DIA 4 FEVEREIRO
INTERIOR. LEATHER BAR., James Franco e Travis Mathews, 2013,
60', M/16
FICHA TÉCNICA
Título
Original: Interior. Leather Bar.
Realização: James Franco, Travis Mathews
Argumento: Travis Mathews
Montagem: Travis Mathews
Montagem: Travis Mathews
Interpretação: Val Lauren,
Christian Patrick, James Franco, Brenden Gregory, Brad Roberge, Keith Wilson
Ano: 2013
Origem: EUA
Duração: 60´
Origem: EUA
Duração: 60´
M/16
SINOPSE
"Interior. Leather Bar." é uma
reconstituição dos 40 minutos cortados ao filme "A Caça" para que não
fosse qualificado como pornográfico. Essa longa-metragem, realizada em 1980 por
William Friedkin ("Os Incorruptíveis Contra a Droga", "O
Exorcista") e protagonizada por Al Pacino e Karen Allen, conta a história
de Steve Burns, um detective nova-iorquino que se infiltra na subcultura
homossexual ligada ao sadomasoquismo, de modo a investigar os crimes de um
assassino em série.
Cenas de sexo explícito da noite gay são os ingredientes desta longa-metragem realizada por James Franco e Travis Mathews, protagonizada pelos actores Val Lauren, Christian Patrick e Brenden Gregor, entre outros.
Cenas de sexo explícito da noite gay são os ingredientes desta longa-metragem realizada por James Franco e Travis Mathews, protagonizada pelos actores Val Lauren, Christian Patrick e Brenden Gregor, entre outros.
TRAILER (sem legendas)
CRÍTICA
Interior.
Leather Bar. é um
ensaio lúdico sobre o olhar e a sexualidade aberto a todas as leituras que se
quiserem fazer.
Em 1980, A Caça, de William Friedkin,
com Al Pacino no papel de um detective que procura um criminoso pelo meio da
cena gay hardcore nova-iorquina, criou polémica. Trinta
anos depois, James Franco e Travis Mathews usam essa polémica – e os 40 minutos
de imagens cortadas que nunca foram mostradas – para Interior. Leather Bar., um peculiar
ensaio meta-referencial que manipula aberta e lealmente o espectador. Está
tudo, como se costuma dizer, na cabeça de quem vê. E na cabeça de quem vê estão
muitas coisas diferentes.
O que está nas cenas
cortadas de A Caça não interessa tanto a Franco e Mathews
como aquilo que as pessoas pensam que está. Daí que o seu projecto de
reconstituir essas cenas, num pequeno estúdio de Los Angeles com uma mão-cheia
de actores, jogue inteiramente com ideias feitas, com preconceitos, com camadas
de ficção e realidade.
O nexo de Interior. Leather Bar. reside precisamente no confronto
entre visões do mundo: Val Lauren, o actor que Franco e Mathews contratam para
“fazer” da personagem de Al Pacino, é heterossexual e sente-se profundamente
desconfortável com a possibilidade de assistir a sexo homossexual fetichista. O
seu desconforto – emulando o desconforto da personagem de Pacino em A
Caça –, sobretudo
quando contrastado com o à-vontade daqueles que o rodeiam nesta situação
invulgar, é a chave do filme.
Mas rapidamente
percebemos que as dúvidas de Val, expressas em conversas telefónicas com a
namorada ou com outros actores, podem não ser tão espontâneas como parecem; o
momento de sexo mais “duro” do filme, percebemo-lo mais tarde, é tudo menos
“duro”. O filme instala-se desde logo numa dimensão equívoca: é ou não é um
documentário? Ou está tudo programado ao milímetro para levantar a dúvida? Val
está a ser ele próprio ou apenas a representar uma personagem chamada "Val
Lauren"? E o sexo é apenas mera objectificação ou pode servir para contar
uma história?
