ESCOLHA DE PEDRO VIDAL
DIA 22 DE ABRIL
A JANELA (MARYALVA MIX), Edgar Pêra, Portugal,
2001, 104’
FICHA TÉCNICA
Titulo
Original: A Janela (Maryalva Mix)
Realização:
Edgar Pêra
Argumento: Lúcia Sigalho, Manuel João Vieira, Senhor Ego
Dir.
Fotografia: Luís Branquinho
Montagem:
Pedro A. Machado, Inês Henriques
Música:
Artur Cyanetto, Tiago Lopes
Canções:
Pedro Ayres Magalhães, Paulo Pedro Gonçalves
Interpretação:
Nuno de Melo, José Wallenstein, Lúcia Sigalho, Manuel João Vieira, Jacqueline
Ginja, Miguel Borges, João Didelet, Nuno Bizarro
Origem:
Portugal
Duração:
104’
SINOPSE
Largo de Santo Antoninho. Boa noite. Bairro da Bica.
"António!" grita uma sombra feminina. Facadas.
A vítima foge pelos carris do elevador até que chega, ofegante, às Ruínas da sua (?) própria Memória.
Ao longo da primeira parte do filme seis aparições femininas - representadas pela 'mesma' actriz -assomam à sua janela com diferentes versões sobre a vida e as personalidades de um tal António, boémio da Bica, amante, esposo (?), fadista, vendedor de pentes ao vintém e de outros extraordinários artefactos (entre os quais um fabuloso e lendário elixir!).
Confrontado com essas visões e com os contraditórios atributos de António, que não (se) sabe se não se tratará de si (mesmo?), vacila entre a hipóteses: o tal de António são vários ou um único.
A última aparição feminina, Marya de Fátyma, fadista castiça da Bica, mulher mais velha e experiente apresenta-se como íntima-conselheira de António, dizendo de sua justiça. Comentando os boatos acerca de uma suposta intenção de casamento de António com as supostas seis amantes, Marya de Fátyma introduz a suspeita de que António foi alvo de uma tramóia congeminada para o matar traiçoeiramente à facada.
Sem conseguir decidir através destes testemunhos qual a hipótese mais verdadeira/plausível, Ego vê-se confrontado então com uma última aparição - a do António descrito por Marya de Fátyma. Este lança uma nova luz sobre as suas amantes, o suposto e badalado (ou baldado?) casamento e as facadas de que teria sido vítima.
Ego-António (António ou Ego?) descobre-se cada vez mais confundido pelo destino/fado: Quem é o verdadeiro António? Quantos Antónios existem afinal? E quantas amantes? Casaram-se? Mataram-no? Estará ele já no Purgatório? Quem é o olho misterioso que protagoniza o filme? António? Qual Antónyo? Eu?? Kum Kacêt!
TRAILER
NOTA DE INTENÇÕES
(O phylm ele mesmo,
própiamente dito)
Primeira obra do
Senhor Ego em dimensão standard «A Janela (Maryalva Mix)» é uma pelycula de
longa metragem de 104 minutos sonora e muda, colorida e a preto e branco,
rodada em filme super-8, 16mm, 35mm (sobretudo) e em vídeo mini-dv, com cópia
final em 35mm Dolby® estéreo
Trata-se também de um
jogo, o jogo do Kem é o antónyo?™, um drama montado sobre uma narrativa
não-linear e não-elementar - montagem arbitrária mas não-aleatória - desenhado
na forma de um eskyzo-fado que aborda o destino de um arcaico
pseudo-eskyzo-fadista da Bica.
Trata-se de uma obra
que pretende 'recuperar' uma tradição burlesca e excentricionista(!): os
actores falantes improvisaram monólogos, os actores mudos desenvolveram
arquétipos de personagens antoninos - incluindo algumas tiradas sobre peixes.
A dimensão referencial,
multi-cultural e 'kosmopolítico', pretende sublinhar o carácter popular de um
certo lisboeta português de uma época para quem, apesar de tudo isso, "a
Bica é um mundo!" e o Tejo a sua fronteira (ou vice versa).
O tipo de uso e a
distorção da iconografia, gráfica, visual e sonora, é usada como 'imagens do
pensamento/realidade', sendo a ideia de frequência/interferência rádio (e
neuro-bioquímica) - a sua sintonização e dessintonização - uma cine-gramática
toska e romba usada como orientação karytativa.
Trata-se de um
filme-artefakto que resulta de uma intervenção plástica "ao vivo",
isto é: é um filme sem "pós-produção" - todos os "efeitos"
do filme (a divisão do écran em quadros-bd) foram realizados durante a rodagem
(filmando e refilmando por diferentes vezes o mesmo pedaço de película) ou
então executados sobre a própria película ( no caso dos riscos e côres).
O rekurso a
yntertítulos eskritos em português sohniko, uma synteze proto-kryoula &
retroh-futurista da lyngua portugueza, dezenvolvida e reafinada ao retardador
ao longo da últyma dékada do sékulo.
