MEKONG HOTEL | 3 NOVEMBRO | Escola Superior de Saúde | 21h30


MEKONG HOTEL
Apichatpong Weerasethakul
Tailândia/Reino Unido,  2012, 57',M/14 


FICHA TÉCNICA
Realização, Montagem e Produção: Apichatpong Weerasethakul
Interpretação: Jenjira Pongpas, Maiyatan Techaparn,Sakda Kaewbuadee, Chai Bhatana,Chatchai Suban
Música: Chai Bhatana 
Som: Chalermrat Kaweewattana 
Origem: Tailândia/Reino Unido
Ano: 2012
Duração: 57'



FESTIVAIS
Festival de Cannes




CRÍTICAS
Como em O Tio Boonmee..., os fantasmas de Apichatpong entram nos planos de Hotel Mekong sem introdução prévia ou distinção formal. Como no filme anterior, o enquadramento dos fantasmas em planos fixos - de perfil quase documental - motiva a suspensão da realidade inteligível, ao dispor a matéria e o espírito no mesmo plano da existência. Os fantasmas - que em Hotel Mekong são de carne e osso - interagem no plano com as outras personagens, e é dessa interação que nasce o espaço de indistinção a partir do qual o tailandês edifica os seus filmes. 
 A convivência, no plano, de humanos e fantasmas - ou de matéria e espírito - parece aludir a uma sobreposição de linhas de tempo: Já passaram quase seiscentos anos, diz o fantasma. A relação entre eles - humanos e fantasmas - é ambígua, e é o facto de existir um espaço comum - o Hotel Mekong - que os aproxima. Como em outros filmes de Apichatpong, os fantasmas são propriedade do espaço, e aquilo que os planos captam é a reunião desfasada de duas linhas de tempo nesse mesmo espaço. A imaterialidade dos fantasmas é realçada por Apichatpong através do tratamento do som. As notas de guitarra que ouvimos inicialmente atravessam, tal como um fantasma, todos os planos do filme, conferindo unidade às várias sequências e saltos temporais.
O filme é belíssimo quando consegue coordenar a eloquência dos quadros fixos com a sugestão subtil de uma presença espiritual. Isto é, quando a presença do espírito acorre à imagem sem referência ou enquadramento diretos. Não são tão felizes os episódios viscerais, em que o fantasma materializado devora as entranhas dos humanos. A materialização do espírito retira profundidade às imagens e, nesses planos, tudo se torna menos interessante.

