MÃE E FILHO
Calin Peter Netzer
Roménia, 2013, 112’, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização | Calin Peter Netzer
Argumento | Calin Peter Netzer e Razvan Radulescu
Fotografia | Andrei Butica
Montagem | Dana Bunescu
Interpretação | Lumita Gheorghiu, Bogdan Dumitrache, Natasa Raab, Illinca Goia, Florin Zamfirescu
Origem | Roménia
Ano | 2013
Duração | 112’
SINOPSE
Cornelia tem 60 anos e, essencialmente, é infeliz: o filho, Barbu, de 34 anos, luta com todas as suas forças para se tornar independente e evita a mãe tanto quanto possível. Quando Cornelia descobre que Barbu esteve envolvido num acidente trágico, o seu instinto maternal entra em acção.
A relação entre Cornelia e Barbu, mãe e filho, é conflituosa e disfuncional. Barbu, já com 34 anos, odeia o círculo social dos pais, cujos amigos vivem da política ou de negócios pouco claros. Cornelia, que sempre investiu todo o amor e atenção no seu único filho, não se conforma com a sua constante rejeição. Quando Barbu atropela e mata um rapaz de 13 anos e corre o risco de ser preso por homicídio, a mãe usa todos os estratagemas para o ajudar. Mas, surpreendentemente, e apesar de todo o dinheiro e influência de que dispõe, Cornelia não consegue persuadir a única testemunha do acidente a mudar o seu depoimento. Assim, ela apenas pode tentar convencer toda a gente de que o seu filho é um homem de bem e que tudo não passou de um terrível infortúnio do destino…
Vencedor do Urso de Ouro na edição de 2013 do Festival de Berlim, um filme escrito e realizado por Calin Peter Netzer ("Maria", "Medalia de Onoare") que, ao mesmo tempo que retrata a corrupção e o tráfico de influências da classe alta da Roménia dos dias de hoje, reflecte também sobre a fronteira entre o amor e a manipulação nas relações humanas.
CRÍTICA
No princípio é um drama de família, uma mulher (Cornelia) que já ultrapassou a meia-idade e que está a comemorar o 60º aniversário e se queixa que o filho não vem, que o filho a odeia, que o filho a insulta, que o filho é manipulado pela mulher e nem um neto lhe dá. Mas logo nesse espaço inicial, no círculo de amigos que rodeia Cornelia na festa, no território de uma média/alta burguesia romena de Bucareste, se sentem os miasmas de qualquer coisa que ultrapassa aquela família. Depois, a meio de um ensaio de ópera a que Cornelia assiste, vêm chamá-la. O filho, Barbu, matou uma criança num acidente rodoviário e está detido numa pequena terra de província para averiguações. A mãe precipita-se para o ajudar. Mas Barbu não quer ajuda, só quer que a mãe o deixe ser adulto e assumir as próprias responsabilidades — apesar de ao espectador lhe parecer que ele está entregue a uma depressão autopunitiva de onde não se pode esperar nada de bom. Sem sucesso, Cornelia não é das que deixe que a realidade se imponha à sua vontade.
Não, não é apenas a história de uma mãe possessiva, de uma mãe que quer controlar a vida do filho e, em consequência, desresponsabilizá-lo dos males que a conduta desse filho possa produzir. A proteção clânica está presente em “Mãe e Filho”, mas é simplesmente um dos fios com que se tece a complexa trama do filme. Pouco a pouco, conforme Cornelia vai fazendo o que é preciso para livrar o filho de uma pena de prisão, o quadro que se desenha deixa de estar limitado a uma família ou sequer a um evento - uma criança que morreu atropelada — para crescer até à dimensão de uma sociedade inteira. Hábil é a construção do argumento, que vai semeando, primeiro alusões, depois indícios, finalmente a brutal realidade, às escâncaras, de uma nação onde os poderes de classe e a corrupção aparecem metastizados por todo o corpo social. Particularmente crua é a cena em que Cornelia se encontra com um homem que é a testemunha chave para asseverar a culpabilidade de Barbu; ele começa por lhe fazer um esquema onde torna evidente o que aconteceu, para depois lhe fazer uma operação aritmética para traduzir em dinheiro quanto é que as consequências legais daquela culpa valem. Tudo isto filmado por uma sempre movente câmara à mão conduzida por Andrei Butica (nenhuma composição de planos parece interessar ao realizador Calin Peter Netzer, que, ao invés, aposta em nos avassalar o olhar). Este filme não é imageticamente controlado e não tenho a certeza de que essa opção seja a mais adequada para nos fazer partilhar a incomensurável amargura que ele destila.
