação, qualquer coisa do humano para o
monstro, que está na origem de tudo isto e que tem a ver com esta coisa, que de
forma muito simplista de pode reduzir na premissa do Dr. Jekyll and Mr. Hyde,
dessa duplicidade, mas que no fundo não é apenas narrativa, mas é qualquer
coisa que existe em cada um de nós, esta tensão entre a energia domesticadora e
um instinto qualquer mais selvagem. Essa alusão aos três porquinhos e ao lobo e
por isso é que a casa aparece toda revolta como se tivesse sido soprada essas
fronteiras, como se esse lado selvagem estivesse pronto a habitar o interior
daquelas casas e daquelas personagens. É a ocupação do lugar vazio que faz
avançar o filme todo, seja físico ou seja um lugar afetivo que não consegue
preencher fisicamente nem qualquer espécie de substituição. Foi difícil
escrever este filme porque tal como em muitos outros projetos meus, eu sou
anti-narrativo no sentido de que aquilo que me interessa nos personagens é
quase um convite à inatividade. É o momento em que eles estão indecisos sobre o
que podem fazer para mudar, para se transformarem e uma das regras narrativas
mais comuns tem a ver com o contrário disso: a personagem tem que lançar uma
linha para um futuro qualquer em que alguma coisa se vai transformar, tem que estabelecer
um objetivo e na superação desse objetivo haver qualquer coisa de
transformação.
E aqui,
mesmo o título do filme, Mariphasa, que é o nome de uma flor, ficcional,
flor que serve, justamente, de antídoto a essa transformação. Existe um convite
à inatividade ou um convite a uma atividade que se passa internamente a cada
uma das personagens e que só temos acesso a alguns momentos da vida deles.
Podemos imaginar, ou antecipar ou especular sobre o que é que cada um deles
quer, mas nada nos é dito de forma muito clara, não é que eu tenha muita vontade
de esconder, mas também porque para cada um daqueles personagens não é muito
claro qual seria o pequeno passo ou o grande passo que os poderia fazer sair do
processo em questão. E como existe
qualquer coisa de pesadelo, qualquer coisa de post-mortem. De certa
maneira há pouco mundo à volta daqueles personagens e há pouca realidade à
volta daquilo tudo. É como se houvesse um trabalho de isolamento quase
laboratorial, ou seja, é preciso isolar cada um dos componentes que pomos em
jogo, partículas ou moléculas, para poder perceber qual é a verdadeira ação que
os elementos estão a ter sobre elas. Mas existe assim esse efeito de
inatividade. De convite a uma certa estagnação que é aquilo que mais me
interessa nos personagens e eu acabo por chegar a essa conclusão não à priori,
que foi uma coisa que constatei no processo deste filme, em que eu comecei
quase por um arquétipo narrativo muito sedutor, muito normal, muito standard e
depois o meu trabalho acaba por ser de apagar esse efeito de reconhecimento da
realidade e um aspeto qualquer de transfiguração da realidade e que me vai
aproximando destas características de personagens, que por alguma razão é recorrente
no meu cinema.
A cena
da mãe e do filho e a lógica do pesadelo.
