SESSÃO DUPLA - AS BRINCADEIRAS - muito - PERIGOSAS de Michael Haneke. 5º round, com provável KO. 5ªf, 22h, Esplanada dos Artistas, Entrada livre.

Paul e Peter (Frisch e Giering) são dois jovens extremamente educados que visitam uma família em férias. Contrastando com o cenário paradisíaco, Anna (Lothar), Georg (Mühe) e o seu filho serão aprisionados e torturados, sem que se consiga discernir quaisquer motivações para esses actos.

(como sempre em Haneke, discutir o, para ele, mais premente problema da sociedade contemporânea - a violência, individual ou social. olhá-la de frente e pegá-la pelos cornos. não se pretende chocar gratuitamente, mas sim fazer reflectir perante ameaças que quantas vezes preferimos ignorar. Haneke obriga-nos a tirar para fora a eterna cabeça enfiada na areia: «O que procuro fazer é inverter, ou melhor, corrigir situações que são habitualmente tratadas de forma falsa - tento mostrá-las de forma verdadeira. Quero que o espectador veja a violência por aquilo que ela realmente é, ou seja, através do sofrimento das vítimas. Quase sempre o espectador é desviado desse sofrimento e o que eu pretendo é que o espectador perceba que está ali o que ele, regra geral não quer ver. Há um elemento de choque, uma ironia que me serve para que o espectador reconheça o seu papel na produção e no consumo da violência.»)


Já não me lembro em que filme foi, mas sei que o realizador era alguém que pertencia à comunidade das nações do norte da Europa. A cena era de desavença conjugal, (de violência conjugal, para sermos mais precisos): um homem brutalizava a mulher, espancava-a e um belo dia, num dos seus acessos de ódio, empurrava-a, nua, para a porta da rua, lançando-a no meio de uma noite gelada. Já não me lembro de mais nada do filme, mas esse requinte de crueza, esse misto de humilhação extrema e de sevícia corporal pelo frio ficou-me na memória, como limite de uma violência que, em princípio, nos é estranha. Aqui, pelas paragens solarengas do sul, a violência é um espalhafato de sangue a ferver e destempero. Lá para cima, a violência pode ser uma coisa cerebral, uma malvadez serena.

Lembrei-me disto quando me entrou pelos olhos dentro este Brincadeiras Perigosas, de Michel Haneke, alemão naturalizado austríaco, germano numa acepção que excede os limites dos países. E lembrei-me disto, porque este filme tem a ver com essa malvadez serena, com retoques de perversa premeditação e caminhos de repetição em série: algures numa zona aprazível de férias lacustres, bem instalados burgueses são vitimados por dois demónios seus iguais que fazem da violência um jogo metódico e sem regresso.

Violência sem outro motivo que não o prazer do torturador face às vítimas, violência sem alibis, sem fundamentos sociais, sem motivações de nenhuma ordem, salvo a do Mal em acção. Talvez por isso ele é, convém que o diga, o mais violento dos filmes que algum dia vi - qualidade que a completa ausência do espectáculo da violência acentua.

Explico-me: Brincadeiras Perigosas cumpre todo o percurso da brutalidade, todos os seus cambiantes, escaninhos, particularidades. Começa com uma simples coacção psicológica, evolui para a agressão física com objectos contundentes, deriva para os rituais de humilhação, chantagem, perseguição e aprisionamento, golpes de faca, armas de fogo e aniquilação. Nada que não tenhamos visto já, em doses parcelares e, muitas vezes, em filmes de «mainstream» e sucesso. E em quantos deles não se empolgou o sangue com tiroteios, não compassou o coração ao ritmo das perseguições, não se acendeu a libido com gestos de humilhação, não se jogou o prazer do intelecto nos mecanismos verbais dos confrontos de dominação?

Quantas vezes a violência não nos foi servida como espectáculo para que, com ela, exorcizemos os mais fundos dos nossos fantasmas? Ora, Michael Haneke recusa-nos isso, por inteiro. Sem remissão. Completamente. No seu filme a violência é servida fria, sem ornamentos, com uma câmara que oculta mais do que mostra - e o que fica é uma espécie de território absurdo (e, todavia, familiar, verosímil, provável mesmo numa sociedade que se hedoniza sem carta de valores no horizonte). O que fica é um medo irracional que vai crescendo e é tanto mais avassalador quanto sabemos que a lógica da narrativa que estamos a ver é absolutamente inelutável.

A fita ganha mesmo um carácter de parábola, de coisa abstracta que, de repente se auto-apresenta como matéria de ficção, filme, artefacto, quer quando um dos actores se dirige à câmara e connosco fala, quer quando se materializa a possibilidade de rebobinar e repor nos Garris uma história que parece querer fugir a um programado destino. A vida de que o filme fala é, deste modo, dupla (é a vida-vida, quotidiana, no ocidente burguês, germânico e seus valores e é a vida-filmica, numa civilização que fez dos jogos e das fiçções de violência um dos seus pólos de entretenimento).

De repente, é lícito ler esta fita como um depoimento - para bons entendedores - no interior do cinema destes dias, uma espécie de testemunho sem explícita declaração de princípios que terá que ser o espectador a redigir, se lhe aprouver. É também por isto que não gosto do título português, pelo que de aviso ele contém. Melhor é o original, o lúdico Funny Games, inocente e sem moral.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso, 4/4/1998

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SOBRE O REMAKE 10 ANOS DEPOIS

Para muita gente, a Áustria era o país doce dos concertos de Ano Novo ou da Música no Coração, das valsas vienenses e do «apfelstrudel» polvilhado de açúcar - até que os filmes de Michael Haneke (Brincadeiras Perigosas, em 1997, muito em especial) estragaram o quadro de tampa de caixa de bombons. A violência desse filme foi uma das coisas mais terríveis que o cinema alguma vez deu à luz, até porque tudo se passava entre gente civilizadíssima e da forma mais civilizada que é possível. Numa estância de veraneio, dois jovens de boa extracção social e esmerada educação, assombram uma família, dominam-na e começam a praticar jogos cruéis, em que a tortura não tem outra razão de ser senão o comprazimento em praticar o mal. Em última instância, vão liquidando os membros da família, um atrás de outro, à medida que a noite avança. Desde 1997 que a Áustria perdeu o estatuto bonacheirão que, evidentemente, nunca mereceu, como não merece que a associem à insanidade atroz. Há imagens que são, de todo em todo, infiéis às coisas e aos lugares, estereótipos que, uma vez assentes, se podem tomar até motivo de ideias ou atitudes discriminatórias, racistas ou xenófobas. É bem certo. Mas vai demorar muito até que isto passe... E já foi há mais de dez anos.

Entretanto, Michael Haneke fez outros filmes - sempre sobre a violência e os seus efeitos - e resolveu refazer Brincadeiras Perigosas, na América. É essa versão que agora nos chega. Não consigo perceber a razão deste «remake» - a não ser que seja para afastar a Áustria do quadro e sugerir que a violência é globalizada... Até porque não é. Aquela violência metódica, fria, de uma impiedade perversa, dentro da mais hipócrita das composturas, é algo de intrinsecamente europeu, luterano-calvinista, a nata da sociedade de consumo culturalmente evoluída, o tédio a supurar o inominável. Pessoalmente, até acho que casa mal com a América e Haneke, fora os actores, nem se deu ao trabalho de adaptar, fez um «remake» tão fiel ao outro filme quanto lhe foi possível, o que agrava a perplexidade: porquê?

É claro que a interrogação não apouca o que o filme traz no ventre (exactamente o que a versão de 1997 também trazia): uma reflexão sobre a existência do Mal (com maiúscula, sim, sem álibis, sem justificações, sem culpados, sem Freud, sem Marx e, a não ser que Deus exista, sem uma entidade metafísica a fundamentá-lo). E uma reflexão que não se limita a ser sobre a existência, mas sobre o prazer que o Mal, em acção, pode proporcionar.

Brincadeiras Perigosas é o espectáculo do horror, nunca se esquece disso e nunca deixa que nos esqueçamos disso. Desse modo, rasga a nossa sensibilidade ao tornar-nos explícito que, sim, estamos a ver um filme, que, sim, estamos a ver um filme com actos horríveis, que, sim, estamos a ver um filme com actos horríveis e estamos a gostar de ver (o que não é a mesma coisa que gostar de ver actos horríveis, mas não deixa de ser muito perturbador). E desejamos que venha aí uma violência boa (mas há uma violência boa?) que reponha a ordem (e ela vem, mas, porque fora da lógica do filme, é eliminada num dos muitos efeitos de distanciação que Haneke semeia). Dele não se foge, ninguém foge, nem nós que estamos ali quase em estado hipnótico (que bem que Haneke pratica a arte do cinema!), nem os personagens que estão ali a servir um desígnio sem aleatoriedades. É que se Deus não joga aos dados, menos ainda joga Michael Haneke, senhor do seu filme de fio a pavio.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso, 5/7/2007


Dez anos depois da estreia do original, o austríaco Michael Haneke foi aos EUA rodar o "remake" do filme que mais fez pela sua fama, e que ainda hoje é o melhor título da sua obra - "Funny Games" / "Brincadeiras Perigosas". O "remake" americano, mais do que apenas homónimo, é uma transposição fiel do original austríaco, quase "plano a plano".

Se bem se recordam, "Funny Games" era um surpreendente exercício de crueldade bastante sádica. Uma familia "exemplar" de uma classe média refinada que era aprisionada na sua casa de campo por dois torturadores que encarnavam um Mal sem razão nem motivação (um Mal, digamos, bacteriológico"). Ao mesmo tempo, o filme funcionava num mecanismo que pretendia aprisionar o espectador, frustrando-lhe as expectativas e os códigos de identificação, obrigando-o a habitar o outro lado da cultura da exposição (anos 90: começávamos a despertar para os "reality shows") e da violência desafectadas (a que entra ela televisão, a que vem dos jogos vídeo) que nessa época eram objecto de não pouca reflexão.

Sendo basicamente - quase "plano a plano" - o mesmo filme, por que razão este "Funny Games" já não funciona da mesma maneira? Eliminemos uma das explicações que já vimos avançada: o facto de agora as personagens serem interpretadas por actores conhecidos (sobretudo Naomi Watts, que também produziu o filme, Tim Roth, Michael Pitt), pois como já conhecemos a história e qualquer efeito de surpresa foi removido esse pormenor é pouco relevante. Eliminemos também essa ausência de surpresa, pois se tudo, dependesse da surpresa nunca seria possível rever filmes.

A questão crucial tem a ver com a implicação do espectador. Mais do que implicá-lo - numa perspectiva eventualmente "moral" , eventualmente "hitchockiana" ¬Haneke aposta num efeito de identificação imediata. Toda a primeira cena (a família no automóvel, a caminho do destino de férias) está lá com o pressuposto de que todos os espectadores vão lá estar também, dentro daquele automóvel, o que não é necessariamente verdade. Mais tarde, e já principiado o cerimonial sádico, o filme permite-se "supor" o seu espectador, através da interpelação directa de um dos torturadores - mas o espectador que ele "supõe" é um espectador ingénuo, um espectador que está ainda à espera de que o filme siga os trâmites convencionais das narrativas cinematográficas convencionais. Apetece-nos responder à personagem: "não, não é essa a minha expectativa" . Podemos, pela nossa parte, supor que o espectador suposto por Haneke já não existe - talvez existisse há dez anos. Esse é o momento em que o filme falha o que não podia falhar (o compromisso com o espectador) e a partir daí transforma-se naquilo que queria criticar: o espectáculo de um "voyeurismo" desimplicado.
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Luís Miguel Oliveira, Público, 4/7/2008

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ENTREVISTA AO REALIZADOR (1998)

Há filmes - e cineastas - que se identificam por um «programa», com tudo tudo o que isso pode ter de estimulante ou limitativo. Em 1997, no Festival de Cannes, Funny Games (agora lançado entre nós como Brincadeiras Perigosas) foi um desses filmes: tratava-se, para o seu realizador Michael Haneke, de discutir a questão da violência no próprio cinema, com todo o caudal de temas adjacentes que a nossa modemidade lhe colou: identificação, mimetismo, alienação e, «Last but not least», banalização.

