Os Maias - Cenas da Vida Romântica || Teatro Municipal de Faro || 24 de Fevereiro

DIA 24 – Teatro Municipal - 15h e 21h30
PRESENÇA DO ACTOR PEDRO LACERDA (POETA ALENCAR)

OS MAIAS
João Botelho, Portugal, 2014, 139’, M/12

FICHA TÉCNICA
Realização: João Botelho
Argumento: João Botelho, a partir da Obra de Eça de Queiroz
Montagem: João Braz
Imagem: João Ribeiro
Som: Jorge Saldanha
Direção de arte: Sílvia Grabowski
Quadros a óleo: João Queiroz
Interpretação: Graciano Dias, Maria Flor, Pedro Inês, João Perry, Hugo Mestre Amaro Adriano Luz, Filipe Vargas, Marcello Urgeghe, Pedro Lacerda
Origem: Portugal
Ano: 2014
Duração: 139’




CRÍTICA
Comecemos pelo bom, pela grande vitória de João Botelho ao atirar-se aos imortais Maias de Eça de Queiroz: a de olhar para o livro não como um manual de instruções a cumprir à risca, mas como um guia de leitura.
Não é a adaptação convencional que muitos esperam ou desejariam – e ainda bem; de leituras reverentes de clássicos estamos nós fartos, e como não temos a tarimba 
dos ingleses também não vale a pena andarmos a armar ao pingarelho. Este é um filme fiel ao espírito do livro, mesmo que não à sua forma; o artificialismo distanciado e assumido, a construção da história de Carlos da Maia em “quadros” ou “cenas” que parecem saídos de uma ópera escarninha, são perfeitos para dar a dimensão de “fogueira das vaidades” da Lisboa de 1875 vista por Eça. Os Maias segundo João Botelho são uma parada de costumes de uma capital prisioneira das aparências, onde todos estão constantemente em cena como num palco permanente onde importa mais parecer do que ser. É aí que o filme se eleva muito alto, logo a partir do genérico que cria um imediato efeito de distanciamento; é uma espécie de filme-pantomima, de ópera (bufa) de bolso de um Portugal dos pequeninos, sublinhada pelo romantismo exacerbado das escolhas musicais, pela opulência da fotografia de João Ribeiro, pelo artificialismo aguarelado dos telões de João Queiroz que fazem a vez de exteriores.
[...] Mérito do romance, sem dúvida, mas também de um realizador que não se deixou assustar por ele. Ainda assim, fica a sensação que a “compactação” do romance para uma duração “viável” em sala, somada à construção do filme por quadros, acaba por tornar Os Maias mais numa sequência de episódios do que numa narrativa coesa e contínua, e que a própria aposta de Botelho na dimensão de comédia de costumes sobre o “Portugal dos pequeninos” pode ter contribuído para a menorização da história de amor. O que, na verdade, não é um problema perante um filme que ganha em ser visto mais do que uma vez - e, preferencialmente, na versão longa – e que faz ao livro de Eça a justiça devida.
Jorge Mourinha, Público




