MEKONG
HOTEL
Apichatpong Weerasethakul
Tailândia/Reino Unido, 2012, 57',M/14
FICHA TÉCNICA
Realização,
Montagem e Produção: Apichatpong
Weerasethakul
Interpretação: Jenjira Pongpas, Maiyatan Techaparn,Sakda Kaewbuadee, Chai Bhatana,Chatchai Suban
Interpretação: Jenjira Pongpas, Maiyatan Techaparn,Sakda Kaewbuadee, Chai Bhatana,Chatchai Suban
Música: Chai Bhatana
Som: Chalermrat Kaweewattana
Origem: Tailândia/Reino Unido
Som: Chalermrat Kaweewattana
Origem: Tailândia/Reino Unido
Ano: 2012
Duração: 57'
FESTIVAIS
Festival de
Cannes
CRÍTICAS
Como em O Tio Boonmee..., os fantasmas de
Apichatpong entram nos planos de Hotel Mekong sem introdução prévia ou
distinção formal. Como no filme anterior, o enquadramento dos fantasmas em
planos fixos - de perfil quase documental - motiva a suspensão da realidade
inteligível, ao dispor a matéria e o espírito no mesmo plano da existência. Os
fantasmas - que em Hotel Mekong são de carne e osso -
interagem no plano com as outras personagens, e é dessa interação que nasce o
espaço de indistinção a partir do qual o tailandês edifica os seus filmes.
A convivência, no plano, de humanos e fantasmas - ou de matéria e espírito -
parece aludir a uma sobreposição de linhas de tempo: Já passaram quase
seiscentos anos, diz o fantasma. A relação entre eles - humanos e fantasmas - é
ambígua, e é o facto de existir um espaço comum - o Hotel Mekong - que os
aproxima. Como em outros filmes de Apichatpong, os fantasmas são propriedade do
espaço, e aquilo que os planos captam é a reunião desfasada de duas linhas de
tempo nesse mesmo espaço. A imaterialidade dos fantasmas é realçada por
Apichatpong através do tratamento do som. As notas de guitarra que ouvimos
inicialmente atravessam, tal como um fantasma, todos os planos do filme,
conferindo unidade às várias sequências e saltos temporais.
O filme é belíssimo quando consegue coordenar a eloquência dos quadros fixos
com a sugestão subtil de uma presença espiritual. Isto é, quando a presença do
espírito acorre à imagem sem referência ou enquadramento diretos. Não são tão
felizes os episódios viscerais, em que o fantasma materializado devora as
entranhas dos humanos. A materialização do espírito retira profundidade às
imagens e, nesses planos, tudo se torna menos interessante.
João
Carpinteiro, c7nema.net
Estamos
num hotel em Nong Khai, no curso do rio Mekong, que traça a fronteira entre a
Tailândia e o Laos. Naquela fronteira, a paisagem é idílica e a água corre em
doce calmaria, propícia aos amantes de jet-ski. Mas já por ali correu
sangue e ainda são visíveis os seus vestígios. Não estamos longe de Khon Kaen,
onde Apichatpong Weerasethakul rodou os seus filmes mais recentes: “Syndromes
and a Century”, “O Tio Boonmee...”. Continuamos (e desculpem a precisão geográfica)
nesse vasto e misterioso nordeste em que o tailandês cresceu e que elegeu há
muito como território do seu trabalho. Para os iniciados neste ‘continente’,
recorde-se que os fantasmas que Apichatpong tantas vezes convida à sua mesa
refletem toda uma história política recente do país que acumulou massacres
sobre massacres (desde a chacina dos comunistas às mãos do exército naquele
mesmo nordeste, nos anos 60). A sua filmografia ergueu-se a esta escala
abissal. Há personagens que passam de filmes para outros. Os pesadelos não
pedem licença para entrar aqui.
Nem a
mágoa.
Resultado
de uma encomenda do canal franco-alemão Arte, “Mekong Hotel”, rodado em vídeo, data já de 2012 e não chega a
uma hora de duração. Poderá ser visto como um intermezzo na obra de
“Joe” (é este o crisma de Apichatpong no Ocidente), um blues menor entre
dois filmes maiores, “O Tio Boonmee...” e o novo, sublime, “Cemetery of
Splendor” (acabado de estrear em Cannes 2015). No hotel em que tudo decorre, há
vários tempos sobrepostos sobre um mesmo pretérito imperfeito, delicado e
dolente. A região foi recentemente assolada por inundações catastróficas. Duas
mulheres, Jen (Jenjira Pongpas, atriz recorrente do cineasta) e a filha Phon
(Maiyatan Techaparn), foram tomadas pelos “Pob”, fantasmas canibais que se
apoderam de animais e pessoas e se alimentam das suas entranhas. O próprio
Apichatpong, numa aparição pouco comum, invade a ficção interpelando um amigo
guitarrista (Chai Bhatana) que não se recorda mais da música que compôs, mas
cujos acordes acompanharão o filme do início ao fim.
A story é vaga? Contada assim... E, no entanto, é preciso atravessar esta experiência hipnótica para nos darmos conta do que está aqui em jogo. Jen pode até ser um fantasma canibal e secular mas ainda se recorda de quando, ainda menina, o exército tailandês lhe pôs uma espingarda M-16 na mão; ainda se recorda do êxodo dos laosianos da Tailândia, dos casais obrigados a refugiarem-se em França, das histórias de amor quebradas à força entre as duas margens daquele rio; em suma, de todo um passado de culpa que se lamenta e se contempla, ao mesmo tempo que se exorcisa. “Podes esquecer o meu nome, mas não o meu rosto”, diz logo no início Phon a Tong — outra provável história de amor que acaba possuída e se devora. No fundo, é disto que “Mekong Hotel” nos fala: de uma fratura exposta ainda tão visível mas que já não se consegue nomear. Da necessidade de continuar a viver num tempo em que os traumas do passado, ainda por sarar, continuam a descer o rio. A essa dor, deu “Joe” em “Mekong Hotel” uma melodia.
A story é vaga? Contada assim... E, no entanto, é preciso atravessar esta experiência hipnótica para nos darmos conta do que está aqui em jogo. Jen pode até ser um fantasma canibal e secular mas ainda se recorda de quando, ainda menina, o exército tailandês lhe pôs uma espingarda M-16 na mão; ainda se recorda do êxodo dos laosianos da Tailândia, dos casais obrigados a refugiarem-se em França, das histórias de amor quebradas à força entre as duas margens daquele rio; em suma, de todo um passado de culpa que se lamenta e se contempla, ao mesmo tempo que se exorcisa. “Podes esquecer o meu nome, mas não o meu rosto”, diz logo no início Phon a Tong — outra provável história de amor que acaba possuída e se devora. No fundo, é disto que “Mekong Hotel” nos fala: de uma fratura exposta ainda tão visível mas que já não se consegue nomear. Da necessidade de continuar a viver num tempo em que os traumas do passado, ainda por sarar, continuam a descer o rio. A essa dor, deu “Joe” em “Mekong Hotel” uma melodia.
Francisco
Ferreira, Expresso, 13/6/15
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