o que profetiza Jacques Audiard? O Grande Prémio do Júri em Cannes. 2ªf, dia 7, 21h30. IPJ.

“É assim a prisão em França?” Um Profeta responde. Não responde “objectivamente” porque se rege de acordo com uma história de cinema, não com um documentário.
No imaginário colectivo dos franceses, a ideia das suas prisões é mais do que falsa. Têm desculpas: é quase impossível de “imaginar” a vida atrás das grades sem nunca as ter transposto. Do mesmo modo que os filmes americanos ou as séries de sucesso (Prison Break) veiculam caricaturas exóticas. Depois de ver Um Profeta, não terão a mínima desculpa para justificar a vossa ignorância. O herói Malik El Djebena, módico delinquente falhado e banal, ganha resistência e aprende a sobreviver numa prisão francesa absolutamente contemporânea e realista. Aprende a ler e a escrever, como fazem aos detidos iletrados – mas ainda a adaptar-se, de modo a conseguir salvar-se antes de aceder, por fim, a uma forma de poder. Num primeiro momento é escravo e criado do seu mestre, acabando por ultrapassá-lo.

Os altos estudos prisionais… É a primeira “lição” do filme: a prisão é criminógena. Alguns detidos remetidos à condição de escravos ou de carneiros avassalados. Alguns, por milagre, conseguirão reinserir-se “normalmente”. É uma marca para toda a vida. França tem uma das taxas de reincidência mais altas da Europa. A ficção do filme excede por vezes a realidade: relações humanas distorcidas, violência crónica, sexualidade miserável, tráficos de todo o género. Colegas, forçados, mas nunca amigos. Não é isto que se passa simultaneamente e todos os dias em todas a prisões francesas. Passa-se um pouco de tudo, por todo o lado, e é tragicamente revoltante.
Ainda o filme deixa de lado todos os outros defeitos das nossas prisões: a doença mental que atinge 25% dos reclusos, a toxicodependência, a carência alimentar, os meios ridículos reservados à formação e à reinserção, a insegurança, a lenta decrepitude do homem prisioneiro ou os suicídios em série (mais de 90 mortos desde o início de 2009).

UM PROFETA conduz-nos a uma formidável viagem pela escuridão da realidade prisional graças à autenticidade do cenário e dos sons. Explicou o produtor Pascal Caucheteux que “sobre um budget total de 11 milhões de euros, 2,5 milhões foram utilizados para construir a prisão” em Gennevilliers, um bairro parisiense. Praticamente uma prisão verdadeira, destruída depois das filmagens. Este décor é de tamanho real, o qual deixa pouco espaço para colocar a câmara ou os actores e contribui para o sentimento de opressão. Os actores actuam como verdadeiros reclusos. Lógica: muitos figurantes conheceram a prisão, a verdadeira… O mais ínfimo detalhe contribui para a autenticidade. O plano recorrente sobre a boîte de Ricoré – emblemático em todas as prisões – para tomar dez vezes ao dia “o café”, um ritual mecânico para passar o tempo. É visceral: já não posso ver uma boîte de Ricoré.

O segundo golpe de génio é a banda sonora. Jacques Audiard conseguiu captar os verdadeiros sons dentro das verdadeiras prisões, restituindo o insustentável barulho de fundo que acompanha, noite e dia, o quotidiano dos prisioneiros. Brouhaha contínuo, interpelações em janelas dos tipos que chateiam, vociferações que se tornam latidos humanos. Fechem os olhos de tempos a tempos. Escutem. Estão na prisão com as personagens. Esqueçam-se de que os sobreviventes são aí anormalmente corrompidos. Há, entre eles, na realidade, boas pessoas que fazem um trabalho de cão num sistema em vias de asfixiar. A prisão pode chegar amanhã. Pode chegar-vos, ao vosso pai, aos vossos filhos, aos vossos amigos. No dia em que forem vê-los ao palratório, não poderão dizer: “Não podia imaginar que fosse assim!”
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Le Monde


Filme de prisão, filme de máfia, filme sobre a paisagem social francesa contemporânea, mas antes disto um filme sobre a aprendizagem.