O que
eu quis foi dar ao filme esse caráter de pesadelo e a própria lógica do filme fosse
de pesadelo, ou seja, os conflitos não são claros, há uma tensão que não
sabemos de onde é que vem. Tal como num pesadelo, às vezes um pequeno gesto
seria o suficiente para sair da condição em que se está. Por alguma razão, nós
não conseguimos fazer esse gesto faz parte da natureza mental do pesadelo para
nos manter naquela situação e isso eu acho um desafio muito interessante de
trabalhar num filme assim, ou seja, ter as portas, o labirinto através de dois
apartamentos, numa lógica labiríntica de habitação do espaço e tem a ver com
essa lógica de pesadelo. Essa minha relação com o pesadelo ou o sonho, eu não
gosto muito de trabalhar personagens loucas, parece-me um desafio menor, quase
um livre trânsito para tudo, nem ter uma dimensão onírica que perca alguma
concretude. E por isso, se isto é um pesadelo, é um daqueles pesadelos que nos
parecem, que tem características da nossa realidade, isolam características específicas
da nossa realidade, mas que não se parecem com ela. Esse equilíbrio é também o
que mais me agrada no filme: é ter o aspeto de pesadelo, mas não nada que
sinalize o que é que é real e o que não é real. Ou seja, mesmo quando o miúdo
acorda do pesadelo, descreve o pesadelo, aquele pesadelo é a coisa mais
concreta do filme todo, se calhar é a coisa mais real do filme todo. O que
parece mais realista no filme todo é um miúdo a acordar de um pesadelo. E tudo
o resto parece fazer parte desse pesadelo ou de outros pesadelos. Essas linhas
de comunicação entre essas duas coisas, eu queria que fossem completamente
esbatidas.
A
questão da paisagem. Os espaços de ruínas, destruídas. Quase entramos num
ambiente pós-apocalíptico. A caracterização dos espaços.
Os
espaços deste filme são prolongamentos das personagens, prolongamentos de
características que eles têm ou quase subtemas do próprio filme.
Especificamente sobre os espaços, gosto que aqueles sejam espaços realistas.
Aquele apartamento devassado após um assalto é um apartamento devassado após um
assalto, tal como eu já vi, tudo fora do sítio. O que não é muito normal é a reação
das personagens a isso, ou seja, o facto daquilo ficar assim, de estagnar
naquela situação.
Uma
fábrica para onde ele vai trabalhar, é aquilo mesmo, nós não manipulamos de
forma nenhuma. São restos de toda uma atividade que aconteceu ali e que agora
já não existe. Ainda restam ali vestígios, ruínas, ácido, pedra corroída. Isso
está lá neste momento. O apartamento do vizinho é um apartamento que tem
qualquer coisa de apartamento que já foi acolhedor nos anos 70, e, embora o
personagem habite o apartamento, parece estar tal qual foi deixado pelos pais e
onde viveu quando era criança, pouco mexeu naquilo, é uma espécie de portal
para o passado daquele personagem. O percurso que a personagem principal, o
Paulo, faz ao longo do filme faz com que ele, quase que atravesse coisas que
tenham a ver com o seu passado ou com o seu crescimento e dentro desta lógica
do arquétipo do Dr. Jekyll and Mr. Hyde foi depois espalhar
características do personagem por vários outros, ou seja, em vez de trabalhar
com uma duplicidade, comecei a espalhar por outros tempos e por outros
personagens e há qualquer coisa de miragem, por exemplo, na relação dele com a
personagem que faz o João Pedro Bénard, mais velho, qualquer coisa de ponto de
chegada e qualquer coisa também de ponto iniciático no miúdo, por exemplo, são
os dois extremos. Há também qualquer coisa de substituição da esposa dele que
desapareceu ou da filha, há aqui muitos aspetos de substituição dos personagens
por outros. O que eu queria é que os espaços pudessem aludir a isto, ou seja,
haver qualquer coisa de que eles exprimissem esta dicotomia, mas de uma forma
muito linear. Algo que rapidamente fiz quando comecei a escrever: foi que
houvesse uma certa promiscuidade nos elementos selvagem ou
doméstico/civilizado, esta tensão que eu falava no início, entre qualquer coisa
selvagem e qualquer coisa civilizada, que houvesse contaminação de umas coisas
para as outras. A fábrica é um não-espaço, não é muito claro o que aquilo é.
Alguns indícios de uma fábrica antiga, é um sítio que já parece ter tido
atividade, mas está abandonado há muito tempo e tem qualquer coisa de cru, de
pedra, de fogo, da água, esses são os elementos primordiais que tem a ver com o
sítio para onde ele vai para a obra. Mas depois queria que houvesse uma
contaminação, que não fosse muito linear esta dicotomia, porque também não
gosto muito dessa limpeza. Os espaços, neste filme, são quase personagens.