Esta conversa com Haneke decorreu há quase um ano, em pleno festival [de Cannes], e reflecte aquela conjuntura temática. Não creio que «resolva» nenhum dos problemas focados, mas atrevo-me a dizer que aí poderá residir a sua mais simples utilidade. Mesmo que não nos sintamos mobilizados pela pedagogia de Haneke (é o meu caso), há que reconhecer que o seu filme e o seu discurso se cruzam numa curiosa encruzilhada de reflexão. A saber: a avaliação dos poderes efectivos das imagens sobre os espectadores. Nesse sentido, se há dúvida que vale a pena deixar formulada a pretexto de Brincadeiras Perigosas, ela é também de natureza pedagógica: por que é que, hoje em dia, a noção de violência tende a recobrir apenas as manifestações visíveis de agressividade? A imagem de um cadáver ensanguentado é violenta, o mergulho televisivo na história íntima de um qualquer participante ruim «reality show» não é - porquê?

Brincadeiras Perigosas é um filme todo construído para nos fazer sentir que, enquanto espectadores, somos «voyeurs»...

Normalmente, no cinema corrente, o espectador toma-se cúmplice dos agressores, identifica-se com eles - acontece assim em 98 por cento dos filmes de sex e crime: o espectador transforma-se em «voyeur». E habitual a indústria cinematográfica ser acusada de criar essas imagens que seguem a lógica dominante dos meios de comunicação. Acontece, porém, que o espectador tem a sua própria responsabilidade: se não fosse ver esses filmes, eles não seriam feitos.

Qual é, então, a sua estratégia?

O que procuro fazer é inverter, ou melhor, corrigir situações que são habitualmente tratadas de forma falsa - tento mostrá-las de forma verdadeira. Quero que o espectador veja a violência por aquilo que ela realmente é, ou seja, através do sofrimento das vítimas. Quase sempre o espectador é desviado desse sofrimento e o que eu pretendo é que o espectador perceba que está ali o que ele, regra geral não quer ver. Há um elemento de choque, uma ironia que me serve para que o espectador reconheça o seu papel na produção e no consumo da violência.

E se os espectadores não aparecerem?

Acho que se Brincadeiras Perigosas não chegar aos espectadores, isso se vai ficar a dever em parte aos críticos que o classificam como um «filme de arte». Ora, eu fiz este filme para o público em geral- penso mesmo que o choque de reconhecimento que o filme provoca será, muito maior para o chamado espectador normal do que para as pessoas mais informadas os meios de comunicação.

Você é um realizador, mas também um espectador. Como espectador, que relação estabelece com a violência nos filmes?

Não vejo muitos filmes. Vejo mesmo muito poucos. Quanto aos filmes de «sexo e violência», quase nunca os vou ver. Por vezes, vou apenas por interesse profissional, para me manter informado sobre o que se vai fazendo. Mas se quero passar uma noite de forma inteligente, não é esse tipo de filmes que vou ver. Salò, de Pasolini, é o único filme que trata a violência pelo que ela é.

Como reage quando as pessoas, face ao seu filme, formulam juízos de valor morais sobre a sua própria pessoa?

E preciso não esquecer que os autores de tragédias não são necessariamente pessoas desagradáveis. Quando se está verdadeiramente interessado no género humano, é preciso fazer algo contra as coisas más que nós acontecem. Para mim, para o meu desenvolvimento como pessoa, os filmes mais importantes foram os que me surpreenderam e pertur¬baram, não necessariamente os que me divertiram.

Haveria, certamente, outras maneiras de encenar a intriga de Brincadeiras Perigosas...

Se os americanos, por exemplo, fizessem uma «remake» de Brincadeiras Perigosas facilmente se transformaria num objecto cínico e sádico. De qualquer modo, julgo que era fundamental escolher um caso tão extremo como aquele que mostro para apanhar o espectador, para lhe acertar em cheio. Caso contrário, mesmo que lhe parecesse interessante, rapidamente esqueceria. Assim, o filme fica-lhe na memória e obriga-o a um processo de reflexão.

Porque é que usa aquela solução televisiva que consiste em colocar uma personagem a olhar para a câmara, falando «directamente» para o espectador?

Esse é apenas um dos elementos que uso para fazer o espectador sair do seu papel tradicional e para o tornar consciente de aspectos que, geralmente, lhe passam despercebidos. Trata-se de quebrar as regras do próprio género como, por exemplo, o não mostrar a violência contra as crianças ou a obrigação de um final feliz, sejam quais forem as ocorrências narradas. Quando os actores se dirigem à câmara e perguntam ao espectador se era aquilo que ele queria, pretendo que o espectador abandone o seu papel normal de mero consumidor de violência - o espectador não está inocente e tem um papel naquilo tudo.

Acha que a sua visão destes problemas é específica de uma geração?

Pertenço a uma geração que se desenvolveu antes da televisão. Nesse sentido, tenho uma visão crítica dos «media»; caso contrário, se a televisão tivesse sido o meu segundo seio materno, como é para os jovens de hoje, teria muita dificuldade em distinguir a verdadeira violência da violência ficcionada.
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João Lopes, Expresso, 4/4/1998


VERSÃO ORIGINAL

Título Original: Funny Games
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke
Direcção de Fotografia: Jürgen Jürges
Montagem: Andreas Prochaska
Interpretação: Susanne Lothar, Ulrich Mühe, Arno Frisch, Frank Giering, Stefan Clapczynski
Origem: Áustria
Ano de Estreia: 1997
Duração: 108’
Legendas em português

REMAKE

Título Original: Funny Games US
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke, baseado na novella de Fank Kafka “Das Schloß”
Direcção de Fotografia: Darius Khondji
Montagem: Monika Willi
Interpretação: Naomi Watts, Tim Roth, Michael Pitt, Brady Corbet e Devon Gearhart
Origem: EUA/França/UK/Áustria/Alemanha/Itália
Ano de Estreia: 2007
Duração: 111’
Legendas em português


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Jesus Christ! It's Trier's Anti-Christ!! 2ªf, IPJ, 22h.

Site oficial


Porque preferiu o prazer à vocação maternal, porque consentiu que o filho se perdesse, ela introduz a desordem no mundo e carregará a culpa. Tentará castigar a própria carne, porque terá percebido que está nela a raiz do mal- a natureza não é coisa civilizada, os instintos não são fonte de pacificação, mas de violência. Conduzida para essa natureza (onde, em tempos, se descobriu pérfida ao ponto de inculcar dor no próprio filho) por um homem que acredita mais na razão que nas forças obscuras da Terra, ela vai mostrar-lhe que não é acaso ter sido uma mulher a ceder às seduções da serpente e a trazer o, pecado ao Éden. Tentará, em raiva e atrocidade, dominá-lo pela dor e pelo sexo, como se pertencessem às mulheres esses segredos abomináveis pela prática dos quais, séculos fora, um genocídio foi perpetrado. Mas há que devolver a ordem ao mundo, varrer a culpa, a dor e o desespero. Por isso, um ímpeto de justiça se ergue - e ele sacrifica-a, pela sufocação e pela fogueira - não para castigar mas para libertar todas as mulheres que levavam as grilhetas do opróbio, pois preciso é que uma delas morra por todo o povo. É assim que, no fim do filme, como um cantochão de hossanas, ele pode ver a paz devolvida a todas as que ressuscitaram. O Anticristo, a Besta, a Grande Prostituta - é ela (Charlotte Gainsbourg), a mulher. em estado de impudícia.




É isto o que Lars von Trier queria dizer com "Antichrist - Anticristo"? Proponho que sim, mas, no fundo, não faço a menor ideia. Construído como uma narrativa simbólica - apocalíptica, dir-se-ia -, este filme vê-se como uma cerimónia solene, com o seu quê de mágico, como se houvesse uma vara que remexesse as coisas atrozes que nunca encaramos, jamais verbalizamos - e elas se pusessem a acontecer no ecrã. Podemos procurar decifrações, mas, como em todos os rituais, a ideia é mais a de nos deixarmos penetrar pela ambiência que a de encontrar uma explicação lógica para os eventos.

Uma precaução, todavia: "Antichrist¬-Anticristo" é um filme extremo, pavoroso, descer aos infernos não se faz sem dor. Handel cola-se a um sexo masculino em ecrã panorâmico a penetrar uma mulher - mais tarde, esse mesmo sexo jorrará sangue numa das várias cenas que o olhar dificilmente sustenta. É experiência única de um cineasta perturbado e convulso religiosamente. Um documentário sobre dois actores a figurar o inominável.



"Antichrist - Anticristo" é um filme onde o odioso e o sublime se fundem. Acho-o admirável, fulgurante, corajoso, coerente com o resto da obra do cineasta e devastadoramente belo... mas, cem anos que eu viva, não quero voltar a encontrá-lo diante de mim.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso

... E chegou Lars von Trier! O menos que se pode dizer é que as expectativas foram cumpridas. Que é como quem diz: «Antichrist» tem tudo aquilo que promete, desde a reencenação assombrada do universo do par conjugal até à explosão de uma violência visceral que não pode deixar de desafiar a sensibilidade de qualquer espectador.

Dito isto, importa também acrescentar que seria gratuito alinhar pelas vozes do "escândalo" que, nestas ocasiões, se erguem dos sítios mais inesperados (por vezes, sem sequer conhecerem o filme). Digamos antes que «Antichrist» é o filme sério e perturbante de alguém que não recua perante as dificuldades - físicas, morais e simbólicas - de representar um Inferno onde confluem o poder masculino e a nunca aquietada revolta feminina.



«Antichrist» de Lars von Trier, é uma perturbante travessia das relações homem/mulher e fica, desde já, como um dos acontecimentos maiores deste festival [Cannes 2009].
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João Lopes, cinema2000

Lars Von Trier é, possivelmente, o mais perverso realizador da História do Cinema. Não tem ética nem escrúpulos, é moralmente repugnante. Absolutamente odioso. Contudo, genial. É esse génio maléfico que faz com que o odiemos tanto sem que consigamos deixar de gostar dele. Se tudo isto se aplica a Ondas de Paixão, Os Idiotas e Manderlay, o que dizer de Anticristo, o primeiro filme catalogado no género de terror? Pois, poupem as vossas mentes sãs e não vão ver este filme. Contudo, não deixem de o fazer, pois é uma experiência totalmente nova de cinema (ainda que plausivelmente traumática) sem recurso à tridimensionalidade. Por mais que nos irrite, o que Lars Von Trier não tem de ético, tem de estético. E, nos últimos anos, nenhum outro realizador assumiu um papel tão preponderante e consistente de reinvenção do cinema (Trier mistura o ecletismo de Kubrick com os ambientes de Lynch ou Cronenberg e uma mão cheia de contextos que o próprio inventou), sem nunca perder a sua voz, ou as suas vozes. O exemplo máximo do contraste criminoso entre o vislumbre estético e a negligência ética é o prelúdio do filme, numa estilização absoluta, em que filma a morte de uma criança, com uma banda sonora de conto de fadas, numa aberrante crueldade para as personagens e para os espectadores. Isto na tentativa convicta de incidir a culpa, conceito dominante no seu imaginário, assim como o de castigo.