"A ideia é sair daqui um bocado mais esperto", ouve Malik da boca da sua primeira vítima, segundos antes de lhe rasgar o pescoço. Malik, o herói (ou se preferirem, anti-herói) de "Um Profeta", é certamente um "visionário", capaz de projectar o seu futuro a longo prazo, e capaz de antever o perigo imediato, como na cena com um acidente de automóvel em que lhe perguntam "quem és tu, um profeta"?

Mas se calhar quem lhe deu a luz a ver, quem foi "o profeta do profeta", foi o seu primeiro sacrificado, Reyeb, que lhe falou dos livros e de tudo o que podia aprender na prisão para sair dali "um bocado mais esperto". E Reyeb, nas cenas em que Jacques Audiard mais faz vacilar o seu tão elogiado "realismo", torna-se uma "presença" constante junto de Malik, uma parte dele (ou da sua consciência), um "enviado" sabe-se lá de onde (do inferno, provavelmente). Filme de prisão, certo, filme de máfia, certo, filme sobre a paisagem social francesa contemporânea, ainda certíssimo: mas antes disto, ou através disto, "Um Profeta" é um filme sobre a educação e a aprendizagem.

Grande Prémio do Júri no último Festival de Cannes, "Um Profeta" sucede, na filmografia de Audiard, a "De Tanto Bater o Meu Coração Parou" (2005). A tradição realista francesa, que já viu dias melhores e dias piores mas é talvez a mais antiga "persistência" do cinema francês, tem em Audiard, actualmente, um dos mais talentosos cultores. E se o realismo, nestes termos, é muito mais uma questão de intensidade (das acções e das emoções, dos actores e dos lugares) do que de fidelidade sociológica, não impede que uma coisa e outra se encontrem - e talvez por isso este seja o filme de Audiard mais ecos tem provocado internacionalmente. "Um Profeta", com a sua história à volta dum miúdo árabe analfabeto que na prisão é "adoptado" pelo chefe de uma associação mafiosa corsa, num universo (sempre "comunicante" para além da prisão) povoado por magrebinos, bascos, marselheses, grupos e clãs de identidades muito marcadas e - para todos os efeitos, com figura de estilo ou sem ela - "marginais", tem tudo para fazer multiplicar o seu impacto realista. Mesmo se - ainda a "educação" - Malik tem a inteligência (o cinismo) de, justamente, não se deixar aprisionar numa lógica de grupo, sejam a lógica e o grupo os que forem. "Só nos queres usar", dizem-lhe a certa altura parceiros de ocasião; "e então?", responde ele. E então?, se este "uso" (e usufruto) é a alma do negócio.

E também, de certa maneira, a alma do melodrama que corre em fundo, a história da relação paternal entre o velho corso e Malik: acaba mal, porque Malik percebe que o poder "oferecido" não é bem poder, ou não é poder nenhum ao pé do poder "conquistado", porque só este garante alguma forma de independência. Se é um "filme de género", como se tem dito, o "género" de "Um Profeta" é menos o do "filme de prisão" do que o do "filme de máfia" à americana - concretamente o "Padrinho", que também é uma história de educação e, à sua maneira, de predestinação. E já agora, a propósito de predestinações, se Bresson e Audiard, diferentes como a água e o vinho, tiverem algum gene em comum isso seria espantoso, mas Audiard parece lidar aqui com assuntos que também foram de Bresson - "o vento sopra onde quer" - e que ele também tratou em "filmes de prisões" (vários). Será forçar um pouco a nota, mas enfim, as notas existem para serem forçadas. De qualquer modo, acabamos "Um Profeta" remetidos ao "vazio" de Malik, à ilegibilidade do seu rosto, naqueles planos que Audiard faz acompanhar, na banda de som, por uma versão de "Mack the Knife", a canção Brecht/Weill oriunda de uma célebre opereta sobre o submundo e os seus códigos.

Se Audiard quis acabar em ambiguidade, acabou em beleza.
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Luís Miguel Oliveira, Público