Entrevista ao Realizador
Há quantos anos se pensava em levar ao cinema o célebre romance de Eça de Queirós sem que ninguém tenha arriscado dar esse passo? Ao imortal “Os Maias”, acrescenta agora João Botelho um novo comentário e também um apêndice ao título, “Cenas da Vida Romântica”, que o cineasta explica em entrevista. “Os Maias” é o seu filme mais forte deste milénio. Um grande Botelho. Valeu a pena esperar pela ousadia. E pelo atrevimento.
Há no filme algo que vem obviamente do Eça mas que eu creio que você sublinhou na adaptação: uma noção de presente. Um presente com um abismo à espreita. O livro acaba quando Portugal está à beira de uma bancarrota e os tempos de ontem, tão diferentes, não deixaram de ser os tempos de hoje. Decidiu pegar neste livro agora também por isso?
É uma pergunta justa. O Eça tem outros romances prodigiosos mas eu estou convencido de que o único que se pode transportar para os dias de hoje é “Os Maias”. O Eça demorou sete anos a escrevê-lo. E agarrou Portugal. Os comportamentos são iguais. Os Afonsos da Maia, os Dâmasos, os Gouvarinhos, os banqueiros Cohen andam aí à solta... Sim, é a história do fim de uma época: uns tempos depois da publicação do livro, em 1888, Portugal entrou em bancarrota. A monarquia pediu a um banco inglês um empréstimo amortizável a 99 anos e a dívida só foi liquidada em 2001. Agora a sra. Merkel quer que nós paguemos ‘isto’ em quatro anos... é estranho. O Eça agarrou uma era neste livro. E até o seu assunto central, que é um tabu para onde tudo converge, o incesto, é um incesto político com um destino funesto: já não há ninguém com quem dormir e para que esta nossa ‘raça’ se mantenha o irmão tem que dormir com a irmã.
Disse várias vezes que nunca fez um filme de época.
Nunca. Fiz sempre filmes sobre os dias em que filmei, sobre o presente. Resisto ao filme de época, não sei o que é. Conheço os tempos de hoje, mais nada. E gosto de anacronismos.
O genérico de “Os Maias — Cenas da Vida Romântica” recorda essa ideia quando expõe a matéria do filme em estúdio: o livro, o décor, os figurinos, as anotações ao texto, etc. Mostram-se os ingredientes antes de começar o cozinhado?
O genérico é a chave para abrir a porta. É a exposição dos artifícios do filme que se vai seguir, uma falsidade que nos é dada à partida, um pouco como no ‘espetáculo dos espetáculos, que é a ópera: se a senhora de 50 anos que sobe ao palco para fazer de adolescente cantar maravilhosamente. se a sua interpretação for justa, acreditamos nela.
E choramos. O genérico expõe ainda outra coisa: não foi por acaso que eu escolhi um barítono, Jorge Vaz de Carvalho, para a voz do Eça. Ou seja, a voz do narrador é a voz de um cantor de ópera. Foi uma escolha deliberada para instaurar à partida uma ideia de libretto ou de filme cantado. Uma vez instalada a falsidade, tudo a partir daí passa a ser verdade. E com isso, é o texto que ganha. Quando adaptei Pessoa em “Filme do Desassossego” a luta com o texto foi muito diferente. O trabalho levou-me a tender para um gesto de abstração. No caso de “Os Maias”, pelo contrário, mantive as narrativas e as suas várias camadas: um discurso político, outro social, outro ainda psicológico. Comportamentos humanos.
Qual foi a maior dificuldade da adaptação?
Decidir o que cortar. Eu não escrevi nada neste filme. Não há uma frase minha, vem tudo do livro. Fiz apenas uma alteração mais radical: não dou o flashback da família de Carlos Eduardo tal como está no livro. Coloco-o por ordem cronológica, num passado que abre a história.
Esse passado é a preto e branco. Porquê?
Não foi por uma questão de atitude estética mas sim narrativa. É um resumo do passado antes de se passar à cor e ao bloco central do livro sobre a paixão impossível de Carlos por Maria Eduarda. No final, que corresponde às últimas páginas do romance dez anos após a ação central, a cor, não sei se se deu conta, também quase desaparece, está deslavada. O Eça diz que Lisboa está igual dez anos depois, “mas um bocado mais porca.” Apesar de ter surgido a Praça dos Restauradores entretanto, e a modernização do Passeio Público, aquela já não é a Lisboa traçada pelo marquês de Pombal, é a Lisboa do carvão, do gás, das ruas cheias de pedintes. Já os políticos... Estão iguais.