Edgar Pêra
O Homem da Máquina de
Filmar
Dá pelo título de
"A Janela (Marialva Myx)" e é assim a modos de um "ovni" de
cinema português que esta semana aterrou. O seu "autor" é Edgar Pêra
que, apesar de um outro filme anteriormente estreado, "Manual de Evasão
Lx94" , tem sido há mais de 10 anos uma espécie de presença fantasma no
cinema português: de quando em quando, lá aparecia, em manifestações mais ou
menos paralelas, um daqueles inclassificáveis produtos audiovisuais com as
marcas distintivas da sua linha de montagem.
"Presença
fantasma" como? A resposta está subentendida num pequeno deslize no
enunciado acima, entre um artigo indefinido e um outro definido: "de
cinema português" e "no cinema português". Diferentemente de um
modo de produção dominante, cuja referência tem sido o apoio financeiro do
Estado via Instituto Português de Cinema, Pêra foi mais ou menos
continuadamente filmando, com a mobilidade permitida pelos novos meios técnicos.
O seu cinema estava algures, certamente "português" nas suas
inscrições sociais e culturais, mas reivindicando uma exterioridade, e mesmo
emancipação.
Em parte por isso, ou
melhor, talvez com isso, Pêra foi construindo uma "persona", com as
marcas de assinatura dos "k", em vez dos "c", e dos
"y", em vez do "i" escarrapachados nos genéricos, e dando
por nomes como "homem-kâmara" ou "senhor ego". É assim a
modos que o seu "folklore", mais ou menos confundindo-se com uma
mitologia de marginalidade. A presente estreia de "A Janela", numa
"operação Edgar Pêra" que também inclui dois programas com outros
filmes seus, permite esclarecer várias coisas.
Dificilmente a aura de
"marginalidade" se pode aplicar a um cineasta que foi nomeadamente
continuando a sua actividade com sucessivos trabalhos de encomenda:
"Manual de Evasão" (para Lisboa-94),"A Cidade de Cassiano"
(em torno do arquitecto Cassiano Branco), "SWK4" (Almada Negreiros),
"O Trabalho Liberta?" (para a cadeia de televisão
Arte),"Lisboa-boa 345 dt" (Festival dos Oceanos), "25 de Abril
Aventura Demokrátika" (Centro de Documentação 25 de Abril) - e Pêra ultima
duas outras, um telefilme para a SIC e "O Homem-Teatro" (sobre
António Pedro).
Esta sucessão, que no
crivo da tal "marginalidade" o pode desqualificar, é no entanto
indício do que é efectivamente importante: a reiterada disponibilidade para
filmar e a construção de um modo de produção própria, numa atitude inédita no
cinema português.
Se por acaso numa rua
de Lisboa o leitor se cruzar com um transeunte com uma máquina de filmar,
atenção que pode não ser um turista mas sim Edgar Pêra. É um tipo de labor
representativo de um dos fenómenos mais importantes do cinema contemporâneo.
Sobretudo com as câmaras de vídeo, há verdadeiros novos centauros, observadores
e intervenientes numa realidade imediata, o corpo confundindo-se com uma
câmara, radicalmente inscrevendo de modo novo o sujeito no próprio processo
filmico .
O que no caso de Pêra
se torna particularmente interessante é que esta postura não se compraz numa
imanência do real. Pelo contrário, o seu modo distintivo é a sucessão de
manipulações que opera num manancial de materiais heteróclitos ("A
Janela", por exemplo, foi filmado em 35mm, super 8mm, video),
designadamente por operações de montagem e de incrustação de
"parasitas" na imagem.
A janela , sabe-se, é
uma clássica metáfora do cinema, "janela aberta para o mundo". No
caso, em "A Janela", Pêra filma efectivamente uma, aberta para o
mundo que tem como microcosmos o lisboeta bairro da Bica - mundo portanto numa
escala reduzida, tal como o modo de produção. Mas o olhar cinematográfico que
rege este peculiar "mundo" é altamente formalista.
Pêra pode reivindicar
para si o título do famoso filme de Dziga Vertov, e um dos grandes exemplos do
formalismo russo-soviético, "O Homem da Câmara de Filmar" - ou
"máquina de filmar", a noção da prótese maquinista do corpo humano
sendo de rara pertinência. De resto, os modos como vai assinando os seus
filmes, por exemplo como "filmado, dirigido e montado", Pêra assinala
como o trabalho de "direcção" (de realização, de autoria), se baliza
entre os actos de "filmar" (é ele próprio o seu
"cameraman") e "montar" (idem).
É então interessante
notar que estas dicotomias filmar/montar ou real/manipulado, se sucedem ao
longo da obra noutras, como documentário/ficção ou local/global, como se pode
constatar nesta "operação": note-se, por exemplo, a perseguição no
topo do cinema Éden, o desejo de ficção que emerge no documentário sobre
Cassiano, ou um persistente "topos" lisboeta em que irrompe um outro
desejo, utópico, como em "Lisboa boa-boa 345dt".
"A Janela"
atesta os limites do modo de produção que Pêra foi forjando - longa-metragem de
ficção passando pelo subsídio público, só foi acabada com a intervenção de um
produtor institucional (Paulo Branco). Também não deixa de patentear uma
difícil gestão do tempo (embora felizmente não comparável ao exasperante
"Manual de Evasão"). Mas sobre o desopilante folclore
"kitsch" de António, marialva da Bica, e das suas muitas amantes, há
um singular olhar de cineasta - ou será mais correcto dizer
"homem-câmara"?»
Augusto
M. Seabra,
Público
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