Convém não esquecer que, naquela prisão ficcional 'de estúdio e de actores', e apesar do efeito realista do filme, Audiard - conhecido em Portugal por "Nos Meus Lábios" e "De Tanto Bater o Meu Coração Parou" - não quer de todo abrir um paralelo com a realidade, até porque o filme, baseado num argumento de Abdel Raouf Dafri e Nicolas Peufaillit, entra cedo nos terrenos do pesadelo e do hipnotismo. Audiard prefere ser apenas genuíno a mostrar que a sociedade de um calabouço reproduz exactamente as mesmas hierarquias do mundo exterior: também ali temos os tubarões e a raia miúda. O realizador, que falou connosco em Cannes e, seis meses mais tarde, apresentou o filme no Estoril, confessa-nos que a personagem de Malik o toca profundamente "porque ele é analfabeto e incapaz de fazer uma leitura completa dos códigos culturais e sociais. No fundo, não tem uma identidade. Sabe que é árabe mas isso pouco lhe diz. Depois, depara-se, e no local mais insuspeito, com a possibilidade de mudar de vida. E vai em frente, à toute vitesse. 'Um Profeta' é um filme sobre esta pergunta: temos direito a uma só vida ou a várias? E quanto custa passar de uma a outra?"

Mas "Um Profeta" é mais do que isso: é também uma 'história de violência' (título de um filme de Cronenberg que Audiard muito admira), brutal, crua, despojada de emoção e captada de muito perto, em grande plano, câmara de 35mm ao ombro, nas quatro paredes do espaço restrito de uma célula prisional ou nos três metros quadra¬dos de uma cena de fuzilamento filmada dentro de um carro. A découpage acaba por nascer naturalmente pelos movimemtos das personagens. Audiard vai mais longe: "O que se passa é que há uma tentativa de delegar o poder da técnica aos actores. 'Um Profeta' segue este princípio. Creio que, com isso, consegui ultrapassar o que mais me metia medo: como filmar a violência sem esteticizá-la, sem a tomar coreográfica, como em certos filmes de Hollywood ou de Hong Kong? E porquê? Porque a violência, aqui, não é gratuita nem se parece com o que se vê habitualmente no cinema. A violência tem, afinal, uma natureza bem diversa. Imagine que Malik não era interpretado por um actor árabe (Tahar Rahim) mas por Benoit Magimel, por exemplo. Seria o mesmo filme? Julgo que não. Francamente acho que o facto de a personagem ser árabe introduz no filme uma ameaça. Uma subleitura perturbante. E isto interroga não só a imagem que temos do árabe como a possibilidade de um racismo latente que existe em nós, no Ocidente, e que está figurada na personagem do 'padrinho' corso."

Estaremos perante um filme de género? "Não sei. Talvez essa questão só se coloque no fim", diz Audiard. "Malik é uma criação' de dramaturgia, mas essa criação não está exposta, tal como não está exposto um género. Ele escapa-se entre os dedos. Tentei que o espectador de 'Um Profeta' seguisse a história tal como ela é sem jamais se colocar a pergunta: este filme é para ser levado para dentro da história do cinema? Ora, essa história tem um nome: chama-se western. Mas 'Um Profeta' não é um western. Perto do final, há um momento de violência extrema em que Malik sobrevive por um triz. Acho que só ali ele descobre que é afinal omnipotente e invulnerável. Ou seja: uma personagem de ficção. E é por isso que ele sorri”.
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Francisco Ferreira, Expresso


ENTREVISTA A JACQUES AUDIARD

Na conferência de imprensa em Cannes falou um pouco da ironia no título de Um Profeta.

Porque esta dimensão é verdadeira, mas aparentemente não é evidente. O filme poderia chamar-se LITTLE BIG MAN – Pequeno Grande Homem, por exemplo. O título funciona como uma espécie de mandado, coagindo alguém a compreender qualquer coisa que não é necessariamente desenvolvida no filme, ou seja, que estamos a lidar com um pequeno profeta, um novo protótipo de pessoa.
Originalmente quis encontrar um equivalente em francês de You Gotta Serve Somebody, uma música de Bob Dylan que diz estarmos sempre ao serviço de alguém. Gostei do fatalismo e da dimensão moral deste título, mas simplesmente nunca encontrei uma tradução que me satisfizesse. Então ficou A PROPHÈT – Um Profeta.

Como conta a história?

O que nos interessou, a mim e ao meu co-autor Thomas Bidegain, foi questionar como poderíamos conciliar o tema de Abdel Raouf Dafri e Nicolas Peufaillit e criar uma história de cinema aceitável. Tínhamos que encontrar uma forma de contar Um Profeta de um modo contemporâneo. Quisemos criar heróis a partir de pessoas que não conhecíamos, de quem ainda não tivéssemos uma representação icónica no cinema, como os Árabes por exemplo. Em França, a tendência no cinema é colocá-los sob representações naturalistas ou sociológicas. Quisemos então fazer um filme pure genre, um pouco à maneira ocidental evidenciando pessoas que não conhecemos e transformá-las em heróis.