João Carpinteiro, c7nema.net




Estamos num hotel em Nong Khai, no curso do rio Mekong, que traça a fronteira entre a Tailândia e o Laos. Naquela fronteira, a paisagem é idílica e a água corre em doce calmaria, propícia aos amantes de jet-ski. Mas já por ali correu sangue e ainda são visíveis os seus vestígios. Não estamos longe de Khon Kaen, onde Apichatpong Weerasethakul rodou os seus filmes mais recentes: “Syndromes and a Century”, “O Tio Boonmee...”. Continuamos (e desculpem a precisão geográfica) nesse vasto e misterioso nordeste em que o tailandês cresceu e que elegeu há muito como território do seu trabalho. Para os iniciados neste ‘continente’, recorde-se que os fantasmas que Apichatpong tantas vezes convida à sua mesa refletem toda uma história política recente do país que acumulou massacres sobre massacres (desde a chacina dos comunistas às mãos do exército naquele mesmo nordeste, nos anos 60). A sua filmografia ergueu-se a esta escala abissal. Há personagens que passam de filmes para outros. Os pesadelos não pedem licença para entrar aqui.
Nem a mágoa.
Resultado de uma encomenda do canal franco-alemão Arte, “Mekong Hotel”, rodado em vídeo, data já de 2012 e não chega a uma hora de duração. Poderá ser visto como um intermezzo na obra de “Joe” (é este o crisma de Apichatpong no Ocidente), um blues menor entre dois filmes maiores, “O Tio Boonmee...” e o novo, sublime, “Cemetery of Splendor” (acabado de estrear em Cannes 2015). No hotel em que tudo decorre, há vários tempos sobrepostos sobre um mesmo pretérito imperfeito, delicado e dolente. A região foi recentemente assolada por inundações catastróficas. Duas mulheres, Jen (Jenjira Pongpas, atriz recorrente do cineasta) e a filha Phon (Maiyatan Techaparn), foram tomadas pelos “Pob”, fantasmas canibais que se apoderam de animais e pessoas e se alimentam das suas entranhas. O próprio Apichatpong, numa aparição pouco comum, invade a ficção interpelando um amigo guitarrista (Chai Bhatana) que não se recorda mais da música que compôs, mas cujos acordes acompanharão o filme do início ao fim.
A story é vaga? Contada assim... E, no entanto, é preciso atravessar esta experiência hipnótica para nos darmos conta do que está aqui em jogo. Jen pode até ser um fantasma canibal e secular mas ainda se recorda de quando, ainda menina, o exército tailandês lhe pôs uma espingarda M-16 na mão; ainda se recorda do êxodo dos laosianos da Tailândia, dos casais obrigados a refugiarem-se em França, das histórias de amor quebradas à força entre as duas margens daquele rio; em suma, de todo um passado de culpa que se lamenta e se contempla, ao mesmo tempo que se exorcisa. “Podes esquecer o meu nome, mas não o meu rosto”, diz logo no início Phon a Tong outra provável história de amor que acaba possuída e se devora. No fundo, é disto que “Mekong Hotel” nos fala: de uma fratura exposta ainda tão visível mas que já não se consegue nomear. Da necessidade de continuar a viver num tempo em que os traumas do passado, ainda por sarar, continuam a descer o rio. A essa dor, deu “Joe” em “Mekong Hotel” uma melodia.
Francisco Ferreira, Expresso, 13/6/15

BANDO DE RAPARIGAS | 27 OUTUBRO | ARTISTAS | 21H30


BANDO DE RAPARIGAS
Céline Sciamma
França, 2014, 113’, M/14


FICHA TÉCNICA
Título Original: Bande de Filles
Argumento e Realização: Céline Sciamma
Fotografia: Crystel Fournier
Montagem: Julien Lacheray
Produção - Bénédicte Couvreur
Interpretação: Assa Sylla, Karidja Touré, Lindsay Karamoh, Mariétou Touré
Ano: 2014
Origem: França
Duração: 113´


FESTIVAIS E PRÉMIOS

Festival de Cannes 2014 – Quinzena dos Realizadores
Prémios César 2015 – 4 nomeações, incluindo Melhor Realizadora
Finalista do Prémio LUX da Comissão Europeia
Festival de San Sebastián – Prémio TVE Outro Olhar


CRÍTICAS
A terceira longa de Sciamma instala-se num subúrbio de Paris, para seguir uma adolescente negra que vive sufocada pelo seu contexto. O início do filme limita-se, aliás, a situar a personagem no seu meio, conduzindo-nos pelas ruas (dominadas pelos rapazes), pela escola (que nada lhe promete) e pelo apartamento da sua família (liderada pelo seu tirânico irmão mais velho). Haveria aqui terreno para o lugar-comum sociológico, mas, felizmente, Sciamma despacha a descrição do contexto (sempre presente em fundo) num par de pinceladas. O que cativa a câmara é, ao invés, a possibilidade de mostrar como a protagonista tenta libertar-se do seu mundo.
Trata-se de um desejo que cedo a levará a juntar-se ao bando de raparigas do título, formado por três though girls (todas interpretadas por não-atrizes) que à escola preferem a evasão (vaguear pelos centros comerciais...). A partir daqui, o filme encetará um constante movimento de vaivém entre o pessoal e o coletivo, para verificar como a protagonista depressa encontra no universo paralelo do gangue uma nova amarra à sua liberdade. Mas, mais do que a história, o que é sublime, aqui, é o modo como Sciamma fica sempre à altura das personagens, nunca caindo na tentação de trair os seus pontos de vista. É uma exigência de fidelidade que se nota, em especial, na construção dos diálogos, que, no caso, primam pela sua vitalidade (como se cada palavra saísse em estado bruto da boca das raparigas).
Uma bela surpresa, portanto. 
Vasco Baptista Marques, Expresso, 29/8/15