O
trabalho dos atores. Como foi o teu trabalho com os atores.
É uma
mistura de reencontros, com atores com quem já trabalhei noutros filmes, alguns
dos quais com alguma progressão no tipo de personagem que, por exemplo, a
Isabel vai fazendo ao longo dos meus filmes. Há uma espécie de linha de
progressão nos vários personagens que ela vai interpretando. E também com o
Albano, com quem também já trabalhei no Voodoo e no Mercúrio. Tem
um sabor de um reencontro. No caso do António Júlio Duarte tinha trabalhado com
ele no Bunker. Para personagem principal, tal como na Zona, a
minha primeira longa queria ter um ator, ou uma presença, que fosse capaz de
carregar, em si próprio, pela sua presença haver um carácter definidor do que
aquela personagem é, que é uma personagem que sobretudo olha e enfrenta, está a
presenciar coisas que acontecem à sua frente e que queria que ele trouxesse o
inferno no resto e eu acho que o António Júlio já me oferecia isto. Acho que
antes de trabalhar com ele no Bunker já tinha pensado nele para este
filme. Depois tenho o Eduardo, que é meu filho, e portanto conheço muito bem; e
o João Pedro Bénard que surgiu mais tarde como ideia para este personagem, era mais
novo no início, mas depois, das poucas coisas que fiz ao reescrever, foi
dar-lhe uma idade diferente, de facto ele estar no outro extremo, oposto ao do
miúdo, em termos de possibilidade, em termos de caminho e é um personagem que
aparece a queimar fotografias, que parece estar numa últim a noite de despedida
de qualquer coisa e de ser assim uma espécie de presença fantasmática, de um
futuro possível para o personagem principal. Eu não faço muito essa distinção
entre os atores e os não-atores. Eu sei que com alguns deles, como a Isabel ou
Albano, não só têm a capacidade técnica e o hábito de trabalharem comigo para
não me darem coisas que eu não gosto nas personagens. O trabalho com os atores
é uma coisa muito intuitiva, vamos trabalhando de uma determinada forma. Com
não-atores, existem outras estratégias para chegar ao mesmo lugar.
O som
do filme cria uma tensão durante o filme. A música e a apoteose de Seger, híper
romântica, mas que é até usada contra.
Eu não
uso muito música nos filmes e neste caso quis, foi uma ideia que surgiu durante
o processo. A música do Bob Seger faz uma comunicação entre as duas
personagens: o personagem do vizinho e o personagem da rapariga. No início,
narrativamente, queria que aquela música, posta muito alta a tocar, fosse uma
maneira de azucrinar o homem que vive com a personagem da Isabel e de fazer um
convite à personagem da Isabel. A letra muito explicitamente alude a isso “We
have got tonight / Who needs tomorrow”, a letra é uma espécie de livre trânsito
para o engate: naquela noite, tudo pode acontecer; e depois amanhã logo se vê.
Só que, coincidentemente, os personagens não têm muito mais aqui neste filme do
que uma noite e portanto parece que eles só têm efetivamente esta noite para, o
filme só tem esta noite para acontecer o que quer que seja que tenha que para acontecer.
Portanto, acabada esta noite, eles parece que vão se dissolver, vão-se desfazer
e vão desaparecer, enquanto personagens e enquanto filme. Nós estamos a apanhar
a ação e estes personagens, em meia dúzia de horas que se vão passando, com
grandes elisões – o filme quase não tem dia – queria que houvesse este efeito
de filme em diferido. Os grandes acontecimentos do filme acontecem fora do
filme. Nós temos acesso a uma coisa muito em diferido – seja a morte da filha,
seja pequenas coisas narrativas que existem lá – e queria que de uma forma
muito explícita, o filme ao não ter dias, ser um momento qualquer em que
algumas coisas acontecem para algumas personagens e um momento de inconsciência
para outras personagens. Por exemplo, no momento em que o personagem principal
está a dormir. E enquanto ele está a dormir não dia. É uma última noite. Há
quase que um apelo a um suicídio qualquer coletivo, de que a existência deles é
completamente efémera.