A partir da morte do filho, Trier desenvolve uma obra de terror psicológico, em que o marido/pai/psicólogo assume o tratamento da sua mulher. Há uma perscrutação dos medos, que faz pouco sentido atendendo à evidência da situação traumática, que leva o casal à Floresta de Éden, o jardim proibido, onde se escondem os três pedintes: dor, desespero e luto. A natureza é a Igreja de Satanás, e a trama precipita-se para a loucura. Não é um filme de sustos, mas tem algumas das imagens mais horrendas que já vi em sala.


Entre as ousadias formais está o elenco minimal. Anticristo é uma peça para dois actores e três animais selvagens. Os actores são extraordinários no talento, mas estranhos de feições, mesmo ao gosto do realizador dinamarquês. O trabalho de Willem Defoe e Charlote Gainsbourgh é verdadeiramente notável, aguentam quase duas horas de filme, em que pouco mais existe senão eles próprios, em interpretações visceralmente contidas.

A determinada o filme encaminha-se para uma irónica e cruel paródia à psicologia, e essa leitura subsiste, quando ela diz: "Tive um sonho estranho, mas os sonhos já não interessam nada à psicologia moderna, pois não?" É caso para dizer: Freud morreu, o Lars Von Trier é louco e eu já não me estou a sentir muito bem.
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Manuel Halpern, aeiou.visao.pt/



No princípio é o asco: um spot publicitário da Acqua di Gio (ou de outra marca que o valha) coreografado a.preto e branco e au ralenti com uma câmara digital HD e o 'Lascia ch'io Pianga' do "Rinaldo" de Handel a introduzir, na banda sonora, um prenúncio de tragédia na ficção. Mas o que tem para vender o prólogo hipermaneirista do filme de Lars von Trier? Não um perfume (antes fosse), mas a morte de uma criança que se precipita de uma janela enquanto os pais 'se devoram' no chuveiro (e há aqui uma tentativa de contraponto entre os 'trágicos' flocos de neve que a criança atravessa na sua queda e as 'luxuriosas' gotas de água que caem sobre os rostos dos pais que define por completo a insensibilidade de um cineasta).

E, se bastaria o prólogo do filme para lhe assegurar lugar no top ten do formalismo mentecapto (Lars von Trier bem pode comparar-se com Bergman e Tarkovski: ambos teriam recusado liminarmente estes insuportáveis floreados), também é verdade que os quatro capítulos e o epílogo se limitam a confirmar as nossas impressões.


O que vemos aí? Um jogo de massacre protagonizado por duas personagens sem nome (as do casal, corajosamente interpretado por Dafoe e Gainsbourg) que operam menos como duas pessoas concretas do que como dois conceitos em conflito: o homem, corno figura da razão, e a mulher, como figura da natureza.

De facto, depois do tenebroso prólogo, o filme encurralará as suas personagens numa casa de montanha ladeada por um bosque (o Éden) que funciona como uma espécie de reverso negativo da 'zona' do "Stalker" de Tarkovski, isto é, como um espaço de revelação onde todos os pesadelos se realizam.

O pior, quanto a nós, vem a seguir, quando o verdadeiro jogo de massacre começa e Lars von Trier embarca na construção de uma série de paralelismos metafísicos primários (mulher = natureza; natureza = mal; mulher = anticristo) e de mediações simbólicas forçadas (a correspondência entre os 'três pedintes' e os três animais) que se interpõem a todo o instante entre o espectador e as personagens.


O resto (e o resto são, sobretudo, grandes planos de pernas perfuradas e de genitais mutilados que traçam tangentes com o gore) explica-se pela necessidade quase infantil de chamar a atenção que o cinema de Lars von Trier parece ter sentido desde o primeiro momento. Mas, prestar-lhe muita atenção, isso seria ir na conversa de um cineasta que, na ausência de coisas substantivas para nos dizer e mostrar, precisa do fogo-de-artifício para se fazer notar.
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Vasco Baptista Marques, Expresso



Como é que se fala de um filme monstruoso? A crítica de cinema também tem o dever de pensar nisto em relação ao novo trabalho de Lars Von Trier . Porque "Antichrist " não é um filme qualquer. Contou Trier que, há dois anos, teve uma depressão e tudo lhe parecia fútil. Não conseguia trabalhar. Quando finalmente escreveu o argumento que haveria de dar origem a este filme, "e o argumento foi uma terapia", afirmou, lembrou-se da "crise inferno" de Strindberg. E Trier, que é dado a amores e ódios, a paranóias e a exorcismos, a confrontações violentas que começam com os actores na rodagem e acabam nos espectadores das salas, concluiu mesmo que o filme que hoje à noite subirá a passadeira vermelha de Cannes é o mais importante de toda a sua carreira.

Não é um filme qualquer, repetimos. O que está em causa é um casal, Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, que começa a destruir-se. A destruição começa a preto e branco e ralenti, numa sequência pavorosa, não há outra palavra: enquanto o casal está na cama a ter relações sexuais, o filho de ambos, ainda bébe, trepa para uma mesa e a curiosidade leva-o a mergulhar pela janela do prédio. Ela é escritora, ele psicanalista. Nunca mais irão recompôr-se dessa perda.
O homem começa a fazer terapia à própria mulher. Ela está num estado incontrolável de desespero e tenta contorná-lo com uma pulsão sexual insaciável. Talvez se chegue a essa situação por ter havido demasiado amor e a perda lhe ser proporcional mas, em todo o caso, é um amor pelo 'Eu', desmesurado e sem partilha. Se o homem (as personagens não têm nomes) a domina psicologicamente, a resposta dela vem por um domínio físico. Retiram-se para uma cabana isolada, no meio de uma floresta que é um espaço muito mais mental do que outra coisa. De resto, eles já não tem a Terra nos pés quando o filme começa.




Será nessa cabana, e nessa floresta, que ambos acabam por virar-se violentamente um contra o outro, envoltos pelo desgosto e pelo caos, por simbologias demoníacas e animais que falam, até ao horror de um instinto assassino que se manifesta em crescendo e que passará pela mutilação genital. Não nos atrevemos a falar de mau gosto (e ele é evidente) porque o mal é mais profundo. Aconteça o que acontecer, por mais escandaloso que seja o que ainda vier até dia 24 em Cannes, ninguém conseguirá ir mais longe no terreno da polémica do que Trier.

Mas acreditamos que, para Trier, nada disto importa: nem os anti-cristos, nem Strindberg e "O Grito" de Munch que o realizador citou, nem o cinema, tão-pouco o Festival de Cannes. Há mais de dez anos, numa altura em que o dinamarquês e o seu "manifesto Dogma" eram incensados pela crítica que transformava "Os Idiotas" numa coqueluche europeia, escrevemos que Trier, mais do que um cineasta, era um caso clínico de psiquiatria. Que fazer detestar-se o mais possível era o que mais lhe dava prazer. Um prazer mórbido que só esta criatura sinistra, mestre do cinismo e do sarcasmo cada vez que dá uma entrevista, poderia explicar. Digamos que o seu talvez seja um caso de egocentrismo exacerbado que se manifesta pelo masoquismo mas não vamos - nem temos conhecimento para - fazer psicanálise aos seus filmes e ao seu autor.
De resto, isso seria outra forma de dar atenção a um cineasta que já provou que, para tê-la, de tanto querê-la, está disposto a tudo, inclusivé a tratar a espécie humana como os nazis a trataram em Auschwitz. Hoje, curiosamente, a esmagadora maioria da crítica detesta Trier. Poucos filmes foram tão vaiados numa sessão de imprensa de Cannes como "Antichrist" o foi esta noite. Foram sucessivas as gargalhadas. E o filme em si não tem nenhuma para dar.
Lamentamos, sim - e profundamente - que "Antichrist" termine com uma dedicatória ao cineasta russo Andrei Tarkovski. É uma afronta injusta e ignóbil. Na sessão de imprensa, foi a última gargalhada da noite.
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Francisco Ferreira, Expresso

Parece que hoje em dia a dimensão cultural e artística de um filme e o seu respectivo sucesso nas salas de cinema é directamente comparável ao fluxo de polémica criado nos media à volta do mesmo. Como se um filme existisse apenas para provocar o estômago e a língua afiada dos espectadores e, assim, engrossar uns milhões nos bolsos das produtoras e distribuidoras que assim vêm o seu trabalho concluído. Não que estejamos numa fase decadente ou que não haja criatividade, mas porque a experiência cinematográfica é quase sinónimo de fluxo de informação - quanto mais polémica, mais espectadores. Tudo isto pode ser alcançado simplesmente por uma boa campanha publicitária. Mas há filmes que não precisam de estratégias elaboradas nem de souvenirs.



“Anticristo” foi vaiado, idolatrado, mal interpretado ou, pior, interpretado até à exaustão desde que estreou na Primavera passada. Quase um ano depois chega às nossas salas de cinema. Não se consegue perceber porque não vimos o filme na altura, mas também não parece importar. Lars von Trier parece também não se importar muito. Sinteticamente, “Anticristo” conta a estória de um casal que perde o filho e relata a cura psicológica da mãe através da perda e do luto, da dor. Ele, o pai, é também um terapeuta especializado e é o próprio que encena uma série de episódios psicológicos para ajudar a sua mulher no processo. Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg são os únicos actores no filme inteiro, e atiram-nos valentes interpretações, especialmente Gainsbourg, à beira de um colapso nervoso, expondo-se sem precedentes às ideias de von Trier.

“Anticristo” é também um pseudo-horror barra thriller (carregado de suspense, acrescentaria o locutor da RTP), mas feito à maneira de von Trier, que nunca nos decepciona na sua concepção do mal, do real, e dos limites da consciência humana (ou falta dela). As metáforas contadas pelas imagens belas e obscenas, a floresta e a cabana onde metade do filme se desenrola (chamada de Eden), os animais e todo o sangue que pinta de vermelho este filme politicamente incorrecto. A sequência inicial, o prólogo de “Anticristo”, é a melhor do ano, um slow-motion soberbo que marca desde logo o ritmo e ambiente do filme. A mestria do realizador, ajudado por alguns efeitos digitais, e, no conjunto, as performances de Gainsbourg e Dafoe, tornam este exercício de von Trier numa atmosférica e propositadamente senil experiência que por mais palavras que corram na internet, nas revistas e nos jornais não há quem faça verdadeira justiça. Mas não são os belos pormenores estéticos ou o propositado descontruir das regras de campo-contracampo e raccord, numa das primeiras cenas, no hospital, onde von Trier nos ilude com a sua brincadeira de colocar os actores no mesmo eixo - se von Trier disse que fez este filme como recuperação de uma depressão parece estar mais consciente que nós.