O filme passa do preto e branco à cor no exato momento em que o narrador fala da transladação do corpo do pai de Carlos, Pedro da Maia, que se suicidara por amor...
Segui esta ideia simples: agora vamos romper com o passado e contar uma história. Uma história já de si fragmentada, que pode ser contada de mil maneiras diferentes. É possível fazer um filme inteiro só sobre a descrição da Casa do Ramalhete. Ou uma curta apenas sobre os reflexos da luz no cabelo de Maria Eduarda. No entanto, eu sei que este romance é absolutamente central na história da literatura portuguesa e que as pessoas têm a expectativa de sentirem a sua narrativa no filme. Não o esqueci.
Há um acrescento aos ‘seus’ Maias no título: “Cenas da Vida Romântica”. Porquê?
Havia um grande problema que se deparava à adaptação: o livro é já de si fragmentado, sincopado, e é difícil escolher um só ponto de vista. Ora, eu tinha que ter um ponto de vista no filme. Que acaba por incidir muito na metade do alter-ego do Eça na história: o João da Ega. Volto à questão anterior: este filme chama- se “Cenas da Vida Romântica” mas podia ter dado origem a outro chamado “Episódios da Comédia Portuguesa”. Há sempre uma distância reflexiva no livro, há a tensão dramática do tédio aristocrático, mas também o seu comentário impiedoso, que vem do João da Ega.
Como ele diz, “o desacato é...
“a condição do progresso”. Mais uma das frases lapidares do Eça, como esta: “para que é que serve o Governo? Para contrair empréstimos e cobrar impostos. . .“ Há de ser sempre assim neste modo de vida à portuguesa. Os personagens do Eça são arquétipos, isto é, são personagens coletivas.
Já adaptou Pessoa, Agustina, Diderot, Garrett. E também Dickens, há mais de vinte anos, em  “Tempos Difíceis”. Ao adaptar agora Eça, ficou surpreendido pelo tom e pelo ritmo que o filme ganhou? Tive a sensação no visionamento que, ora é o texto que convida a imagem, ora é a imagem que atraí o texto e o filme vive muito desta atração mútua.
Houve adaptações mais evidentes que outras. Por exemplo, em “Tempos Difíceis” tinha indicações de cinema que nunca mais acabavam. Estão no livro. Isto é obviamente anacrónico mas não sou eu que o digo, foi Eisenstein, na sua arrasadora frase: “O cinema não foi inventado por Griffith mas sim por Dickens.” Ou seja, 50 anos antes de haver cinema, um escritor pensou numa estrutura de cinema para o seu romance, com elipses indicadas, capítulos a terminarem em plano geral e o seguinte a começar em grane plano. Adaptar o Dickens foi por isso mais simples: limitei-me a tirar a carne e a deixar o osso. No Garrett houve cortes profundos, “Quem és Tu?” deixou de ser “Ninguém” e passou a ser Portugal. Filmei-o numa altura em que os espanhóis compraram meia Avenida da Liberdade. Já não eram os Filipes mas uma armada financeira de Zaras e bancos Santander. No caso de “Os Maias” a ameaça é a bancarrota. Adaptar o Eça é fácil, pela história fluida do livro mas complicada porque o filme deveria ter 20 horas se quisesse ser fiel. E eu tentei não ser traidor. Repito: o problema foi saber o que cortar. Ajudou-me saber que o próprio Eça, num comentário sobre o seu livro, escreveu que, se lhe pedissem para resumir “Os Maias”, ele publicava apenas o Sarau da Trindade e mais nada. Porque está lá Portugal inteiro. A sua demagogia provinciana, a sua subserviência inata, o nosso ‘obrigadinho’. Coisas que voltaram depois da euforia democrática que tivemos com a Revolução de Abril que estão agora cada vez mais presentes. Voltámos a cair cedo nesta nossa saga portuguesa: a pedinchice, a cunha, os padrinhos.
Demorou até conseguir concentrar no filme todos esses elementos? Muito. A adaptação levou-me muitos meses de trabalho. Entretanto, fui descobrindo outras coisas sobre o espírito moderno de Eça que eu não conhecia: que ele tinha uma admiração fabulosa por Courbet, por exemplo. Apreciar um pintor que deu dignidade a pobres e a camponeses não era o gosto normal de um aristocrata bon vivant como Eça. 