Costuma dizer-se “à terceira é de vez”. E, ao terceiro filme, a francesa Céline Sciamma arranca uma das obras mais inteligentes e certeiras que vemos este ano, naquela que é também a sua estreia em salas portuguesas (às quais Naissance des Pieuvres, de 2007, e Maria-Rapaz, de 2011, nunca chegaram, o último tendo ido directo para video).
Subversão procurada e inteligentíssima do “filme-manifesto social”, Bando de Raparigas recusa toda e qualquer condescendência no seu retrato de uma adolescente dos subúrbios parisienses cuja timidez esconde uma determinação brutal a escapar à condição a que o “sistema” parece querer condená-la — condição feminina, condição africana, condição de cidadã “de segunda classe” sem futuro nem saída.
Bando de Raparigas é um filme de descoberta e de criação de uma identidade, de uma miúda que se faz mulher à nossa frente, contado com uma energia e uma sensibilidade que viram de cabeça para baixo todos os lugares-comuns a que o cinema social costuma prestar-se. Bastaria a célebre cena do hotel ao som de Rihanna para nos convencer, mas este é um filme que faz sentido como um todo inesgotável.
Jorge Mourinha, publico.pt

TAXI | 20 OUTUBRO | TMF | 21H30

TÁXI
Jafar Panahi
Irão, 2015, 82’, M/12


FICHA TÉCNICA
Realização, argumento, fotografia, montagem e produção: Jafar Panahi
Origem: Irão
Ano: 2015

Duração: 82’

FESTIVAIS
Festival de Berlim - Urso de Ouro Melhor Filme









CRÍTICA
Proibido de filmar durante vinte anos, Jafar Panahi continua a fazer filmes: "Taxi" é mais um extraordinário exemplo da sua tenacidade criativa e artística — foi o vencedor do Festival de Berlim de 2015.
A imagem mostra-nos a sobrinha de Jafar Panahi. Debruçando-se sobre o interior do carro em que o tio a veio buscar à escola, protesta duplamente: primeiro, porque ele está muito atrasado; segundo, porque o tem elogiado junto das colegas (sublinhando o facto de ele ser um "cineasta"), desse modo sentindo-se humilhada por ele aparecer ao volante de um... taxi!
Afinal de contas, no seu filme "Taxi", Panahi conduz ou não um taxi? Sim, sem dúvida — digamos que ele interpreta um motorista que, através dos seus passageiros, nos vai revelando a variedade dos cidadãos de Teerão, envolvendo comportamentos que vão desde a mais violenta arrogância (contra as mulheres) até à defesa da dignidade humana (nas palavras de uma advogada dos direitos humanos).
Ao mesmo tempo, tudo se passa como se entrássemos num infinito jogo de espelhos: Panahi é a sua personagem, típica e artificiosa, mas nunca deixa de ser aquilo que é, observador e cineasta — há mesmo um passageiro que o trata pelo nome e lhe diz, sorridente, que percebeu que ele anda a fazer um filme...
Há outra maneira de dizer isto: o exercício de alegre desmontagem do cinema enquanto dispositivo de representação funciona também como um gesto de afirmação artística face às condições em que Panahi tem sido obrigado a viver. De facto, em 2010, ele foi condenado pelas autoridades iranianas a seis anos de prisão domiciliária, estando também proibido de filmar durante vinte anos.
Distinguido com o Urso de Ouro do Festival de Berlim, "Taxi" é o terceiro filme que Panahi realiza nestas drásticas condições, depois de "Isto Não É um Filme" (2011) e "Closed Curtain" (2013). Na sua metódica deambulação pelas ruas, estamos perante um gesto de admirável afirmação de liberdade criativa, celebrando o cinema como essa vontade indomável de olhar o mundo à sua volta — mesmo não saindo do espaço exíguo de um taxi.
João Lopes, rtp.pt/cinemax