Mas é claro que estes pormenores não fazem sentido para a maioria. Por mais que ataquem o machismo e a misoginia do filme, a mutilação sexual e o sexo obsceno e carnal, a maldade e a aparente falta de sentido, são os pormenores que estão à superfície que transformam “Anticristo” num filme que vale a pena ser visto. A estória, especialmente na primeira metade do argumento, é contada à faca e sentimos o sangue a correr-nos nas veias à espera do desenlace. Os actores, os animais, o animalesco, o nú, a floresta e a natureza que se revolta contra nós (estando dentro de cada um, ou a natureza humana versus a natureza lá fora), e von Trier. O problema é que tentamos descodificar o filme e os símbolos e eles não fazem sentido.
Mas isso também não é uma boa desculpa, porque a propositada demência do filme é demasiado presente e estraga alguma inteligência que possa salvar a película do absolutamente ridículo. Mas o que é realmente obsceno é a facilidade que von Trier tem de nos iludir e apontar o dedo do meio, é ele quem manda, claro, é ele que nos tem nas mãos. São tudo razões para não deixar escapar este brilhante e esdrúxulo Anticristo nesta fase senil de von Trier. Sem vomitar.

'rua de baixo'


CRITICA E DECLARAÇOES REALIZADOR

Encontrar uma actriz preparada para chegar onde nenhuma outra chegou antes foi a tarefa a que se propôs o realizador de "Anticristo. E aí apareceu Charlotte Gainsbourg. "Sou tímida por natureza e precisava de saber que o tinha dentro de mim", diz ao Ípsilon.

Há dois anos, Lars von Trier sofreu uma depressão profunda. Entrara na casa dos 50, precisava de algo que o sacudisse. "Anticristo" parecia ser a resposta. Foi longe de mais?

O homem que arranjou um "von" como os de Stroheim e Sternberg, que tem em casa pendurado no armário um "smoking" que pertenceu a Carl T. Dreyer, e que descobriu, quando a mãe estava à beira da morte, que o pai não era quem ele pensava, tem mostrado a sua carreira, e falado das suas psicoses, em público - isto é, no Festival de Cannes, que o adoptou desde o início, quando ele ainda tinha pose de "punk", e que a ele se mantém fiel quando, como agora, tem mais pose de mestre-escola. Essa postura de filho emocionalmente em dificuldades, com aquela franqueza brutal muito nórdica de falar sobre as coisas, fica bem a um "enfant terrible". Mas já há poucos, nesse "lar" adoptivo onde o dinamarquês chega sempre de caravana (Cannes), capazes de se lhe entregarem sem reservas. E foi assim que mal o genérico, "Lars von Trier... Anticristo", apareceu, a gargalhada foi geral. Até a dedicatória a Tarkovsky foi vista como oportunista. E assim que o filme acabou, houve uma correria aos portáteis: que diabo estava Lars, 53 anos, a pensar quando se atirou a esta história de um casal em luto pela morte do filho (Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe) que se refugia numa floresta (quase encantada) onde se dedica à tarefa de se destruir, como se "Cenas da Vida Conjugal" de Bergman se tivesse transformado num filme de terror pornográfico?



Fomos perguntar ao próprio, dirigindo-nos ao Hotel du Cap, em Antibes, um dos mais luxuosos da Côte D'Azur, onde o realizador estaciona a sua modesta caravana e se aloja durante o festival. (O seu medo de voar significa que viaja desde a Dinamarca por estrada.)

Vestido com uma habitual "t-shirt" branca, parecia mais nervoso do que em entrevistas anteriores. "Sou de um tempo em que a pornografia não era tanto um tabu", começa, em defesa do filme. "Todos concordamos que este tipo de violência em relação ao corpo de uma mulher é horrível, mas venho da Dinamarca, que foi o primeiro país a apresentar livremente pornografia". Lars, recorde-se, comprometeu algumas das mulheres mais bonitas do mundo: deu a Catherine Deneuve e a Björk o papel de operárias no musical "Dancer in the Dark", sacrificou Emily Watson em "Ondas de Paixão", pôs Nicole Kidman acorrentada em "Dogville" e, agora, em "Anticristo", faz Charlotte Gainsbourg masturbar-se e cortar o clítoris em grande plano. "O meu crime aqui é misturar a pornografia com horror, ou chapá-la num filme que parece ser um drama sério de uma relação. Até certo ponto, percebo que isso é um problema."

Deus é uma ideia asquerosa
Desde a primeira cena, com o casal a fazer amor enquanto o filho se precipita da janela para a morte, sabemos que nos esperam alguns choques, pois Lars começa por introduzir logo um grande plano do sexo masculino. A morte do menino está ali, na verdade, apenas como catalisador para a dor da mãe. E quando o casal parte para a cabana na floresta, os demónios libertam-se.



"O filme pretende ser sério", insiste Von Trier, "mas também deriva do meu sentido de humor e da minha maneira de ver o mundo. Sei que parece pouco provável, mas..." O título, diz, vem d'"O Anticristo" de Nietzsche, publicado em 1895, que está na mesa de cabeceira desde os seus 12 anos. "Só cheguei a ler as três primeiras páginas. Foi, realmente, apenas um ponto de partida. Houve pouca lógica ao fazer este filme."

"Anticristo" inspira-se nas suas ansiedades e fobias, acrescenta: concluiu que todas as religiões são feitas pelo homem e que Deus não existe. "Tentei sinceramente tornar-me religioso, ser bom católico, mas a minha mãe e o meu pai eram absolutamente não religiosos e é impossível" - os pais eram hippies, comunistas, praticantes do naturismo. "Gosto muito da Natureza, pesco e caço. E quando se olha para o sistema na Natureza, quando se vê as coisas a nascerem e, a seguir, a serem mortas, e depois a recomeçar tudo outra vez, é difícil pensar que tudo isso poderia ter sido criado por um Deus. É uma ideia asquerosa, tal como vejo as coisas."

Nada, de facto, pode valer à mãe enlouquecida de Gainsbourg, e decerto não o marido (Willem Dafoe), psicoterapeuta que pensa que é boa ideia os dois regressarem à cabana onde ela passou bons momentos com o filho. "Ele é apenas um intelectual", troça Von Trier. "Sente que domina a situação e não a domina de modo nenhum."

O casal entra numa espiral de violência sexual e física, que não só evoca "A Semente do Diabo" - "Polanski teve grande influência", admite - mas também Strindberg.



O pénis e o clítoris
Dar o papel a Dafoe, actor destemido, não foi proeza. Porém, encontrar uma actriz preparada para chegar onde nenhuma outra chegara antes representava um sério pesadelo para o realizador.

"Tínhamos trabalhado com outras actrizes e falado com agentes, que exigiam que fizéssemos um desenho de cada cena e mostrássemos quantos milímetros do mamilo seriam mostrados e blá, blá, blá. Eu disse: 'Manda-os todos embora. Não posso trabalhar desse modo.' Então entrou a Charlotte e disse que estava morta por obter o papel. Penso que é algo pessoal que ela queria tentar, e tenho todo o respeito do mundo por isso. Não temos maus sentimentos agora e foi uma coisa fácil de fazer. Não era o clítoris da própria Charlotte, devo dizer", acrescenta, com uma risada. "Fizemos uma coisa artificial, seria verdadeiramente difícil arranjar duplos do corpo."
Gainsbourg falava com a mãe, Jane Birkin, regularmente pelo telefone durante as filmagens. "Ela deu-me um apoio incrível", revela Gainsbourg, que, tal como Björk, arrebatou o prémio de melhor actriz em Cannes (mas a islandesa já disse que nunca mais voltaria a trabalhar com Von Trier).

"Foi uma experiência dura no sentido em que foi tão extrema e as emoções eram tão extremas", admite Charlotte, "mas, ao mesmo tempo, foi libertadora, porque pude estar em crise durante dois meses e não ter barreiras, pude levar-me até aos limites. É maravilhoso experimentar isso. Depois, precisava realmente que aquilo terminasse e estava muito cansada, mas voltar à normalidade e não poder gritar durante o dia todo foi estranho", ri-se. "Sou uma pessoa tímida por natureza e precisava de saber que o tinha dentro de mim. Há certas alturas em que se está preparado para fazer aquilo, para ir tão longe."

Gainsbourg voltava do local das filmagens, na Floresta Negra, para a sua casa em Paris aos fins-de-semana. "Precisava de fazer isso para poder estar com os meus filhos, mas receava deixar aquele local estranho e, ao mesmo tempo, sentia medo quando tinha de regressar."
O seu companheiro de há muito, o actor e realizador Yvan Attal, deu-lhe pleno apoio, diz. "Ele compreendeu que era um sonho trabalhar com alguém como o Lars. Quando estava a filmar, por vezes, precisava de falar com ele pelo telefone, mas ele não escutava verdadeiramente e eu conseguia percebê-lo, estando na sua posição. Eu não teria querido saber exactamente o que estava a fazer. Ele estava apenas a dizer: 'Faz o teu trabalho e volta.' Quando o filme ficou pronto, Yvan viu-o em Paris e disse que queria vir comigo a Cannes. Tem muito orgulho em mim de uma maneira amorosa. Creio que gosta do filme, o que é reconfortante."

Dafoe é fã do filme, igualmente. Mas quando fala sobre ele Lars fala, sobretudo, de um pénis. "[O grande plano no filme] Era de uma estrela porno alemã chamada Horst", diz o cineasta, sorriso escarninho. "Ele foi realmente simpático. Descobri que há apenas uma regra no porno e é que não é permitido atingir o orgasmo sem uma ordem directa do realizador. Por isso, foi de facto ridículo, com a equipa toda a observar durante um quarto de hora. Era difícil não nos rirmos."
Dafoe, que incorreu na ira dos conservadores religiosos quando desempenhou o papel principal em "A Última Tentação de Cristo" de Martin Scorsese, não se esquiva a controvérsias. Afirma que "Anticristo" é um dos filmes mais fascinantes que fez.



Não é, também, a primeira vez que trabalha com von Trier. Depois de Nicole Kidman e James Caan terem decidido não filmar "Manderley", a sequela de "Dogville", Bryce Dallas Howard e Dafoe avançaram. Dafoe gostou tanto que escreveu a von Trier a perguntar-lhe se não tinha mais alguma coisa em mente.

"Gostava que as pessoas vissem a beleza em 'Anticristo', para se sentirem atraídas", diz o actor, "mas não é, claramente, para toda a gente." Dafoe conheceu o seu duplo, a estrela porno alemã Horst. "Conheci o Horst e ele disse: 'Espero que gostes do meu tamanho, espero que gostes do meu estilo'", recorda Dafoe, adoptando um sotaque alemão. Teria gostado de fazer a cena, mas, para von Trier, era importante que os genitais não pertencessem às estrelas, de modo a não "distrair a assistência". Mas Lars conclui: "Tivemos de tirar algumas das cenas do Willem ou as pessoas pensariam que era truque. O Willem é um homem de sorte."
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Helen Barlow, Público

ENTREVISTA
Uma experiência única enquanto espectador é o que nos aguarda em "Anticristo", o novo filme do realizador dinamarquês Lars von Trier. Após um acontecimento trágico ocorrido no seio familiar, um casal refugia-se numa cabana no meio da floresta. Mas o processo de expiação da culpa é vigiado pela natureza e algo de inesperado acontece… O filme dividiu a crítica no Festival de Cannes, em França, de onde Charlotte Gainsbourg saiu com o prémio de interpretação pelo trabalho ao lado de Willem Dafoe. O filme foi escrito na ressaca de uma depressão que vitimou o realizador, de 53 anos, que recebeu o JN ainda sob efeitos desse período traumático.