Ao ver o filme pensei muito naquela ideia de “Le Rouge et le Noir” em que Stendhal dizia que um romance é um espelho que transportamos ao longo do caminho, ou seja, o reflexo da realidade que ele capta. Disse que gosta de anacronismos e acho que há um espelho assim no filme: é no momento anterior ao encontro entre Carlos e Maria Eduarda em que vemos uma rapariga a ler... “A Capital”
Que é um livro póstumo de Eça, só publicado 25 anos após a sua morte.
A menina a ler “A Capital” no Hotel Central (que eu filmei no Grémio Literário) é outro artifício. É como dizer: “Olhem que isto é falso! O cinema é falso.” Não morre ninguém aqui, ninguém dorme com ninguém aqui... Isto é um artifício mas as emoções, o tédio, o riso são verdade, tão verdade como a cabeleira loura de 180 mil cabelos que usa a atriz Maria FIor (que é morena) no papel da Maria Eduarda. Sempre houve isto nos meus filmes: uma tendência para retirar o tapete dos pés do espectador em determinado momento. Porém, há outras liberdades que o filme toma ligadas à realidade histórica. “La Traviatta” foi levada à cena no São Carlos na época em que Eça escreveu o livro. E é a ópera perfeita para enquadrar a condição da Maria Eduarda no fim da história. A Brasileira também não existia quando o Eça escreveu “Os Maias”, só existia a Casa Havaneza. Mas eu adoro este tipo de anacronismos e A Brasileira aparece nos telões do filme, aproximando o Chiado do que ele é hoje.
Os telões são o esplendor do falso a toda a prova e a prolongação de um gesto estético que já estava no seu primeiro filme, “Conversa Acabada”. Em simultâneo esse esplendor encontra em “Os Maias” um eco na mistura de som: no Rossio ouve-se gente a dizer pregões da época. Gostava que me falasse destes dois aspetos.
Pus pessoas a gritar, como os vendedores gritavam nessa época. Fico contente por eles terem sido ouvidos! A reconstituição de época de um filme destes é impossível de ser feita em Portugal, nunca teríamos dinheiro que pagasse uma recriação do Rossio e do Chiado do fim do século XIX. Podem, contudo, fazer-se pequenos apontamentos e esse, sonoro, é um deles. Já os telões são a apoteose do artifício. Tenho telões de 11metros de altura por 40 de comprido. Foram impressos em gráficas de outdoors. Filmámos num hangar vazio em Azeitão que foi pensado para ser uma espécie de FIL do distrito de Setúbal. Este filme não tem exteriores. E os exteriores simulados que vemos das janelas são telões feitos a partir de óleos pintados por João Queiroz. Ele teve o cuidado de pintar aqueles óleos maravilhosos com uma tal qualidade que não se notam as ampliações. Alguns quadros foram ampliados oito vezes, outros vinte. O João Queiroz, que é para mim o maior pintor português vivo, costuma pintar paisagens. Fiquei surpreendido quando ele aceitou pintar casas e ruas inteiras para este filme. Também fizemos uma pesquisa detalhada dos interiores: o consultório do Carlos no Rossio, por exemplo, foi filmado em Ponte de Lima, numa casa que ainda está decorada como no século XIX. Mas a roupa — e aqui vem outra modificação — não é a roupa do século XIX, que era horrível. Os vestidos das senhoras tinham golas altas, eu tenho decotes. Os fatos dos homens eram insuportavelmente ridículos. Os anacronismos estão em toda a parte, também aqui. Aliás, a Sílvia Grabowski, que fez o guarda-roupa, trabalhou muito com o João Queiroz. Tive a sorte de ter neste filme um grupo de pessoas que souberam criar em conjunto.
Nos seus últimos filmes tem trabalhado com um grupo de atores mais ou menos constante. Mas há neste filme um reencontro, com João Perry, que faz um extraordinário Afonso e com quem não filmava desde “Um Adeus Português”. E duas caras novas: Maria Flor a fazer de Maria Eduarda e Pedro Inês, que é um João da Ega assombroso. Os primeiros ‘contagiaram’ os últimos?
Eu diria que tenho uma família de atores aberta a novos elementos.
O Eça ajudou-me a uni-los. É o Eça que os contagia. A Maria Flor é brasileira, chegou ao filme pela nossa coprodução com o Brasil, mas é curioso: o Eça sugere no livro que a Maria Eduarda pode falar com sotaque brasileiro pela vida comum com Castro Gomes. Ela fez um trabalho incrível. Inventou um sotaque entre o francês, o português e o português do Brasil. O Hugo Amaro e o Pedro Lacerda fazem um Dâmaso Salcede e um Tomás Alencar extraordinários. O Pedro Inês é um caso engraçado, é um performer que vive há 12 anos na Holanda. Voltou para Portugal, onde tem um grupo rock e agora dedica-se ao teatro. Eu raramente fiz castings nos meus filmes, mas fiz neste. Entrevistei atores maravilhosos, mas de repente aparece-me este doido que sabia o texto todo e era o Ega! Foi uma dádiva. Ele estudara o Eça de trás para a frente. E tem a aura dos grandes cómicos, qualquer coisa de Oliver Hardy. A interpretação do Graciano Dias começa no tédio e acaba no drama, até o Carlos perder a compostura e ficar um farrapo, ao passo que o Pedro Inês dá-nos um João da Ega que entra logo a matar, que perturba tudo à sua volta cada vez que entra e sai dos planos. Um e outro fizeram um trabalho notável.
Disse acima que João da Ega é a metade do alter-ego do Eça. Porquê?
Porque o Eça é o Carlos da Maia e é o João da Ega, nem mais. O seu alter-ego está dividido em dois tal como foi dupla a sua vida privada em tantos episódios. Isto é muito raro nos romances daquela época. Eça atirou o romantismo dez anos para a frente rebentou-o. Para passar para o Courbet, provavelmente. Nos romances da época, o incestuoso dava um tiro na cabeça e a rapariga ia para o convento, ponto final. Aqui não, os amigos vão passear o tédio numa viagem pelo mundo, a Maria Eduarda casa-se com um qualquer, tem filhos e continua a sua vida. O único que morre é o velho Afono, com o João Perry a oferecer- me uma interpretação excecional.
E o Alencar e sem querer opor Eça a Camilo é o passado romântico, o negrume de Camilo?
É, mas o Eça recupera-o. Há aquela parte final em que ele recita “A Democracia” e os amigos abraçam-no. Mas no jantar do Hotel Central, que é uma das sequências que mais prazer me deu filmar na vida, Alencar é arrasado. O comportamento altera-se com a entrada dos pratos, do Poulet aux champignons ao Petit pois à la Cohen, até chegar à javardice absoluta. Se aquele jantar começa por falar de um fado em que fadistas e faias têm comportamentos selvagens, como na história da Severa que o filme apanha perto do fim, pior se comportam os nossos amigos civilizados no fim do jantar. O Eça falava disso, que “Os Maias” são a história de um fado português. Uma história sem fim que depois o Eça conclui com aquela ideia de ‘arraso’: os portugueses não correm nem pelo poder, nem pelo amor, nem pela glória. Mas já para um jantarinho... correm que nem doidos. 