A certeza é que Interior. Leather Bar. é
manipulador, assumida e lealmente manipulador. Mathews, o cineasta gay, e Franco, o actor de
Hollywood que adora lançar pauzinhos para as engrenagens e explorar outras
direcções, querem pôr o espectador a questionar porque é que a violência é
aceitável no ecrã mas o sexo não é, porque é que a ideia de sexo explícito em
filme continua a perturbar tanta gente, porque é que olhar de frente para estas
questões nos cria tantas dúvidas. Não dá respostas, nem sequer tenta fazê-lo;
prefere antes levantar as perguntas e deixar o bichinho a roer cá dentro, de
modo lúdico e desempoeirado. São boas perguntas, ainda por cima, e feitas de
modo inteligente.
Há uma diferença entre
falar e fazer. E há uma diferença entre ver e imaginar. Para um rapaz nascido
no interior do estado rural do Ohio, que aprendeu a desejar os corpos das
estrelas de cinema pouco mais velhas do que ele, a sexualidade era quase toda objecto
de culpa e solidão. Travis Mathews,
38 anos, cresceu à
procura da definição de comunidade homossexual e o mais próximo que encontrou
foram os corpos “normais, com uma crueza às vezes divertida, outras vezes
desarmante” que não cabiam em lado nenhum e, por isso, passaram a caber nos
seus filmes.
“É fácil colocar uma câmara em frente de alguém e ver essa pessoa fazer uma versão de si mesma. Mas é mais raro, e ainda mais difícil, atingir um tal nível de intimidade que seja cru, que mostre a vulnerabilidade, algo a que não estamos muito habituados”. Os filmes que passou a fazer eram como cartas para o rapaz de 15 anos que via na televisão as drag queens serem tratadas como freaks e lia nos jornais notícias sobre uma doença que parecia ter escolhido como alvo apenas aqueles que eram como ele. O realizador, que esteve em Lisboa para apresentar dois filmes no 17° QueerLisboa, In Their Room: London e Interior. Leather. Bar, que chegou ontem às salas, faz um cinema que quer ser um retrato do mundo no qual vive, onde o sexo e a sexualidade já não precisam do grande ecrã ou do seu poder para se mostrarem. O cinema que pratica por isso, numa fronteira difícil entre o registo dessa comunidade, seja ela em São Francisco, Berlim ou Londres (locais onde filmou In Their room, na qual homossexuais falam, descarnadamente, sobre as suas vidas) e o desejo de construir um mapa narrativo que ajude a melhor possamos compreender “o confronto entre intimidade e radicalismo”, como Interior.Leather.Bar., que co-assina com o polissémico actor James Franco a partir do mítico Cruising (A Caça), de William Friedkin (1980).
“É fácil colocar uma câmara em frente de alguém e ver essa pessoa fazer uma versão de si mesma. Mas é mais raro, e ainda mais difícil, atingir um tal nível de intimidade que seja cru, que mostre a vulnerabilidade, algo a que não estamos muito habituados”. Os filmes que passou a fazer eram como cartas para o rapaz de 15 anos que via na televisão as drag queens serem tratadas como freaks e lia nos jornais notícias sobre uma doença que parecia ter escolhido como alvo apenas aqueles que eram como ele. O realizador, que esteve em Lisboa para apresentar dois filmes no 17° QueerLisboa, In Their Room: London e Interior. Leather. Bar, que chegou ontem às salas, faz um cinema que quer ser um retrato do mundo no qual vive, onde o sexo e a sexualidade já não precisam do grande ecrã ou do seu poder para se mostrarem. O cinema que pratica por isso, numa fronteira difícil entre o registo dessa comunidade, seja ela em São Francisco, Berlim ou Londres (locais onde filmou In Their room, na qual homossexuais falam, descarnadamente, sobre as suas vidas) e o desejo de construir um mapa narrativo que ajude a melhor possamos compreender “o confronto entre intimidade e radicalismo”, como Interior.Leather.Bar., que co-assina com o polissémico actor James Franco a partir do mítico Cruising (A Caça), de William Friedkin (1980).