O mundo místico e alegórico que criou para este filme inspira-se em alguma teoria que descobriu ou saiu todo da sua imaginação?
Quando era mais novo, fiz algumas viagens xamãnicas. As civilizações primitivas tinham todas o seu xamã, que levavam as pessoas para mundos paralelos e imaginavam coisas. É daí que vêm todas as imagens de animais e de estrelas que se vêem no filme.

Há um lado de éden satânico no universo que se vê na tela.
Talvez por ser na Terra, não sei. Pode perguntar-me o que quiser sobre o filme, mas, desta vez, permiti-me não ter nenhuma resposta lógica ou matemática para qualquer pergunta que me fizessem.

De onde veio a ideia para o filme?
Começou pelo título. Depois, escrevi qualquer coisa. Mas, infelizmente, ou talvez não, nunca se sabe, entrei em depressão. Nunca me tinha acontecido. É doloroso, sobretudo para a família, porque não se consegue fazer nada, a não ser estar deitado a olhar para a parede, durante meses. Ter de voltar a trabalhar foi uma espécie de terapia.

Do ponto de vista criativo, sentiu diferença entre escrever sob uma depressão ou mentalmente são?
Depende do que se está a escrever. Mas talvez me sentisse mais livre para escrever o que quiser. Quando se está numa situação extrema, não importa se o que estamos a escrever é politicamente correcto ou não.

O filme vai até onde nunca se tinha ido, em termos gráficos…
Se o filme lida com o sexo, não sei porque não o deveria mostrar.

Há algum tempo, disse que gostava de fazer um filme pornográfico. Este filme tem alguma coisa a ver com essa ideia?
Este não é esse filme pornográfico. Um filme pornográfico teria outros propósitos. Ainda estou aberto a essa ideia. Até já sei que se tem de dizer a um actor pornográfico quando ele tem de ejacular. Já comecei a aprender a ser um realizador de filmes pornográficos.

A ligação entre o sexo e a morte é algo que o cinema já tem abordado, como, por exemplo, em "O império dos sentidos", do Oshima.
A morte da criança é que espoleta toda a história. E se pensarmos no sexo como uma forma de gerar uma criança, tudo cai por terra quando essa criança morre.

Há um perigo iminente de o filme ser acusado de misoginia.
Bom, tenho um problema com as mulheres. Mas todos os homens têm, não? Às vezes, são difíceis de compreender. Mas há muitas mulheres que adoro.

Os seus filmes são classificados por muita gente como "difíceis". Isso não o preocupa?
Quando estou a trabalhar num filme, não. Um filme é uma coisa muito egoísta de se fazer, é para a nossa satisfação pessoal. É assim que trabalho. Há colegas meus que se preocupam com o público, mas depois saem filmes muito comerciais. No meu caso, não me é possível trabalhar assim.

Escolheu a Charlotte Gainsbourg e o Willem Dafoe por causa da semelhança dos traços fisionómicos?
Tive imensa dificuldade em encontrar actores que quisessem fazer o filme. Tive imensas discussões com agentes, que queriam saber tudo sobre a violência e o sexo no filme. A certo ponto, pensei que assim ia ser impossível fazer o filme. Mas, depois, encontrámos os dois actores e é verdade que ficam muito bem os dois juntos.

Mudou alguma coisa quando percebeu que ia ter um actor em "Anticristo" que já tinha feito o papel de Cristo?
Não, e até teve piada. Por vezes, ao dirigi-lo, pedia-lhe para ser um bocadinho menos Cristo! Mas, no final, dei-lhe autorização para ser Cristo…

Desta vez, não fez a fotografia do filme. Porquê?
Por causa da depressão, eu tremia imenso. Como vê, ainda tremo muito… O que escrevi quando estava com a depressão, é completamente ilegível. Nem eu sei o que lá está escrito. É humilhante quando o corpo faz coisas que não queremos. É assustador.
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João Antunes, Jornal de Notícias


Título Original: Antichrist
Realização: Lars Von Trier
Argumento: Lars Von Trier
Interpretação: Willem Dafoe, Charlotte Gainsbourg, Storm Acheche Sahlstrøm
Direcção de Fotografia: Anthony Dod Mantle
Montagem: Åsa Mossberg e Anders Refn
Origem: Dinamarca/ Alemanha/ França/ Suécia/ Itália/ Polónia
Ano de Estreia: 2009
Duração: 109’

Haneke adapta O Castelo de Kafka. Um acto de coragem que merece a nossa atenção. 5ªf, 22h, Artistas, Entrada Livre.

O Castelo (1997) é um filme que não foi visto. Pouco se encontra de comentários e críticas a respeito do título de Michael Haneke. Alguns sites especializados chegam a ignorá-lo ao elaborar filmografias do cineasta alemão. Duas explicações para isto podem ser facilmente identificadas: primeiro, foi lançado no mesmo ano de Violência Gratuita [Brincadeiras Perigosas] (1997), que acabou se tornando uma das principais referências de Haneke; segundo, trata-se de uma versão do livro homônimo de Franz Kafka, e a resistência em relação a adaptações de grandes escritores é plenamente natural.

Quem conhece as produções de Haneke sabe de sua predilecção por formatos ousados e da sua atracção pelo surrealismo. Por isso, a escolha da obra de Kafka é atraente. Assim como seus grandes clássicos O Processo e A Metamorfose, esta é uma história sustentada por uma grande e complexa alegoria e dotada de uma subversão que foi transferida para o filme.

A trama é simples: K. (Ulrich Mühe) é um agrimensor enviado a um vilarejo (de localização indefinida, como é de praxe) a trabalho. Lá, descobre a existência de um castelo misterioso, ao qual apenas alguns privilegiados têm acesso. Ele decide conhecer o lugar a todo custo, mas logo percebe que a tarefa não será fácil.

O que é o castelo? Por que K. quer tanto chegar até lá? Por que há quem tente impedir que ele consiga? Se não o querem lá, quem o mandou e por quê? Essas perguntas tornam-se inevitáveis e, em um determinado momento, perturbadoras (como manda o bom cinema hanekiano). Ilude-se quem pensa que as respostas virão mastigadas em uma reviravolta final. Não, não se trata de um policial americano insosso. As dúvidas permanecem sem esclarecimento mesmo após o término do filme, inclusive porque acaba antes do fim da história (assim como o livro).

O Castelo tem suas qualidades. Haneke é impecável na direção de atores. Encontramos atuações consistentes até nos papéis secundários. E é preciso registrar que o diretor faz algo raro: incluir um elemento que dê à narrativa uma dose de humor, ainda que bem leve. Essa função é cumprida pelos assistentes de K. (Frank Giering e Felix Eitner).
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Pedro Garcia


Made for Austrian television in 1997 - the same year that he would make his feature Funny Games - Michael Haneke’s adaptation of Franz Kafka’s ‘Das Schloss’ sees the director working with adapted material that chimes entirely with a personal worldview we have come to know from films like The Seventh Continent, Code Unknown and Hidden (Caché), depicting individuals buckling under the increasingly cold and uncaring mechanical progress of modern society. Using many of the same actors who feature in Funny Games, it presents an intriguing parallel to the director’s breakthrough feature film.

Kafka’s unfinished novel ‘Das Schloss’, follows the activity of one such alienated individual trying to make sense of the innumerable and unfathomable levels of bureaucracy to find his own place and position in the world. K. (Ulrich Mühe) arrives in the village that surrounds the Castle as a stranger. Finding an inn, he is unable to obtain a room, but the innkeeper allows him to sleep on a mattress in the parlour of the bar. His intrusion is seen as unwelcome and Schwarzer, the son of the under-Castellan, challenges him, regarding him as a vagabond. A quick call however reveals that K. has been engaged by the Castle as a Land Surveyor.

K.’s assistants Jeremias and Artur (Felix Eitner and Frank Giering) arrive the next day, but rather than assist K., who finds them indistinguishable, the incompetent duo, arriving without his apparatus, seem to hamper his every attempt to make contact with the Castle, and always seem to be following him around. Even when K. attempts to gain the influence of Frieda (Susanne Lothar), a barmaid who tells him she is the mistress of a prominent Castle official called Klamm, the hapless duo spy on him as he makes love to her behind the bar.

As a consequence, Frieda loses her position at the Herrenhof bar, and K., under pressure from his landlady, finds he has no option but to support her while he tries to find out what work he has been engaged by the Castle to carry out. Those instructions never seem to arrive, and indeed the Castle continually refuses, via letters and messages that Klamm’s assistant Barnabas (André Eisermann) communicates to K., to allow him entrance to the Castle. Frustrated, K. finds out from the Superintendent that the summoning of a Land Surveyor was an administrative error, and his services are no longer required. As no-one however is in a position to confirm his appointment or admit the error, K. finds himself in a curious position of having status but no position. With no other option – particularly as he is under pressure from Frieda and his landlady - K. accepts a lowly position as a janitor at the local school. His troubles with various women continually distract him from his task, and any attempt to approach and appeal to the Castle continue to be met with indifference, obstinacy and bogged down in bureaucratic red-tape.

As would be expected from the director at this point in his career, Haneke’s now familiar style is appropriate to the subject, adopting a neutral approach marked out by jump cuts to black screens. The gaps however are not Kafka’s - The Castle is perhaps the writer’s most fluid and consistent work, and only incomplete in that it never reached a conclusion. Haneke however makes use of his trademark method here rather to cut back on the length of certain scenes, excising a number of minor characters and reducing others - the landlady’s role is greatly reduced and it removes many of her and K.’s cross-purpose confrontations - but it matches the curious elliptical rhythms and the dreamlike passing of immeasurable periods of time in Kafka’s novel. Haneke of course fully exploits the fact that the novel is open and unfinished – as most of his own films are – taking pleasure in bringing the film to an unexpected conclusion as the end of the manuscript, even though it is not the one (again featuring the landlady) that finishes the novel. Haneke’s way of showing K. attempting to make headway against the constant grind of the machinery of bureaucracy and the petty social hierarchy, is to show him trudging repeatedly back and forth through the snow and howling winds, often in the dark.