Ah, e o episódio do tipo que se esquece do chapéu, que espantosa cena de gag deu ela ao fi!me...
Isso é brilhante, é Eça puro: um tipo à procura do chapéu que insiste em perturbar o momento mais dramático da história. É sublime.
Lembro-me de falar consigo sobre o poder da farsa quando fez “O Fatalista” a partir de Diderot. A farsa também e aplicável a “Os Maias”?
Há um comentário de irrisão que é aplicável e que se descobre nas várias camadas do livro. O Eça é feito de pessoas complexas cheias de contradições. Temos o direito e sempre o avesso, perpetuamente. Também tenho aprendido isso, com o envelhecimento: tenho cada vez menos certezas. E este livro abriu-me outra porta, isto é: permitiu-me corromper o ‘estilo Botelho’. Corromper coisas que o Manoel de Oliveira me ensinou: que só há um ponto de vista para cada plano, por exemplo. Há outra corrupção aqui, que é a do Eça sobre mim, como se ele me dissesse agora: ‘Calma rapaz, não tenhas tantas certezas sobre as coisas, deixa entrar o vento entre o campo e o contracampo.’ Isto é novo nos meus filmes e na maneira como dirijo os atores. Perdi o medo que tinha deles. E depois acontecem-me coisas que não sei explicar, como aquele plano que me deu a Maria João Pinho, quando a Condessa de Gouvarinho chega às lágrimas dentro na carruagem, no momento certo.
Há algumas cenas de cama no filme. Lembro-me da decisão de mise en scène em que o Conde de Gouvarinho põe a mão na testa ao mesmo tempo que o Carlos apalpa a Condessa noutra divisão da casa. E há a noite fatal, aquela em que Carlos dorme com a Maria Eduarda já sabendo que ela é sua irmã mas esta cena é filmada de forma radicalmente diferente, aqui não pode haver irrisão.
Não pode e esse é o momento em que eu violo o Eça. No livro, só há uma referência, violenta, entre o encontro sexual dos dois irmãos. Há um só encontro. Depois vem a angústia. Eu mantenho esse encontro em suspenso. No filme, podem ter sido vários. Quis que o desejo continuasse para Iá do tabu. A cena é filmada de forma diferente, sim: com cinefolio a tapar os projetores, mas com pequenos buracos para que a luz apenas ilumine pedaços, partes dos corpos. Aquela é uma cena de política e de vísceras, não pode ser voyeurista, não pode excitar ninguém, é uma cena de carne, de rasgões, de violação — porque Carlos da Maia já sabe o que nós sabemos também. Nessa sequência carnal, física, animalesca, suicida-se uma classe. E mata-se um avô. Um avô do Iluminismo e do Progressismo que outrora fora um revolucionário e que acaba os seus dias com o “Cândido” de Voltaire na mão, regressando à infância. Esta é a ideia do fim de Portugal, figurada no velho Afonso da Maia, que morre preso à raiz e à terra, na Quinta de Santa Olávia. Com ele não morre só um avô, só uma pessoa. Morre Portugal.
Francisco Ferreira, Expresso, 6 Setembro 2014

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