TIMBUKTU
Abderrahmane Sissako
França/Mauritânia, 2014, 97',
M/14
FICHA TÉCNICA
Realização: Abderrahmane
Sissako
Argumento: Abderrahmane Sissako e Kessen Tall
Fotografia: Sofian El Fani
Fotografia: Sofian El Fani
Montagem: Nadia
Ben Rachid
Música: Amine
Bouhafa
Interpretação: Ibrahim Ahmed (Pino), Toulou Kiki, Abel Jafri, Fatoumata Diawara, Hichem Yacoubi, Kettly Noël, Mehdi AG Mohamed, Layla Walet Mohamed, Adel Mahmoud, Cherif Salem Dendou
Interpretação: Ibrahim Ahmed (Pino), Toulou Kiki, Abel Jafri, Fatoumata Diawara, Hichem Yacoubi, Kettly Noël, Mehdi AG Mohamed, Layla Walet Mohamed, Adel Mahmoud, Cherif Salem Dendou
Origem: França/Mauritânia
Ano: 2014
Duração: 97'
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Oscares - Nomeado
para melhor filme estrangeiro
Cannes - prémio
François Chalais e prémios Júri Ecuménico
Césares –
Melhor filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento, Melhor Música Original, Melhor
Som, Melhor Fotografia, Melhor Montagem
CRÍTICAS
A primeira memória que “Timbuktu” nos deixa é
a das esculturas africanas destruídas à bala por um grupo de atiradores, em
estado mais lúdico e eufórico que justiceiro ou fanático — e está aí a queda de
Palmira às mãos do Estado Islâmico, para uma ligação tão imediata que parece
feita a propósito. Não é, “Timbuktu” está para lá de um simples filme- denúncia
sobre a estúpida barbárie do fundamentalismo que se reclama do profeta, mas é apenas
lerdo e blasfemo (há um plácido imã que tenta chamar os jiadistas à razão
dizendo-lhes isto por palavras indiretas). É um mosaico complexo, onde se
começa por perceber que a doçura de viver está na mira dos novos mandadores: é
proibido estar sentado à porta, ao fim de tarde, a fazer nada... Depois vê-se
que a violência dos fundamentalistas se exerce em todos os aspetos da vida
social — fumar é banido, as mulheres têm de usar luvas e meias, o futebol e a
música são interditos, o adultério é punido com lapidação até à morte — mas
onde o olhar de Abderrahmane Sissako nunca se compraz. Nem um dos vários
momentos-choque dura — e o apedrejamento do casal adúltero, enterrado na areia
só com as cabeças de fora, às quais se arremessam pedras, bem podia servir para
um longo e pornográfico arrepio coletivo da plateia. Só que isso seria pactuar
com o espetáculo da violência orquestrado pelos perpetradores do terror. Não o
fazer é uma declaração ética. Como ético é o uso sapiente do humor — veja-se a
cena do futebol sem bola, certamente só possível graças aos processos digitais
que hão de ter permitido obliterar a bola da imagem — ou da magia de uma mulher
exuberante que reclama ter vindo do Haiti por artes de mistério e que introduz
um gesto fantástico, quase uma resistência cultural de raiz abstrata no seio de
uma realidade sinistramente prosaica de quem lê o Corão à letra, sem lhe
adivinhar nem o espírito nem a poesia. Combate-se o fundamentalismo tornando
óbvia a inanidade. E mostrando a beleza. A beleza do deserto, da tenda do
protagonista, do rio onde se pesca e o gado mata a sede, dos turbantes, das casas
de adobe, do som do alaúde, dos olhos da pequena Toya (Layla Walet Mohamed), 12
anos de vida a maravilhar o mundo.
O mosaico que “Timbuktu” escolhe ser não
chega a ter personagens, apenas esquissos, traços essenciais para definir, nada
de psicologia. Bastam, porém, para fazer dele um filme coral, um olhar
plangente onde nem a gente que sofre é angélica, nem os jiadistas monstros — mas
há bem e mal e linhas de demarcação. O-mal, todavia, nunca aniquila a força
vital daquele mundo onde Sissako investe a sua esperança. Terá sido isso — e a mise-en-scène
exímia? — a cativar espectadores por todo o mundo? Não sei, mas o que é
certo é que “Timbuktu” começou por ser aclamado em Cannes, um ano atrás, ganhou
sete Césares, entre os quais o de Melhor Filme e Melhor Realização, foi um dos
cinco finalistas para o Óscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira e vem
estreando em múltiplos países, da Itália ao México, do Reino Unido ao Brasil.