Porque quis ter no elenco Tahar Rahim no papel de Malik El Djebena?

Sempre me atraiu um certo tipo de protótipos masculinos, não necessariamente conhecidos pelos seus níveis de testosterona. Mais do que uma vez, pude estabelecer ligação entre Matthieu Kassovitz, com quem trabalhei diversas vezes, e Tahar Rahim. Não que um tenha que me lembrar o outro, mas são ambos protótipos masculinos aos quais sou mais sensível.

Foi uma forma de permitir ao espectador identificar-se com a personagem?

Tenho problemas em projectar uma identificação para lá de mim mesmo, mas claro que tive esse desejo. Achei isso mais pertinente do que o habitual cliché de ter um lugar cheio de extraordinários homens viris. Os condenados no meu filme não são homens musculados feitos para este ambiente, mas que desenvolvem qualidades que lhes permitem erguer e dominar.

Através do temperamento de Malik, o filme transmite a ideia de que o conhecimento e o saber-fazer dão acesso ao poder.

Sim, e é o que eu penso que seja o mais importante. Este tipo de pessoa quebra os moldes, não é o hooligan habitual. Acompanhando Malik, vemos como este actua no trabalho. Ele possui uma mente que mostra uma incrível capacidade de adaptabilidade e cuja personalidade será usada em possibilidades oportunistas, primeiramente para se salvar, depois para sobreviver e melhorar e finalmente para alcançar outro nível de poder.

Como concretizou a intenção de transformar Malik num herói?

Em parte acompanhando a imagem dos Árabes no cinema, que são ambos ridículos – e vê-los representados como terroristas ou simplesmente naturalistas, num contexto social realista. Foi isso que me trouxe muito rapidamente à questão da escolha dos actores. Para o papel de Malik precisávamos de alguém extremamente polimórfico que corresponderia perfeitamente ao tema da identidade no filme. Um jovem, sem história, acabará por criar uma à frente dos nossos olhos. Desde sempre sabíamos que este papel não poderia ser preenchido por um actor famoso precisamente porque é uma história sobre o alcance de poder, de visibilidade.

Houve também a intenção de compartimentar o cinema francês?

É inerente ao trabalho. Não tenho uma longa filmografia, só realizei cinco filmes. Trabalhei com Matthieu Kassovitz, Vicent Cassel, Romain Duris e outros actores de notável talento, mas depois de De Tanto bater o meu coração parou quis trabalhar com desconhecidos. Esta ideia passou de mão em mão com o sentimento de que o cinema deve ter uma forte dedicatória social e que se não narrarmos o mundo como ele é e como se esgota, então que utilidade tem? Quando digo isto não é uma provocação, é somente o meu modo de mostrar a ficção de uma maneira que pareça real. Acho que hoje em dia, em França, o cinema é incrivelmente redutor neste ponto de vista.
Não sei de que realidade fala o cinema francês. Por esse motivo, a ideia do filme era quebrar esta ideia de casting da mesma maneira que foi tido em conta o facto de que o mundo muda e de que as figuras heróicas devem evoluir. Na minha mente existem novas mitologias para projectar em novos rostos e em novos caminhos a seguir.

Malik parece ter uma relação desapegada e oportunista com a sua identidade.

Os Corsas consideram-no um Árabe e os Árabes um Corsa. Malik encontra-se permanentemente nos dois campos. Contudo, ele irá naturalmente apoiar-se na sua comunidade. É aqui que descobrirá alguma coisa que tem estado a ignorar. Na mesma medida em que ele é um tipo particular de hooligan, ele é também um tipo particular de crente.

Há uma tendência no cinema de hoje para heróis mais obscuros e corroídos. Em UM PROFETA conduz alguém danificado a um certo tipo de redenção.

E mediante ferramentas que não seriam recomendáveis. Há sempre uma lacuna na construção de anti-heróis. O que não me interessa muito. Gosto de que os meus heróis aprendam alguma coisa e que usem essa aprendizagem. Penso que o cinema tem essa função: olhando para a realidade e para a forma com a usamos. Talvez o que sucede a Malik é paradoxal, mas é isso que me interessa.