Mas nos tempos do porno hipster, que margem tem um cinema com a ambição de retratar aquilo que poderíamos definir como o gay contemporâneo? “Há um novo cinema queer, assinado por realizadores que contam histórias protagonizadas por gays mas onde a sexualidade já não é uma questão”, começa por responder, dando o exemplo de Weekend (Andrew Haigh, 2011), onde dois rapazes que se encontram numa discoteca passam o fim-de- semana juntos até se aperceberem que o encontro fortuito pode signifcar mais do que sexo. “Esse cinema tem a ambição de querer retratar um mundo onde se vive sem que a identidade se defina a partir da sexualidade e onde se consigam mostrar personagens que são como nós, na vida real, sexualmente activas mas vulneráveis. Não estamos habituados. Não podemos negar que somos seres sexuais, mas somos mais complicados do que isso.”
A vulnerabilidade é, por isso, a chave para os filmes de Mathews. Até mesmo Interior. Leather. Bar. que é um filme de enganos, a começar pela ideia de que Mathews e o actor James Franco estariam interessados em recriar os malditos 40 minutos que, para evitar que Cruising tivesse a classificação de pornográfico, Friedkin cortou - esse é o filme onde Al Pacino, vestido de couro, entrava no submundo da cultura fetichista gay para descobrir um assassino entre praticantes de sado-masoquismo com um gosto particular pelo cabedal.
“Mostrar o artificio que habita o interior da arte”, diz Mathews, é permitir que o flme se liberte da expectativa do próprio espectador. Val Lauren é um actor, heterossexual, recém-casado que se expõe a um mundo que não conhece e que tanto o intimida como o fascina a pedido de um amigo, o célebre James Franco. O paralelo com a vida e a personagem que Pacino interpretava - jovem polícia e actor em ascensão - vai ocupando o filme em pormenores que tentam documentar o processo de investigação de Lauren durante a rodagem e as dúvidas que, hoje, terá sobre as intenções, quando não mesmo a necessidade, de explicitação sexual.
As questões que Interior.Leather. Bar Ievanta são, por isso de outra ordem e o discurso que sobre ele se possa produzir ultrapassa a sua relevância cinematográfica. Até porque, diz Mathews, hoje um filme como Cruising encontra dois tipos de público, nenhum deles particularmente interessado em ler, por exemplo, o modo como muito do cinema norte-americano do final da década de 1970 e início de 1980 se sustentava na paranóia, na tensão social e na alienação. Isso é o que verdadeiramente me interessa”, diz o realizador, de certo modo inscrevendo Cruising numa linhagem que inclui Chinatown (Roman Polanski, 1974), The Conversation (Francis Ford Coppola, 1976), Os Homens do Presidente (Alan J. Pakula, 1976), O Caçador (Michael Cimino, 1978) ou Blow Out (Brian de Palma, 1981).
Mas Cruising era diferente. Precisamente porque a paranóia e a violência gráfica a ela associada tinha como matéria de base o sexo e, em particular, o sexo homossexual, houve violentas reacções da parte de uma comunidade que procurava, então, chegar ao grande público através de exemplos positivos. Tantos anos depois, quando a fronteira entre o espaço público e privado é cada vez mais ténue, o cinema de Mathews quer “só” falar de sexo, mesmo quando o mostra como aquilo que pode ser - máquina de submissão, atraente e mortal veneno; mas quer, realmente, falar sobre a dificuldade em se distinguir o que pode ser mostrado. E como.
“A internet ajudou a que a ideia de comunidade se alargasse, ou então a sua pulverização levou a uma rarefacção do activismo”, diz. “Dificilmente um filme como Cruising poderia hoje ser visto como um filme sobre a comunidade homossexual”, admite. Sobretudo quando outros filmes, como “o demasiado heterossexual” Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005) chegou a um público mais alargado. “O meu interesse sobre sexo recai em tudo menos sobre o acto em si”, diz, desarmante, abrindo pistas que ajudam a compreender porque é este é um filme sobre a frágil fronteira entre “o registo e a narrativa”. Ou seja, entre o desejo de ver e a desilusão da acção. Uma espécie de pré e pós-coito onde o cinema é o campo de batalha entre os corpos do realizador e do espectador.
Tiago Bartolomeu Costa, Ípsilon, 4/10/13