Jorge leitão Ramos, Expresso, 30/5/15
Condenar o Exército Islâmico sem desumanizar
os seus protagonistas: eis a proeza de Abderrahmane Sissako.
Quando praticamente
todos os dias chegam notícias ou imagens de mais uma atrocidade cometida pelo
autoproclamado Estado Islâmico (EI), o maniqueísmo parece uma coisa
inescapável.
E perante isso, que espaço e que disposição existem para um olhar que,
condenado inequivocamente o jihadismo do EI, não desumanize os seus
protagonistas? Para um olhar que defenda uma concepção religiosa da existência
contra a religiosidade fanática que serve de pretexto às acções do EI?
A surpresa de Timbuktu é que se trata do filme que é capaz
desse olhar, e de se instalar nele com uma graça e uma delicadeza que não são
contrariadas nem por uma posição política subjacente nem pela brutalidade que,
inevitavelmente, tem de retratar. Abderrahmane Sissako é um cineasta de origem
mauritana que viveu grande parte da sua vida no Mali. E no Mali, na lendária Timbuktu,
se passa o seu filme, durante o período de 2012 em que a cidade esteve ocupada
por um grupo jihadista, o Ansar Dine, com ligações ao dito Estado Islâmico. A
primeira sequência — uma gazela filmada a correr a alta velocidade pelas areias
do deserto, depois se percebendo que está a ser perseguida um jipe que tem
desfraldada a bandeira do EI — cria logo um frisson, tal é a maneira
como aquele símbolo rapidamente se implantou nos nossos espíritos como
expressão de um mal sem freio. Numa estrutura circular, a mesma gazela (ou
outra) voltará no fecho, cumprindo a função, anunciada na abertura, de ser um
contraponto simbólico — em vida, natureza e liberdade — à obsessiva repressão
“jihadista”.
Entre um momento e
outro, Timbuktu narra vários episódios da permanência
do Ansar Dine na cidade e nas suas imediações, alguns deles inspirados em
factos realmente sucedidos. Condenações por motivos insignificantes (ouvir
música, jogar à bola), outras por motivos mais sérios. A sequência mais
impressionante mostra um casal a ser apedrejado até à morte, e a câmara fica,
depois, algum tempo, com a imagem de puro horror que são as suas cabeças
ensanguentadas e inanimadas, à superfície da areia, rodeadas de pedregulhos.
Mas mais do que nas peripécias e nas descrições dos actos de violência, física
ou psicológica, a força de Timbuktu está na maneira como contrapõe a serenidade
resistente dos habitantes locais à espécie de incómodo dos ocupantes. São os
primeiros que estão convictos do seu modo de vida e do seu modo de encarar a
religiosidade, e são os segundos que parecem incomodados com essa convicção,
espécie de espelho que não lhes devolve a imagem da sua religiosidade
“programática”. A partir daí Sissako pode, de facto, filmar os jihadistas sem
lhes evacuar a humanidade, um certo desconcerto, uma sensação de impotência (a
sensação de que podem dominar os corpos das suas vítimas mas não dominarão o
seu espírito), filmar-lhes sobretudo as reacções — a gestos ou a palavras —
onde tudo isto se exprime, e apanhá-los, com um certo sentido de humor muito
subtil e muito inesperado, nas suas contradições, como quando os mostra como
garotos meio perdidos que no fundo gostam é de futebol ou de rap, ou quando faz
um toque de telemóvel — esse sinal de “modernidade” imediatamente anacrónico
num mundo desejadamente retrógrado — parecer um gag. Timbuktu é um filme sobre
o sacrifício e a resistência, que desmonta (e no fundo, derrota) o jihadismo
não por o tratar como uma monstruosidade mas por o tratar ainda como questão de
humanidade. Não era óbvio, mas Sissako consegue-o perfeitamente.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt/
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