De qualquer modo diz-se que tem de aprender...

De aprender, de estar atento, de não abrir a boca a toda a hora, de ser reservado e, acima de tudo, de não cometer o mesmo erro duas vezes porque há terceira acaba-se morto.

Para si, UM PROFETA é um filme moralista?

Sim, o que seria imoral seria criar uma personagem sem consciência. Todavia, ele tem consciência do bem e do mal, sobretudo por tudo o que este lhe causou.

A prisão é uma metáfora?

Evidentemente. Os filmes de género apresentam-se sempre como uma metáfora. A personagem foi encarcerada por uma longa sentença. O objectivo era que ele encontrasse dentro de si mesmo que o que usaria mais tarde, chegando a um paralelo entre os dois universos.

Define a personagem de César, interpretada por Niels Arestrup, como um rei sem diversão.

Sim, em referência às personagens de Giono. Um Rei, um ocre no fim do seu percurso que reinará uma tribo de aranhas.

Parece que a personagem de César é baseada num arquétipo mítico.

È verdade, mas não queríamos que fosse tão literal. Niels Arestrup, no papel de um Padrinho Corsa, é razoavelmente improvável e é devido a isto que o filme reflecte um caminho mais interessante.

Como definiria a relação particular com Malik?

Quando estávamos a escrever quisemos realmente engrandecer a ideia de pai/filho para enfatizar a relação de senhor/escravo. Cesar não é o pai de Malik mas protege-o sob o seu poder, é severo com ele e sem qualquer sensibilidade paternal. Não há amizade entre eles. É unicamente uma relação de controlo.





Os seus outros filmes mostram uma tendência para grandes histórias de amor e UM PROFETA parece não seguir os mesmos moldes. Porquê?





Penso que é relacionado com Malik, o que queríamos que ele fizesse. Como Malik é uma pessoa vinda realmente do nada, não era simplesmente o momento para construir uma história de amor. Por esta razão, no fim do filme, sugerimos que podia ter uma história com Djamila. Porque a sua vida lhe foi “amputada” muito cedo pela prisão, ele adquire a vida de outra pessoa que obviamente lhe ajusta muito bem. Sugerimos que juntar-se a Djamila fosse desde o início a sua intenção. Está tranquilo e provavelmente será um pai excepcional.





O fim do filme sugere que poderá haver uma sequência.





Sim. Induz-nos para a questão do destino de Malik com esta mulher, com esta criança e com a sua vida exagerada. Especialmente porque Malik é um hooligan que odeia hooligans, achando-os estúpidos e perigosos. É uma pessoa muito crítica. Não poderia tolerar sinais exteriores de hooliganismo.





Se houvesse uma sequência, do que se trataria?





Gostaria de ver Malik continuar a desenvolver as suas capacidades e aprender. Um pouco como De tanto bater o meu coração parou.





Temos a sensação de que um dos seus talentos como realizador é o de criar as condições ideais para fazer um filme: precisa do seu tempo para escrever, para escolher as personagens e para filmar.





O que diz pressupõe que de alguma forma eu esteja consciente de mim mesmo – e eu não estou. Apenas as companhias de produção como a Why Not consegue conciliar o objecto com a ferramenta. Noutro lado seria complicado para mim. Realizar um filme é algo difícil, muito pesado. Mas de qualquer forma é a única coisa que sou capaz de fazer. Sinto que as pessoas vêem qualidades em mim que eu não sinto que necessariamente tenha.
As pessoas que me circundam têm mais confiança nas minhas capacidades e são elas que me encorajam. O facto de eu demorar muito tempo a escrever, preenchendo as minhas histórias, que questiono incansavelmente o meu tema, que busco e emerjo num projecto real de cinema percorrendo uma longa fase de preparação. Dá-me a sensação de como o filme deveria ser. Depois disto tem que se fazer os outros compreender o contexto onde o filme se insere. É o processo que torna o cinema único, quando colectivamente se produz um projecto criativo.
A única coisa da qual tenho a certeza é relativamente às condições e de como o filme precisa de ser realçar no essencial. Às vezes a consciência crítica não funciona a todos os níveis, o que pode ser acompanhado por momentos de solidão ou dúvida. Há momentos em que já não sei o que faz ou não sentido.





Enquanto fazia UM PROFETA estava consciente de que estava a fazer um filme ancorado na cultura popular?