It’s a perfectly adequate way to depict Kafka’s struggle of the individual to find their place in society, but it’s also a failure, as is any attempt to capture the essence of Kafka on the screen. The best any director can do with Kafka’s absurd, nightmarish and unfilmable works is find elements from them to incorporate into their own worldview - as in Soderbergh’s fun-but-missing-the-point Kafka – or vice-versa, as in Orson Welles’ ambitious, often impressive, but ultimately doomed adaptation and re-writing of The Trial. Haneke’s adaptation of The Castle is more literal and faithful to Kafka than either of those films, but he never makes it come alive or personal in the way that he can usually lift a storyline off the screen and into your own life. A narrator is used to maintain some of the authorial musings on the characters and their behaviour, but more often Haneke depicts events with neutrality and lack of comment, which allows him to capture Kafka’s sense of the absurdity of social behaviour, but fails to capture the complexity of the characters’ deeper striving for belonging and spiritual meaning. Haneke would achieve this element of humanity much more successfully in Time Of The Wolf, but, perhaps through the necessity of adaptation and simplification for television, he fails to do so here.
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(daqui)


It was just a matter of time before Michael Haneke and Franz Kafka crossed paths. The Castle, the Austrian filmmaker's made-for-TV version of the Czech writer's famous unfinished novel, promises an intriguing meeting between these two dedicated misanthropes, yet despite the overlapping bleakness of their worldviews, the film is notable mostly as an example of how somebody can follow a work to the letter and still miss its essence. K. (Ulrich Mühe) comes in from the cold, summoned by the mysterious officials at "the Castle" to an isolated village for a position as land surveyor; instead he finds himself reluctantly engaged to forlorn barmaid Frieda (Susanne Lothar), saddled with a couple of dolts (Felix Eitner and Frank Giering) for assistants, and trudging in circles in the snow, helplessly trying to unscramble the tortuous snafu that's made him "superfluous and in everybody's way." Haneke's last Austrian picture before his departure to France and richer, less offensive films (The Time of the Wolf, Caché), The Castle is something of a companion piece to the director's deplorable, hectoring Funny Games, even bringing back the earlier film's tormented couple for another round of inexplicable distress. Haneke's arctic view of life and abrupt cuts to black come handy in capturing the apprehension of K.'s gnomic bureaucratic limbo, but his lack of humor hampers the story, trading Kafka's sardonic sense of the absurd for an icy blizzard blowing unendingly and unimaginatively. Still, whether due to the less directly personal nature of the project or to the limitations of TV production, the film exerts a less cruel, exacting grip than the usual Haneke vise. Indeed, next to the rigidity of The Seventh Continent and Benny's Video, it is not unlike the closet bulging with crumpled documents K. digs through at one point, and the resulting clutter has a surprising (and welcome) humanizing effect, a rare instance of Haneke recognizing his characters as something more than sacrificial lambs in a dreary world. If nothing else, the film offers the satisfaction of seeing Funny Games psycho Giering recast as a lummox pushed around by the man he previously terrorized, a derisive reversal of power Kafka surely would have dug.
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Fernando F. Croce


Título Original: Das Schloss
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke, baseado na novella de Fank Kafka “Das Schloß”
Interpretação: Ulrich Mühe, Susanne Lothar, Frank Giering, Felix Eitner, André Eisermann. Nikolaus Paryla
Direcção de Fotografia: Jirí Stibr
Montagem: Andreas Prochaska
Origem: Alemanha/Áustria
Ano de Estreia: 1997
Duração: 123’
Legendas: inglês

A Fantasia Lusitana não é de João Canijo. Foi de António de Oliveira Salazar. E ainda hoje pagamos os seus custos. 2ªf, IPJ, 22h.


NOTA DE INTENÇÕES

Portugal viveu a Segunda Guerra Mundial dentro de um mundo de fantasia, a propaganda criou aos portugueses um nível de irrealidade fantasista em que a realidade violenta e terrível da guerra, o nível real da realidade, era uma coisa muito longínqua e de outro mundo.

Mas a fantasia da propaganda era grosseira, porque como diz José Gil: «A grosseria resulta do esforço e da impossibilidade de dar forma a um fundo visceral sem forma. O pior na grosseria, não é a ruína da forma, mas a arrogância em julgar-se forma.»; e essa grosseria tornava-se uma evidência com a chegada a Lisboa das vagas de refugiados que tentavam escapar ao nazismo e embarcar para as Américas.

O filme funda-se no contraste entre as imagens fantasistas da propaganda e as imagens reais do sofrimentos dos refugiados. Vive do contraste entre dois níveis de realidade: a irrealidade de uma fantasia lusitana e a dura realidade das consequências de uma guerra mundial.

As imagens da fantasia fascista pretendem fazer acreditar que graças a Salazar se vivia em Portugal no melhor dos mundos; as imagens do sofrimento dos refugiados de passagem por Lisboa, à espera do barco que os livre do nazismo, apresentam a realidade. Estas imagens são amparadas pelos testemunhos escritos de Erika Mann, Alfred Döblin e Antoine de Saint-Exupéry, em textos que reflectem exactamente o pasmo dos autores diante da bizarra noção de realidade dos portugueses.
João Canijo

Ano da graça de 1940. A Europa encontra-se em Guerra e a Alemanha está a ganhar. Depois da Invasão da Polónia, em 1939, o Exército Nazi invade a Noruega, a Dinamarca, a Bélgica, a Holanda e a França. Os judeus passam a ser identificados com um símbolo e constroem-se os primeiros campos de concentração. Prepara-se o genocídio. Quanto a Portugal... Portugal, pacatamente, recebe delegações germânicas e britânicas, mantendo-se orgulhosamente neutro. É ano de megalomanias e exibição da História. Faz-se a Exposição do Mundo Português, grandiosa e eloquente, com pavilhões exuberantes, paradas com elefantes e leões, barcos tão adornados que se afundam à saída. Em Lisboa, o único porto neutro da Europa, exibe-se uma falsa opulência em plena ascensão de Salazar (o povo é pobre e analfabeto).

A Lisboa chegam milhares de refugiados, fugidos de uma guerra tenebrosa, sem sítio para onde ir, na esperança de encontrarem um barco para um porto distante, na incerteza do rumo da Guerra. 1940 é um dos annus horribilis da Europa, e a Lisboa do fado encontra-se estranhamente em festa.


João Canijo parte de 1940 para fazer um fabuloso documentário. Um filme para o qual não pegou uma única vez na câmara nem escreveu qualquer texto. É todo feito através da colagem de imagens de arquivo e da sobreposição de narrações da época e depoimentos de refugiados ilustres que conheceram a Lisboa de então. É o caso de Erika Mann, a filha de Thomas Mann, Alfred Döblin ou Antoine Saint-Exupéry. Este último fala do exército de pedra que Salazar construiu para afugentar os potenciais inimigos.

João Canijo, autor de Noite Escura, filme que foi considerado o melhor das últimas décadas segundo um painel de críticos convidado pelo JL, faz uma espécie de exercício de pureza. Não se trata de um jogo pelo jogo, mas sim uma tentativa de deixar a História falar por si, abstendo-se o realizador, na medida do possível, de intervir com perspectivas contemporâneas e anacrónicas. Ao mesmo tempo evidencia a montagem como ferramenta primordial na linguagem cinematográfica (realce-se o trabalho de João Braz), como forma de encaminhar uma história. O filme não precisa de mais nada. Estas imagens e palavras falam por si, contam-nos a história durante a História, colocam-nos no tempo sem risco de anacronia ou juízo fora de época.

A imagem deste Portugal não é de todo favorável. Quando na inquisição Portugal expulsou os judeus os países do Centro da Europa acolheram-nos sabiamente, aproveitando mesmo a sua inteligência para o desenvolvimento. Quando, nos anos 40, foi a vez de Portugal se tornar em porto de abrigo, demitiu-se desse estatuto, e quis apenas ser posto de passagem, tratando os refugiados como farrapos, ao ponto de Alfred Dölbin questionar: "Será que eles não se sentiriam melhor na sua terra, apesar dos bombardeamentos". A propaganda da época passa a mensagem: "Portugal não teve o dia D, teve o dia S, de Carmona e Salazar". Salazar, covardemente, salvou Portugal da guerra. Mas quem é que poderia salvar Portugal de si próprio?
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Manuel Halpern

"FANTASIA LUSITANA" é um documentário histórico ou uma ficção de terror puro? Não conseguimos deixar de pensar nisto desde que vimos o novo traba¬lho de João Canijo (produzido pela Perife¬ria Filmes). As suas imagens têm cerca de 60 anos. São imagens perdidas no tempo e foram recolhidas de arquivos, meses a fio, maioritariamente das séries dos filmes noticiosos do "Jornal Português", orientados por António Lopes Ribeiro - os tais que acabavam com uma frase lapidar: "E assim vai o mundo..." Ideia inicial? Documentar a passagem de alguns refugiados famosos por Lisboa, no início dos anos 40. Digamos que, à partida o terror só estava lá em potência. "No entanto, quando comecei a ver o material", disse-nos João Canijo, "percebi que o mais interessante era criar a 'fantasia lusitana', ou seja, explorar um nível de realidade que não tinha nada que ver com a realidade, pois fora criado artificiosamente em Portugal. Como ainda hoje acontece, aliás..." A Lisboa de 1940 (grande parte do filme centra-se em imagens desse ano) é uma cidade cosmopolita como poucas. Para muitos re-fugiados europeus, esta é a última oportunidade e a derradeira porta para conseguir abandonar a Europa. O mundo está em guerra mas, em Lisboa, há festa na rua. As luzes estão acesas e iluminam desfiles de moda, exposições universais, casamentos de príncipes e princesas, desfiles de vedetas do cinema. Respira-se a paz da neutralidade - mas uma paz podre, medíocre e triste. A banda-som do filme decide então incorporar três textos siderantes, de outros tantos escritores que por cá passam naquele ano: Alfred Döblin, autor de "Berlin Alexanderplatz", Erika Mann (a filha mais velha de Thomas) e Antoine de Saint-Exupéry. Canijo decide manter a língua original desses textos, lidos no filme por Hanna Schygulla, Rüdiger Vogler e Christian Patey. E o que se ouve é de gelar as veias. "E aqueles que aqui estavam comigo, todos os refugiados à minha volta – até mesmo os refugiados portugueses que, aliás, se encontravam em número muito re¬duzido neste café - será que se sentiam felizes? Será que se sentiam melhor do que as pessoas nas cidades bombardeadas da Inglaterra? Não eram felizes, nem se sentiam melhor. Pois pior do que a catástrofe em si é a ameaça da catástrofe à qual se está inexoravelmente exposto", escreve Erika Mann.


Não há mil maneiras de o dizer: os testemunhos de "Fantasia Lusitana" são os da nossa vergonha. Apontam menos o dedo a um determinado período histórico do que a um espírito português, indiferente e resignado, que explode com violência no presente. "O que eu acho mais impressionante", acrescenta Canijo, "é a alegria que depois se vê nas caras das pessoas, nas fotos da celebração da vitória dos Aliados. Uma semana depois, há a manifestação de apoio a Salazar. E pronto: mais trinta anos..."
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Francisco Ferreira, Expresso


"Fantasia Lusitana" é a história da castração de um país a que, soterrado debaixo de tralha beata e saudosista, não foi concedida a possibilidade de se assumir.

Entre a Civilização e o Mal, entre a Democracia e a Tirania, Portugal escolheu... a neutralidade. Sabemos, claro, que a história não foi assim tão simples, que nos bastidores o funambulismo (eventualmente brilhante) foi mais do que muito, que as necessidades de sobrevivência do regime não deixavam muitas opções, que a partir de certa altura a "neutralidade" foi mais uma "não-beligerância", o que não quer dizer exactamente o mesmo. Mas persistiu, durante e depois da II Guerra, o culto da neutralidade portuguesa ("escrupulosa e honrada", como se ouve no filme de João Canijo) enquanto virtude suprema, parte, ainda, de uma história de predestinação e privilégio.