Segunda
longa; temas repetidos; da Zona até Mariphasa, o que transformou?
Há um
aspeto que é bastante diferente na maior parte dos meus filmes. Durante os meus
filmes todos, raramente fiz um campo/contracampo e em muitos filmes, quase não
existem personagens, eu quase não os filmo. E neste filme, são poucos os planos
do filme em que eu não tenho personagem e em que eu não tenho alguém a olhar
para alguma coisa. No limite, nos últimos 20 minutos do filme, são
campos/contracampos, sem que os personagens se consigam ver uns aos outros.
Estender uma coisa que eu nunca fiz para durante 20 minutos parece-me relativamente
novo. Filmei estes campos/contracampos com barreiras físicas, que os
personagens não se consigam ver. Alguns destes são falsos campos/contracampos.
Mesmo que eu filme os personagens, isso não significa que eles não sejam
misteriosos, nem para espectador, nem para mim. Eu filmo os personagens, mas
não os preencho com elementos narrativos ou com dinâmicas de ação.
Daniel Ribas
CRÍTICA
A segunda longa de Sandro Aguilar é menos uma narrativa, mais um pesadelo
emocional paredes-meias com o fantástico, uma história de gente sem saída
contada de modo puramente sensorial. Assombroso, inesgotável filme.
Gente perdida, sem saber
para onde vai, sem saber o que quer ou o que os espera. O que podem eles fazer
contra o destino? Há um acidente. Um funeral. Um homem que já não é bem-vindo.
O seu caminho cruza uma mulher e o seu filho, ambos com medo; um outro homem
(marido, ex-marido?), caçador, alguém que cria medo. Andam à volta uns dos
outros, como animais enjaulados num zoológico. (E às tantas a mulher é
veterinária.) Há algo de malsão a trabalhar em Mariphasa, algo de maligno, de mais assustador
do que qualquer filme de terror. Mas há também um conforto estranho: o de sabermos
que esta gente é como nós. Talvez sejamos nós — gente perdida, transtornada,
que já não sabe mais para onde se virar, gente perdida, assustada, à beira de
explodir, à beira de libertar algo. O quê? Não sabemos, Sandro Aguilar não no-lo diz. Prefere deixar-nos
ali a boiar neste plasma líquido, neste fluido amniótico de vidas com medo, de
pesadelos nocturnos, sempre de noite, sempre às escuras, sob o signo do sangue.
Mariphasa é
apenas a segunda longa de Aguilar numa carreira feita quase inteiramente, e por
deliberação, no formato curto. À imagem da primeira, A Zona, de 2008, e da grande
maioria das suas curtas, é um jogo de “unir os pontos” para descobrir a imagem,
sob o signo de uma planta que não existe (a “mariphasa” do título, “um antídoto
para uma transformação que, a ocorrer, terá consequências terríveis”, nas
palavras do seu autor) e que abre o filme às portas do cinema fantástico. O que
interessa, contudo, é que tudo o que parece opaco no papel encaixa e faz
sentido no ecrã, mesmo que seja um sentido que não se explica (e que o filme
não tenta sequer explicar) mas que se sente aqui dentro. Mariphasa não é um
filme, é um estado de alma, negro, envolvente contudo inexplicável, abstracto e
contudo sempre a intrigar-nos para o tentarmos resolver — assombroso no modo
como a sua narrativa não se constrói mas na prática floresce exclusivamente a
partir de fragmentos com ligações aparentemente ténues, extraordinário no modo
como tudo é sugerido mais do que explicado, deixado ao espectador fazer as
ligações que bem entender. Vimos Mariphasa três
vezes, em todas elas a sua flor malsã abriu de formas diferentes, em todas elas
vimos outro filme vendo o mesmo filme. Mariphasa não
se esgota, nunca. São raros os filmes assim.
Jorge Mourinha, Público
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