Até porque, em todos os outros domínios, Netzer parece apostado numa precisão de relojoeiro. Veja-se o sopesado argumento, a significantíssima cenografia (os interiores das casas, exemplares) ou o trabalho dos atores, a começar pela ‘monstruosa’ Luminita Gheorghiu, com uma interpretação tão centrípeta que quase faz esquecer que não há intérpretes em estado de desadequação.
“Mãe e Filho” é mais um filme romeno a erguer-se de uma cinematografia que, na era pós Ceausescu, não tem cessado de nos surpreender. Como uma nova vaga realista, de olhos bem abertos, vem-nos dando paisagens escalpelizantes da realidade do seu país (lembre-mos “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” ou “Para Lá das Colinas”) —, praticando um cinema social e humanamente adulto, que tem conquistado festivais e estreado internacionalmente em muitos países, sem ter cuidado de saber quais as audiências-alvo que visa.
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 29/3/14
ENTREVISTA AO DIRECTOR
Cornelia move-se na classe média-alta de Bucareste e fica gelada quando recebe a notícia: Barbu, o seu filho único, atropelou um miúdo de 14 anos e matou-o. Ia em excesso de velocidade. A condenação dele é quase certa. Mas Cornelia não se resigna. Decidida a contornar os burocráticos organismos da sociedade romena, cujos bastidores ela conhece, convencida de que tudo na vida tem um preço, até a lei, começa a erguer, perversa e metodicamente, o edifício de defesa do seu filho sem recear pactuar com o cinismo e o suborno. À sua medida, é uma mãe-coragem — num sórdido palco de representação.
Tive conhecimento de que o caso que “Mãe e Filho” apresenta é muito mais frequente no seu país do que poderíamos imaginar. Há uma história verídica por trás deste filme? E, se slm, como desenvolveu o argumento a partir dela?
Não nos influenciámos em nenhuma história verídica, mas o que diz é verdade: estes casos de corrupção são comuns. No início, tínhamos outro projeto em mente. Queríamos construir o retrato de uma família disfuncional. Discuti este assunto detalhadamente com Razvan Radulescu, com quem coassinei o argumento. Decidimos que nos íamos influenciar nas nossas próprias famílias. O que é curioso é que, à medida que o trabalho avançava, demo-nos conta de que ambos tivemos mães dominadoras. Ficou então assente que a personagem de Cornelia, a mãe de Barbu, seria a figura central. Na verdade, Cornelia é uma mistura da minha mãe com a mãe de Razvan. Ou seja, “Mãe e Filho” não vem de um fait-divers, mas de um cruzamento de experiências autobiográficas.
De qualquer forma, de onde velo a ideia do acidente de Barbu?
Tal como referiu, há muitos casos de histórias semelhantes na sociedade romena e que continuam a alimentar a imprensa. O acidente é apenas um alicerce da estrutura dramática do filme. Um ponto de partida forte de uma narrativa que é suposto durar cinco ou seis dias.
Luminita Gheorghiu não é apenas uma notável atriz; está diretamente ligada a esta nova vaga de cinema romeno que arranca no seu país no fim dos anos 90 e da qual você faz parte. Dirigiu-a em 2003, em “Maria”. Ela já filmou com Corneliu Porumboiu, com Cristi Puiu, também com Cristian Mungiu no filme vencedor da Palma de Ouro de Cannes, “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”. Foi a sua primeira escolha para o papel?
Absolutamente. Aliás, escrevemos o argumento já a pensar em Luminita. Apesar disso, confesso que me senti obrigado a fazer um casting para o papel quando a produção começou. Luminita é uma atriz muito famosa na Roménia — e muito ocupada. Pensei que talvez pudesse descobrir uma cara nova.
Acho que fizemos audições com quase todas as atrizes com idade para o papel. Acontece que Luminita era a melhor de todas. Ela ficou muito feliz com a escolha e ao mesmo tempo muito assustada. Esta foi a primeira vez em que interpretou uma senhora de uma classe social abastada.
Os ensaios foram longos?