Décadas depois, os mais novos ainda ouviam esta cantiga da boca dos mais velhos. E, comodamente nascidos décadas depois do conflito, embrenhados na leitura de histórias da II Guerra, desconhecedores das subtilezas da posição portuguesa na geo-estratégia da altura, impunha-se-lhes a questão moral que cobria a neutralidade com uma tonalidade ligeiramente abjecta: é que mesmo a escolha do Mal e da Tirania teria sido mais fácil de entender, ao menos tratar-se-ia de um compromisso claro. Não são outras as questões desta "Fantasia Lusitana" de João Canijo. A partir de imagens de arquivo, um retrato de Portugal durante a guerra, durante a neutralidade. Grandes e pequenas celebrações, um quotidiano mais ou menos extraordinário que se tentava manter tão... ordinário quanto fosse possível. Portugal como ilha, pedaço feito de ordem e calma, parêntesis num mundo a ferro e fogo. O trabalho de Canijo com o material que pesquisou nos arquivos é sobretudo uma bela operação de compilação, com o mérito de agir sobre os documentos - em grande maioria, documentos "oficiais", produzidos para filmes de actualidades, naturalmente com o alto patrocínio da propaganda de Estado - de maneira subtil, sem os forçar e sem os caricaturar. Porque, na verdade, já lá estava tudo: se o filme de Canijo tem um discurso sobre a neutralidade, suas razões e virtudes, esse discurso constrói-se a partir dos discursos da época, das justificações oficiais e providenciais, das loas a Carmona e a Salazar, da construção da ideia de uma neutralidade "merecida" (expressão que a locução de época refere insistentemente) que faz da II Guerra um castigo que outros povos, menos "merecedores", não souberam evitar. Tudo isso está lá, na origem, mais aquilo que sempre espanta nos noticiários e actualidades portuguesas do tempo da guerra: a indiferença descomprometida, a alegria esforçada, a entropia isolacionista, a fantasia (lusitana) da predestinação.



Como boa compilação, "Fantasia Lusitana" condensa os traços essenciais do ideário da neutralidade com que Portugal cruzou a II Guerra. Onde o filme ganha outra densidade e, digamos, se sedimenta, é na inclusão de uma espécie de contracampo para estas imagens - o olhar dos estrangeiros, dos estrangeiros que por Lisboa deambularam à espera de um barco para os EUA. Alfred Döblin, Erika Mann (a filha de Thomas) e Antoine de Saint-Exupéry: o que escreveram sobre a sua permanência em Portugal, dito em "off" na língua original (o único comentário falado que o filme acrescenta à locução de época) vem agir sobre as imagens, criar-lhes um negativo, desmontar a alegria postiça. São relatos de um país estranho, povoado por gente estranha. Todos falam de uma espécie de tristeza pouco condicente com a gratidão pela neutralidade. Erika Mann (cujo texto é dito por Hanna Schygulla) nota que em Londres as pessoas lhe pareceram mais alegres do que em Lisboa, e no entanto as pessoas de Londres viviam debaixo do "blitz". Mas as pessoas de Londres, conclui ela sem verdadeiramente precisar de o fazer, extraíam a sua alegria de se saberem envolvidas num combate pela justiça. A neutralidade poupa sofrimento, mas castra. "Fantasia Lusitana" também é a história desta castração, e de um país a que, soterrado debaixo de tralha beata e saudosista (a Exposição do Mundo Português, Fátima, o folclore), não foi concedida a possibilidade de se assumir. Dir-se-ia que o regime tinha perfeita noção disto: entre as últimas imagens mostra-se uma qualquer cerimónia de agradecimento, já depois de terminada a guerra, e a locução, levemente invejosa dos "V-days" de outros países, salienta: "não tivemos um dia V, mas tivemos um dia S". S de Salazar, claro. Valha-nos isso. Travámos a guerra sozinhos, sem verdadeiramente entrar em guerra alguma. Mais extraordinário, ganhámo-la. Derradeira fantasia.
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Luís Miguel Oliveira, Público


Raramente um título terá sido tão ajustado a um filme. E "Fantasia Lusitana" passa a ser ponto de paragem obrigatório para olhar para Portugal.

Não era necessariamente aqui que esperávamos encontrar João Canijo, depois das explorações impiedosas do Portugal contemporâneo que foram "Noite Escura" ou "Mal Nascida" - aqui, entenda-se, num filme que está do lado do documentário, mais até do ensaio, do que da ficção.
Mas ainda bem que o encontramos aqui, porque "Fantasia Lusitana", abertura oficial inteiramente merecida do IndieLisboa, faz corpo com o olhar sobre Portugal dos seus filmes anteriores, mostrando como o Portugal de hoje decorre do Portugal de ontem - ou como o Portugal de ontem continua no Portugal de hoje.

"Tudo pela nação" são as primeiras palavras que se ouvem. São palavras que ilustram imagens de moços lusitanos que erguem bandeiras de sinais, que vêm de um jornal de actualidades cinematográficas de 1940, revelando desde logo o alucinante trabalho de pesquisa de imagens que lhe serve de base.

Canijo e o seu montador João Braz organizam com um virtuosismo avassalador, ao longo de 67 minutos, as imagens pesquisadas (que terminam, já a cores, com a inauguração do Cristo-Rei em 1959). Usam a Exposição do Mundo Português de 1940 como ponto central, e justapõem-lhe textos de três viajantes célebres que passaram por Lisboa durante a II Guerra Mundial - Alfred Döblin (o autor de "Berlin Alexanderplatz", na voz de Rüdiger Vogler; Erika Mann, filha de Thomas Mann, na voz de Hanna Schygulla; e Antoine de Saint-Exupéry, o autor do "Principezinho", na voz de Christian Patey).



O cruzamento das imagens triunfalistas do Portugal paradisíaco que as imagens de época sugerem e o olhar simultaneamente poético e lúcido dos textos lidos em "off"s funciona, então, como uma desmontagem metódica e meticulosa desse inicial "tudo pela nação" salazarista. E, de um modo perturbante, ilustra ao mesmo tempo o Portugal dos anos 1940, o Portugal do século XIX tal como Eça de Queiroz o imortalizou e o Portugal contemporâneo, traçando uma linhagem constante e coerente, desenhando um país cujos "brandos costumes" parecem, afinal, continuar a existir.

Ou seja, um país de fantasistas e fingidores, um país a duas velocidades das quais uma é uma simples fachada para "inglês ver" mas na qual, paradoxalmente, são os estrangeiros que menos acreditam, um país onde todos se preocupam com o supérfluo e o essencial fica para segundas núpcias.

Raramente um título terá sido tão ajustado a um filme. E "Fantasia Lusitana" passa a ser ponto de paragem obrigatório para olhar para Portugal.
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Jorge Mourinha, Público



ENTREVISTA AO REALIZADOR
E subitamente, do meio da sua investigação do Portugal contemporâneo - as ficções "Ganhar a Vida" (2001), "Noite Escura" (2004), "Mal Nascida" (2007) e, a próxima, em produção, "Sangue do meu Sangue" -, irrompe um documentário. Sobre o Portugal que a propaganda do Estado Novo ficcionou nos anos 40.
"Foi uma encomenda", diz João Canijo.
Mas quando se vê "Fantasia Lusitana" logo se percebe que Canijo fez sua uma proposta exterior: um olhar sobre uma "noite escura" portuguesa. Imagens de arquivo como um espelho: cai a redoma protectora do passado, as imagens estão próximas, o suficiente para interpelarem o presente. Começa por ser anedótico, mas a meio da viagem somos capazes de nos vergar perante o peso. Canijo, esse, diverte-se. Sem a ficção e sem pacto com personagens, atira-nos: "tomem lá". Podemos falar em cinismo, mas quase sempre o cinismo é cinematograficamente produtivo.


Este documentário é uma encomenda. Como surge?
Foi uma encomenda do produtor João Trabulo. Telefonou-me um dia a dizer que tinha um projecto em andamen¬to e que gostava que fosse eu a realizá-lo. A ideia, romântica, era fazer um documentário, suponho eu que mais convencional, sobre a passagem de refugiados famosos por Lisboa durante a Segunda Guerra. Foi com esse tema, e com os nomes dos refugiados famosos, que aliás se tinham conseguido já apoios apalavrados.

Pensei, e disse que sim, desde que não fosse bem isso. Desde que fosse mais a possível marca, ou ausência de marca, que esses refugiados deixaram em Lisboa. Lembrava-me das histórias que os meus pais e os meus avós me contavam, das mulheres de perna traçada a fumar na [pastelaria] Suíça [Rossio, Lisboa] e coisas assim. Interessava-me relacionar o salazarismo, o Portugal profundo, com os estrangeiros. Evidentemente que não havia material que documentasse essa relação.

De qualquer forma, o filme passou a ser meu, e ninguém me impôs o que quer que fosse. E logo na primeira sinopse já "Fantasia Lusitana" nada tinha a ver com a passagem de refugiados. Já tinha mais a ver com uma ideia minha, algo que eu intuía que era verdade: os dois níveis de realidade em Portugal, o mundo em guerra e a fantasia do país neutral, o mito criado por Salazar.
Descobri há anos uma identificação entre aquilo que penso e as coisas que o [filósofo] José Gil escreve sobre Portugal. Por isso nada melhor do que falar com o senhor. Fizemos um alinhamento de imagens: quase duas horas, daquilo que se conseguiu encontrar [nos arquivos], e fomos mostrar-lhe. Ele ficou entusiasmado e disse algo que resumia tudo o que eu pensava, os dois níveis de realidade. O filme é sobre isso.

Há uma parte desse projecto dos refugiados que ainda passa pelo filme, com os testemunhos de A1fred Döblin, Erika Mann e Saint-Exupéry...
... sim, isso foi resultado de pesquisa de alguém que se formou em História em França e que estava a trabalhar para o João Trabulo, o Hugo dos Santos. Durante meses pesquisou tudo sobre a época e o tema. Fazia a pesquisa, mostrava o que tinha encontrado, em imagens ou textos. Passou semanas, por exemplo, no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), fazia resumos do que lá estava, e a partir daí fazíamos a pre-selecção, que tinha um custo, para encomendar.

Sobre a dupla realidade de "Fantasia Lusitana"... o espectador começa por ser embalado por uma certa ligeireza, o lado anedótico desse Portugal. Depois a coisa torna-se densa...
... era essa a ideia: isto é tudo muito bonito, mas há a realidade. Que não era nada bonita...

Nos testemunhos, os estrangeiros que passaram por cá dizem que lá fora há as bombas, é verdade, mas prefeririam estar lá e não aqui, no Portugal de uma alegria triste e falsa. É nessa altura que começamos a suspeitar, também, que quer dizer-nos algo sobre hoje. É isso que faz a ligação com a sua obra de ficção por exemplo...
Lógico. Tirando a retórica do Salazar, e aquela maneira de falar de propósito para que não se percebesse nada daquilo que dizia, os mitos a que ele se refere continuam a ser os mesmos. O dr. Cavaco di-los...

Por exemplo...
Há aquele discurso sobre o verdadeiro espírito português, a humildade, a disciplina... O dr. Cavaco continua a dizer a mesma coisa. O professor do liceu do meu filho tinha 30 anos mas ainda lhe dizia que Salazar foi muito bom porque impediu que Portugal entrasse na guerra. Isso foi uma das razões determinantes para eu aceitar fazer este filme, aliás. Claro que o meu filho, que tinha 14 anos, já sabia que não tinha sido assim, mas o professor de 30 acreditava que sim. E que havia mais segurança [naquela altura]. O Paulo Portas continua a dizer que há pouca segurança...