Era o que queria fazer. Queríamos um anti-SCARFACE. Para mim, neuróticos são cretinos e simplesmente não podem ser objectos para identificação. Interessa-me a emergência do poder através de uma pessoa absolutamente tola. Por outro lado, um filme como LA HAINE de Matthieu Kassovitz toca em algo a que sou sensível. Não é uma coincidência que UM PROFETA resida ocasionalmente no mesmo espaço. Estes dois filmes, um olhar denunciante para a falta de qualquer coisa no cinema.


É conceituado por ser um exímio director de actores. Como concilia esta parte do seu trabalho?


Com os actores, aprofundamo-nos em despir as personagens, mas só é possível ir tão longe se acompanharmos os seus estados. Se permanecer vestido, se exprimir o seu medo, a sua preocupação, não terá o envolvimento dos actores. Estou com eles, atravesso os mesmos sentimentos, as mesmas surpresas, as mesmas dúvidas.


O que espera de um actor?


O que procuro num actor é precisamente o que não estou à espera. Que sejam capazes de produzir algo que não planeei. E penso que seja isso que eles querem, que os conselhos que lhes dou os levem para um novo lugar.


Desde os seus primeiros filmes, o seu cinema aparenta ser lançado a partir dos constrangimentos tradicionais de realização.


Efectivamente, antes a minha maneira de trabalhar era mais geométrica ou mecânica. Pensava no aspecto técnico antes de pensar na representação. Mas desde SUR MES LÈVRES revelou-se o contrário. Ainda que o aspecto técnico fosse importante é, acima de tudo, o actor que conta.


Em todos os seus filmes, há um ponto em que a imagem é totalmente obscura deixando apenas um detalhe.


Sim, é um pequeno efeito que eu chamo “La Mano Negra” e que usei em oito filmes e agora uso em grande escala. Um efeito especial dispendioso. Porque às vezes penso que há demasiada imagem, demasiada luz, demasiado “campo”, que está demasiado aberto e que precisa de ser reduzido. São relações fetichistas que tenho com a imagem. Fascina-me sempre a imagem dos filmes mudos que chega até nós. Parecem sair de um mundo longínquo.



É uma forma de assinatura?
Não, e teria que parar se assim parecesse. Sinto que tenho que parar o filme e as ferramentas técnicas. É uma relação demasiado fetichista, a qual pode ser sufocante. Não sei se é o modo correcto de olha para o mundo.


É apenas o que podemos imaginar em cinemascope.
Tentei materiais diversos para este filme. HD, 16mm, câmaras ultra-light e muitas outras coisas que me decepcionaram. Claro que pensei em scope, mas não segui a ideia porque scope significa sentir-me obrigado a definir demasiado. Achei que seria infeliz ao fim de duas semanas porque o argumento e a cenografia estavam a criar anticorpos reais em mim… Tentei alguns estilismos, mas que nunca teriam funcionado. Por fim, foi o próprio filme que ditou a sua estética.


Gostaria de filmar mais vezes?
Sim. Quando tudo corre bem, faço um filme a cada 3 ou 4 anos. Gostaria de filmar mais vezes pois isso resolve alguns dos meus problemas – concretamente o medo. Acho que sou demasiado apreensivo, que demoro muito tempo a escrever. Demorámos três anos para escrever este guião – é demasiado.



Já não quer escrever?
Não, é óbvio para mim. Não posso fazê-lo mais. Todos estes temas que começam por interessar-me, mas que ficam em espera como um par de calças. Nas gravações o guião acaba por ser entediante. Quero que aconteça de uma maneira diferente. Uma noite, durante as filmagens o assistente veio ter comigo e disse “tens de deixar de duvidar”. Penso que se não estivesse tão envolvido em cada parte do guião e que se filmasse frequentemente, sentir-me-ia muito mais livre.




Título Original: Un Prophète
Realização: Jacques Audiard
Argumento: Jacques Audiard e Thomas Bidegain
Interpretação: Tahar Rahim, Niels Arestrup, Adel Bencherif, Reda Kateb
Hichem Yacoubi, Jean-Philippe Ricci
Direcção de Fotografia: Stéphane fontaine
Música: Alexandre Desplat
Montagem: Juliette Welfling
Origem: França/Itália
Ano de Estreia: 2009
Duração: 154’



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