TIMBUKTU | 13 OUTUBRO | ARTISTAS | 21H30

TIMBUKTU
Abderrahmane Sissako 
França/Mauritânia, 2014, 97', M/14


FICHA TÉCNICA
Realização: Abderrahmane Sissako 
Argumento: Abderrahmane Sissako e Kessen Tall
Fotografia: Sofian El Fani 
Montagem: Nadia  Ben Rachid  
Música: Amine Bouhafa
Interpretação: Ibrahim Ahmed (Pino),  Toulou Kiki, Abel Jafri,  Fatoumata Diawara, Hichem Yacoubi,  Kettly Noël,  Mehdi AG Mohamed,  Layla Walet Mohamed, Adel Mahmoud, Cherif  Salem Dendou
Origem: França/Mauritânia
Ano: 2014
Duração: 97'




FESTIVAIS E PRÉMIOS
Oscares - Nomeado para melhor filme estrangeiro
Cannes - prémio François Chalais e prémios Júri Ecuménico
Césares – Melhor filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento, Melhor Música Original, Melhor Som, Melhor Fotografia, Melhor Montagem



CRÍTICAS
A primeira memória que “Timbuktu” nos deixa é a das esculturas africanas destruídas à bala por um grupo de atiradores, em estado mais lúdico e eufórico que justiceiro ou fanático — e está aí a queda de Palmira às mãos do Estado Islâmico, para uma ligação tão imediata que parece feita a propósito. Não é, “Timbuktu” está para lá de um simples filme- denúncia sobre a estúpida barbárie do fundamentalismo que se reclama do profeta, mas é apenas lerdo e blasfemo (há um plácido imã que tenta chamar os jiadistas à razão dizendo-lhes isto por palavras indiretas). É um mosaico complexo, onde se começa por perceber que a doçura de viver está na mira dos novos mandadores: é proibido estar sentado à porta, ao fim de tarde, a fazer nada... Depois vê-se que a violência dos fundamentalistas se exerce em todos os aspetos da vida social — fumar é banido, as mulheres têm de usar luvas e meias, o futebol e a música são interditos, o adultério é punido com lapidação até à morte — mas onde o olhar de Abderrahmane Sissako nunca se compraz. Nem um dos vários momentos-choque dura — e o apedrejamento do casal adúltero, enterrado na areia só com as cabeças de fora, às quais se arremessam pedras, bem podia servir para um longo e pornográfico arrepio coletivo da plateia. Só que isso seria pactuar com o espetáculo da violência orquestrado pelos perpetradores do terror. Não o fazer é uma declaração ética. Como ético é o uso sapiente do humor — veja-se a cena do futebol sem bola, certamente só possível graças aos processos digitais que hão de ter permitido obliterar a bola da imagem — ou da magia de uma mulher exuberante que reclama ter vindo do Haiti por artes de mistério e que introduz um gesto fantástico, quase uma resistência cultural de raiz abstrata no seio de uma realidade sinistramente prosaica de quem lê o Corão à letra, sem lhe adivinhar nem o espírito nem a poesia. Combate-se o fundamentalismo tornando óbvia a inanidade. E mostrando a beleza. A beleza do deserto, da tenda do protagonista, do rio onde se pesca e o gado mata a sede, dos turbantes, das casas de adobe, do som do alaúde, dos olhos da pequena Toya (Layla Walet Mohamed), 12 anos de vida a maravilhar o mundo.