Muito longos. Começámos a trabalhar sete meses antes do início da rodagem. Nós só tínhamos orçamento para filmar 30 dias. A rodagem foi uma luta contra o tempo.
Como é que descreveria Cornelia?
É uma mulher muito dominadora, uma chefe de família, uma loba. Creio que o seu carácter depende também da má relação que tem com marido e que transferiu para o filho. Barbu tem
comportamentos bizarros e não sabe bem o que fazer da vida. E não compreende porque
é que, lá está, se sente dependente da mãe e dominado por ela. É filho único. Um tipo neurótico. Quer crescer, fazer-se um homem, mas não consegue, está preso a uma dependência doente pela mãe. O que se passa entre eles é muito violento.
Acha que é abusivo estabelecermos uma relação entre Cornelia e o passado político recente da Roménia?
Pelo contrário, é óbvio que essa relação existe. Reparou na profissão de Cornelia? É arquiteta. Não é por acaso. Ela construiu ‘as paredes’ da sociedade. Cresceu no regime comunista e adaptou-se a uma nova vida quando o comunismo caiu. Há um antes e um depois na sua existência. Mas eu não quero insistir muito neste tipo de associações. Acho que o filme não julga Cornelia. Teoricamente, é uma personagem de que não gostamos, mas eu acho que no fim, até simpatizamos com ela. Quer dizer, não é bem simpatia...também não é compaixão... é compreensão. O passado e o presente da Roménia estão naquela mulher, mas esta questão é muito complexa.
Talvez possamos abordar o assunto deslocando o ponto de vista: considera que “Mãe e Fllho” é também um filme sobre a luta de classes?
Também é, mas creio que essa análise vem em segundo plano. É claro que Cornelia tem mais dinheiro do que a família da criança que morre e que esse poder de compra permite-lhe corromper as regras. Mas o que me interessa é a relação patológica que se estabelece entre mãe e filho. Relação essa que considero universal e que poderia acontecer em qualquer parte do mundo.
O seu filme foi rodado exclusivamente com câmara à mão. Filma muito próximo dos atores. O que o levou a optar por este estilo?
Sim. Como lhe disse, só tivemos um mês de rodagem, e a única regra de mise en scène que seguimos foi deixar os atores com o maior espaço de manobra possível. O som é direto. Usámos duas câmaras. Esperávamos que pelo menos uma delas conseguisse captar a energia das interpretações. Por outro lado, eu queria que a força do realismo passasse. Procurei um efeito de cinema documental. Um efeito em que o realizador, sem ter necessariamente de controlar tudo, também admite surpreender-se com acontecimentos inesperados.
Todos os atores são profissionais?
Praticamente todos, sim.
Qual foi a parte mais difícil de rodar?
As últimas sequências, no momento do funeral da criança. Aí, a tensão sobe bastante. Os atores envolveram-se de tal forma que as coisas começaram a resvalar. Gastámos bastante tempo, tivemos de repetir muito as cenas até estarmos convencidos de que estavam bem. Isto também vem do facto de termos filmado em ordem cronológica, situação que considero sempre produtiva para os atores. É que o cansaço acumula-se. E o cansaço, sob esta perspetiva, é bom para o filme.
Pertence a uma geração que lançou um novo cinema romeno, mas noto que há muitas diferenças entre você, Porumboiu, Puiu ou Mungiu, por exemplo...
A nova vaga romena não é nenhum movimento organizado. Mas há talvez um ponto em comum: aquilo que nos interessa é a realidade, e os filmes que fazemos falam de coisas que conhecemos, de confrontos que sentirmos e que estão a acontecer agora, no dia-a-dia de cada um de nós.
Como é que correu ‘Mãe e Filho” na Roménia depois de ter ganho o Urso de Ouro em Berlim?
Extraordinariamente bem. Foi o filme romeno mais visto no país nos últimos 10 ou 15 anos. É algo que nos beneficia. Na Roménia, lutamos contra este estigma: as pessoas não vão ver os nossos filmes. Mas foram ver o meu, que bom.
Algum dia veremos, neste novo cinema romeno, um filme de ficção científica ou um musical?
Duvido. Não temos dinheiro. Não temos box office. E o pouco que arranjamos investimo-Io em dramas. Também temos algumas comédias, mas você não as conhece. Elas não passam a fronteira. Nem nunca chegam aos festivais.
Francisco Ferreira, Expresso, 29/3/14
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