Quando estava a escrever a nota de intenções do "Mal Nascida", saiu "Portugal, medo de existir" do José Gil. Q que eu estava a tentar escrever nessa nota era aquilo, dito por alguém que passou mais anos a pensar sobre as coisas e que as sabe exprimir melhor do que eu. E antes de ler o livro já tinha como epígrafe da nota uma frase de um taxista de Lisboa que me levou a um restaurante. Disse-me que o restaurante era muito bom, que, pois claro, não há cozinha como a portuguesa, e depois, claro, que o cozido à portuguesa não há em mais nenhuma parte do mundo. Eu não lhe disse nada, mas podia dizer que o prato nacional madrileno é o cozi¬do, há em todo o mundo, depende é dos enchidos que lá se metem. Mas o mais genial foi quando disse: "Veja lá que eles lá fora nem sequer sabem o que é um caldo Knorr". Como diz o José Gil, pior do que a ausência de forma é a arrogância de se julgar forma.

É isto: uma falta de educação secular. Um problema que não está remediado, antes pelo contrário, está agravado. A massificação do ensino foi mal feita, a falta de educação é maior do que no meu tempo do liceu. Isto não é saudosismo. É que já nem as referências mitificadas os miúdos da idade do meu filho têm. E a ignorância dos professores é muito maior do que a do meu tempo. Tínhamos uma vantagem: havia muitos professores que eram da oposição e que por militância ensinavam o que não vinha nos livros. Isso já não acontece.

Nunca me vou esquecer que quando estava num daqueles bairros sociais na rodagem de "Ganhar a Vida", em França, me apareceu um daqueles meninos que uns anos depois andariam a queimar carros - um daqueles - a quem o [Nicolas] Sarkozy chama "a ralé". Esse miúdo perguntou-me sobre o que é que tratava o filme, eu disse-lhe que era vagamente inspirado na "Antígona". Ele respondeu: "Ah, Racine". Não haveria nenhum puto português do mesmo meio que fosse capaz de dizer isso. Ele era árabe, tinha feito o liceu em França. A ignorância e a iliteracia enraizadas [em Portugal] talvez só tenham equivalente no interior dos Estados Unidos da América.

É esse seu olhar que é traumatizante em "Fantasia Lusitana". Os filmes que utilizam imagens de arquivo colocam o espectador numa posição segura: o passado protege-nos. Nas imagens de "Fantasia Lusitana", pelo contrário, as pessoas parecem estar muito próximas de nós, ou nós muito próximo delas.
Senti isso.

Aqueles "travellings" no Chiado, por exemplo...
Essas imagens não são portuguesas...

Se calhar por isso...
Essas imagens são de um estrangeiro que passou por Lisboa e filmou às escondidas. São "travellings" dele dentro do eléctrico... Senti essa proximidade e senti outra coisa, que José Gil também sentiu; que essas pessoas estavam mais vivas do que as de agora. Provavelmente porque aquela multidão que se vê na Rua da Madalena... aquilo não são bem portugueses. A menina que sai do passeio e que vem até a meio da rua, vê-se que não é portuguesa.

Como é que se sente em Portugal?
Estou a ficar velho, se fosse mais novo continuava a pensar em emigrar. Deixei de ter televisão há dois anos, só vejo filmes à noite e há dez anos que só leio o "El Pais". Não saio, sou eremita. O que se passa connosco? Acho que está a resvalar a falta de capacidade e de classe dos políticos portugueses. Apesar de tudo, há uma grande diferença entre o Sócrates e o Guterres. Acho que isto não tem cura. Mas interessa-me muito pouco...

Deve interessar alguma coisa, de outra forma não teria feito o filme...
Eu tenho a teoria de que o Salazar é um produto da Igreja portuguesa. Há uma história que me contou um padre jesuíta que me ajudou na investigação do "Ganhar a Vida", em França. Quando o indigitaram para trabalhar com os imigrantes portugueses em França, ele veio a Portugal para aprender a falar português - com um sotaque à Porto, porque foi ali que aprendeu. A coisa que mais o chocou foi verificar que em Portugal não havia um curso de Teologia. O clero português não precisava, sabia tudo. Claro que isso continua a interessar-me.

Salazar era muito esperto. Aqueles discursos são extraordinariamente bem escritos - para não se perceber o que ele está a dizer... tem plena consciência de que está a falar para ignorantes que gostam de ouvir o senhor falar bem. No fundo, são lugares comuns que parecem ideias metafísicas.

A propósito... aquele excerto com a voz do locutor Fernando Pessa a dizer que lá fora os ruídos das sirenes e das bombas são como as cerejas, umas coisas puxam pelas outras... Há um mito Pessa, uma figura dos tempos heróicos, a relatar a guerra de Londres...
... o meu pai contava-me que Portugal ligava a BBC para ouvir o Fernando Pessa fazer a crónica diária da guerra.

... mas aquela ligeireza é chocante...
... é uma idiotice total...

Contrasta com a solenidade com que se falava do mundo português: as imagens finais, por exemplo, no Cristo Rei.
Essa coisa do Fernando Pessa é como uma capa do "Século Ilustrado": uma menina agarrada à bóia que parece uma bomba mas é um golfinho, desce-se pelas perninhas da menina abaixo e cá em baixo diz: "Bombardeamento de Londres. Toda a reportagem no interior". Essa imagem é genial. A guerra era outro mundo. Não tinha nada a ver connosco, para quê preocuparmo-nos com a guerra?

Não há imagens em movimento, só fotografias, do final da guerra com Portugal feliz a comemorar. Lembro-me de o meu pai me contar a felicidade que foi. Mas uma semana depois [do fim da guerra], toma lá com a manifestação de apoio ao Salazar. Foram rapidíssimos a fazer...

E a voz "off" dessas imagens: o mundo tem o dia D, Portugal tem o Dia S...
É a voz desse grande talento natural para a comicidade que era António Lopes Ribeiro. Ele era avarento; para não pagar a um locutor, fazia ele as locuções.

O que pensa de António Lopes Ribeiro?
Acho que o filme mostra. As comédias dos chamados anos de ouro do cinema português são contemporâneas dos filmes de Sacha Guitry... a comparação diz tudo.

O mito da "idade de ouro" do cinema português permanece...
Os filmes eram muito maus, muito mal representados, muito mal feitos. Nem eram grandes sucessos de bilheteira, como se diz. Permanece esse mito, tal como permanece o mito de que Salazar nos salvou da guerra. O que não é verdade. O que é verdade é que nem os alemães nem os ingleses estavam interessados que entrássemos na guerra. Dava mais jeito ter esta coisa minúscula no Atlântico como porto franco onde toda a gente podia espiar, essa plataforma giratória para várias coisas...

Que transformou o país numa espécie de bordel...
Exactamente.

Quando se faz uma ficção há um pacto com as personagens: não são boas, mas não são totalmente más. Aqui não há personagens, pode dar livre curso a amores e ódios. Sente-se essa coisa de ir cercando o espectador, de lhe chapar com as coisas à frente. Há aquele momento em que a nau "Portugal" da Exposição do Mundo Português naufraga...
... não percebo como é que isso passou... Mas explico porquê: não podiam esconder que a nau tinha virado, de forma que houve uma reportagem seguinte, maior, sobre a capacidade genial da engenharia portuguesa de pôr de novo a flutuar a nau "Portugal". Não foi possível meter essas imagens no filme. Acredito que ao ver essas imagens do naufrágio, "e deu-se o acidente", fique toda a gente de boca aberta.

Ainda a propósito do cinema português: aparece alguém, um estrangeiro, a dizer que o cinema em Portugal tem todas as condições para ser fantástico, porque aqui há bom tempo...
Por causa do clima, das paisagens virgens, dos monumentos extraordinários, do folclore riquíssimo, e principalmente da paz e da calma. Coisas que ainda há pouco tempo repetiram quando quiseram montar uma cidade do cinema ali no Algarve. Tirando o folclore, as palavras foram as mesmas...

Disse que já não se importava com o país... Vamos acreditar que este filme acontece agora não por acaso.
Se fosse há dez anos, seria mais virulento, e teria menos humor. Agora, apesar de tudo, é mais distanciado.

Mas fala muito nele com o silêncio. Mais até do que nas suas ficções...
Já perdi a raiva contra o país. Agora as coisas são como são.

Em que momento sentiu raiva?
Na altura do "Ganhar a Vida" sentia bastante. Depois lá perdi um bocadinho, quando percebi que os emigrantes não eram aquilo que eu pensava. Eu achava que eles se tinham mantido tipicamente portugueses, essa ignorância arrogante de se acharem melhores do que os outros e ao mesmo tempo inferiores. Percebi que tinham mudado. O que não os impede de, depois de 30 anos em França, onde se transformam em pessoas diferentes, voltarem a Portugal e passados uns anos serem iguais ao que eram antes de irem para França.

Mas deixei de sentir revolta. Deixei de sentir que era injustiçado, que o país era uma treta. O país é o que é. Agora [para o novo filme, "Sangue do meu Sangue"] estou a descobrir uma parte do pais que toda agente sabe que existe mas ninguém conhece: a periferia de Lisboa, uma coisa assustadora. É a miséria humana total. As urbanizações construídas na periferia... ninguém acredita. Quando um amigo meu viu as imagens que fiz, disse que lhe fazia recordar o Cairo no seu pior. Os bairros de lata são melhores do que as urbanizações clandestinas. E as urbanizações clandestinas não são só urbanizações de pequenas vivendas: são ruas de prédios inteiros em escadinhas, onde vivem milhões de pessoas. É mais deprimente do que a cintura de favelas à volta da Cidade do México, porque aí ao menos há um espaço individual para as pessoas. Aqui não. É impressionante, a fealdade. A corrupção autárquica em grande. Co¬mo é que se consegue viver ali?

Como é que, estando mergulhado nessa fealdade, como diz, não se exponencia, ao contrário do que diz, a sua crise em relação ao país?
Porque quanto mais vou vendo, mais vou tratando isso como uma coisa igual às outras. O meu próximo filme é uma história sobre o amor incondicional, como "Mal Nascida" era uma história sobre a falta de amor. E como é que o amor pode sobreviver nas zonas onde vive neste momento 80 por cento da população mundial, este ti¬po de subúrbios.

Este subúrbio português é pior do que o de Paris porque é clandestino e foi feito à custa da corrupção camarária, sem planificação. Não há vida comunitária, ao contrário das Fontainhas dos filmes do Pedro Costa. Não há comparação, em termos de qualidade de vida e construção, entre o bairro social em França e o subúrbio de compra e aluguer em Lisboa. Mas interessa-me, como disse, mais a universalidade do que a idiossincrasia.

Este documentário, então, é a hipótese de dar um pontapé...
Sim, teve essa função: tomem lá, entendam como quiserem. E de propósito não tem explicação. O meu filho tem 16 anos, gostou muito, mas disse que era preciso voz "off". Mas desde o princípio houve essa recusa. O silêncio é mais eloquente.

Há uma coisa que percebi ao fazer o filme: o mito da gloriosa História de Portugal está enraizado na cultura portuguesa. Estamos convencidos de que temos uma História gloriosa. Isso percebe-se ao ver a Exposição do Mundo Português: continuam a ser esses os mitos dos miúdos do liceu. E não foi nada disso, não houve implantação em lado nenhum. Gosto muito da frase do Fernando Pessoa que aprendi quando tinha 15 anos: o mal em Portugal é o excesso de civilização dos incivilizados. No fundo, é igual a frase do José Gil: pior do que a ausência de forma é a arrogância de se tornar forma.
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Vasco Câmara, Público


Título Original: Fantasia Lusitana
Realização: João Canijo
Textos: Alfred Döblin, Erika Mann, Antoine de Saint-Exupéry
Vozes: Hanna Schygulla, Rüdiger Vogler, Christian Patey
Montagem: João Braz
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2010
Duração: 64’


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