O mosaico que “Timbuktu” escolhe ser não chega a ter personagens, apenas esquissos, traços essenciais para definir, nada de psicologia. Bastam, porém, para fazer dele um filme coral, um olhar plangente onde nem a gente que sofre é angélica, nem os jiadistas monstros — mas há bem e mal e linhas de demarcação. O-mal, todavia, nunca aniquila a força vital daquele mundo onde Sissako investe a sua esperança. Terá sido isso — e a mise-en-scène exímia? — a cativar espectadores por todo o mundo? Não sei, mas o que é certo é que “Timbuktu” começou por ser aclamado em Cannes, um ano atrás, ganhou sete Césares, entre os quais o de Melhor Filme e Melhor Realização, foi um dos cinco finalistas para o Óscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira e vem estreando em múltiplos países, da Itália ao México, do Reino Unido ao Brasil.
Jorge leitão Ramos, Expresso, 30/5/15



Condenar o Exército Islâmico sem desumanizar os seus protagonistas: eis a proeza de Abderrahmane Sissako.
Quando praticamente todos os dias chegam notícias ou imagens de mais uma atrocidade cometida pelo autoproclamado Estado Islâmico (EI), o maniqueísmo parece uma coisa inescapável.
E perante isso, que espaço e que disposição existem para um olhar que, condenado inequivocamente o jihadismo do EI, não desumanize os seus protagonistas? Para um olhar que defenda uma concepção religiosa da existência contra a religiosidade fanática que serve de pretexto às acções do EI?
A surpresa de Timbuktu é que se trata do filme que é capaz desse olhar, e de se instalar nele com uma graça e uma delicadeza que não são contrariadas nem por uma posição política subjacente nem pela brutalidade que, inevitavelmente, tem de retratar. Abderrahmane Sissako é um cineasta de origem mauritana que viveu grande parte da sua vida no Mali. E no Mali, na lendária Timbuktu, se passa o seu filme, durante o período de 2012 em que a cidade esteve ocupada por um grupo jihadista, o Ansar Dine, com ligações ao dito Estado Islâmico. A primeira sequência — uma gazela filmada a correr a alta velocidade pelas areias do deserto, depois se percebendo que está a ser perseguida um jipe que tem desfraldada a bandeira do EI — cria logo um frisson, tal é a maneira como aquele símbolo rapidamente se implantou nos nossos espíritos como expressão de um mal sem freio. Numa estrutura circular, a mesma gazela (ou outra) voltará no fecho, cumprindo a função, anunciada na abertura, de ser um contraponto simbólico — em vida, natureza e liberdade — à obsessiva repressão “jihadista”.
Entre um momento e outro, Timbuktu narra vários episódios da permanência do Ansar Dine na cidade e nas suas imediações, alguns deles inspirados em factos realmente sucedidos. Condenações por motivos insignificantes (ouvir música, jogar à bola), outras por motivos mais sérios. A sequência mais impressionante mostra um casal a ser apedrejado até à morte, e a câmara fica, depois, algum tempo, com a imagem de puro horror que são as suas cabeças ensanguentadas e inanimadas, à superfície da areia, rodeadas de pedregulhos. Mas mais do que nas peripécias e nas descrições dos actos de violência, física ou psicológica, a força de Timbuktu está na maneira como contrapõe a serenidade resistente dos habitantes locais à espécie de incómodo dos ocupantes. São os primeiros que estão convictos do seu modo de vida e do seu modo de encarar a religiosidade, e são os segundos que parecem incomodados com essa convicção, espécie de espelho que não lhes devolve a imagem da sua religiosidade “programática”. A partir daí Sissako pode, de facto, filmar os jihadistas sem lhes evacuar a humanidade, um certo desconcerto, uma sensação de impotência (a sensação de que podem dominar os corpos das suas vítimas mas não dominarão o seu espírito), filmar-lhes sobretudo as reacções — a gestos ou a palavras — onde tudo isto se exprime, e apanhá-los, com um certo sentido de humor muito subtil e muito inesperado, nas suas contradições, como quando os mostra como garotos meio perdidos que no fundo gostam é de futebol ou de rap, ou quando faz um toque de telemóvel — esse sinal de “modernidade” imediatamente anacrónico num mundo desejadamente retrógrado — parecer um gag. Timbuktu é um filme sobre o sacrifício e a resistência, que desmonta (e no fundo, derrota) o jihadismo não por o tratar como uma monstruosidade mas por o tratar ainda como questão de humanidade. Não era óbvio, mas Sissako consegue-o perfeitamente.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt/


É DIFÍCIL SER UM DEUS | 6 OUTUBRO | 21H30 | IPDJ

É DIFÍCIL SER UM DEUS
Aleksey German
Rússia, 2013, 170’, M/16


FICHA TÉCNICA
Título original: Trudno byt bogom
Realização: Aleksey German
Argumento: Aleksey German e Svetlana Karmalita, adapatação da obra homónima de Arkadiy Strugatskiy e Boris Strugatskiy
Montagem: Irina Gorokhovskaya
Fotografia: Vladimir Ilin e Yuriy Klimenko
Música: Viktor Lebedev
Interpretação: Gali Abaydulov, Yuriy Ashikhmin, Remigijus Bilinskas, Valeriy Boltyshev
Origem: Rússia
Ano: 2013
Duração: 170’





CRÍTICA
É Difícil Ser Deus foi o último filme de Alexei German (1938-2013), cineasta russo pouco conhecido em Portugal (fora passagens na Cinemateca e na “velha” RTP2), e autor de uma obra, como se costuma dizer, “bissexta” (apenas seis longas-metragens em quase 50 anos de carreira), German começou a rodagem de É Difícil Ser Deus no ano 2000, o filme teve uma gestação complicada e demorada, e o realizador, que morreu no início de 2013, já não assistiu à primeira apresentação pública da sua obra.
Os seus outros filmes são olhares, mais ou menos enviesados, sobre a História soviética, por vezes recorrendo a uma espécie de sátira — como no imediatamente anterior Krustaliov, O Meu Carro!, que visitava a paranóia estalinista.
Este, que pela sua dimensão, a todos os níveis, deve bem ter sido o projecto da vida de German, é algo de substancialmente diferente de tudo o que antes tinha feito. A partir de um romance dos irmãos Strugatsky publicado em 1964, é uma incursão num género com forte tradição no cinema russo/soviético, a ficção científica. Mas, neste caso, uma ficção científica que substitui uma visão do futuro por uma viagem ao passado. É a história de um grupo de cientistas em missão num planeta em tudo semelhante à Terra mas onde o avanço da História “parou” num período semelhante ao da Idade Média.
Para German, mais do que fazer “fazer ficção científica”, trata-se de dar largas a um imaginário, à falta de melhores termos, medievalista, pictórico, grotesco. É muito curioso que nos lembremos, imenso, de outro filme russo, de produção recente, oriundo de um cineasta nem por isso muito próximo de German: o Fausto de Sokurov. No Fausto não era o mesmo período histórico que estava em causa, mas a preocupação era semelhante no que toca ao trabalho sobre a fealdade e sobre o grotesco.
German filma num preto-e-branco soberbo, Sokurov filmava a cores, mas os filmes encontram-se no “levantamento” que fazem de elementos de uma “estética do feio”, inclusivamente colhidos na pintura histórica, sendo evidentes, no caso de German, as “presenças” de Brueghel ou Bosch. É Difícil Ser Deus é um trabalho de bricolage visual impressionante: os longos planos cheios de movimento interno, a câmara sempre móvel a varrer os cenários, uma enorme quantidade de detalhes visuais em cada plano — como se fosse um dos últimos filmes pensados para as dimensões de uma grande tela de cinema. Também é massacrante, até mesmo em termos “poéticos” — o que é que exprime, hoje, este mundo feio e bárbaro, o que valia para a URSS dos anos 60 (quando o romance foi publicado) volta a valer para a Rússia de Putin? Na boa tradição do cinema soviético “indecifrável”, que é a origem de German, o filme não explica nada, é feito para deixar o espectador a matutar. É, em todo o caso, uma experiência impressionante, que tem tudo para dividir os espectadores, entre os que ficarão esmagados e os que ficarão, apenas, exasperados. Outros, porventura menos mas é o nosso caso, ficarão pelo meio termo.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt/