CÃES ERRANTES | 24 NOVEMBRO | ESSUALG | 21H30


CÃES ERRANTES
Tsai Ming-Liang
Taiwan/França, 2014, 138’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título original: Jiao You
Realização: Tsai Ming-liang
Argumento: Peng Fei Song, Ming-liang Tsai, Cheng-Yu Tung
Montagem: Chen-Ching Lei
Fotografia: Pen-jung Liao, Ching-Hsin Lu, Woon-Chong Shong
Interpretação: Chen Shiang-chyi, Wu Jin-kai, Lu Yi-Ching, Lee Kang Sheng
Origem:Taiwan/França
Ano: 2013
Duração: 138’

PRÉMIOS
Festival de Veneza 2013 - Grande Prémio Especial do Júri


CRÍTICAS

Entre o realismo e o onirismo
Nome central na história do cinema de Taiwan, Tsai Ming-liang arrebatou, com "Cães Errantes", um Grande Prémio especial do júri no Festival de Veneza de 2013 — uma estreia para redescobrirmos uma obra que vive da procura de novas linguagens.
E se o cinema fosse, no essencial, uma arte de conhecer os outros, para lá de todas as diferenças, ou melhor, através de todas as diferenças? Por vezes, há filmes capazes de nos devolver a essa sensação primordial: através deles, das suas histórias e personagens, descobrimos mundos que estão para além das evidências do nosso mundo. "Cães Errantes", de Tsai Ming-liang, é um desses filmes: o retrato íntimo de um pai, com os seus dois filhos, tentando sobreviver nas margens da sociedade de Taiwan, mais concretamente em zonas degradadas da cidade de Taipei.
Vale a pena lembrar que Tsai Ming-liang é um nome fulcral na história da produção de Taiwan ao longo do último quarto de século, autor de títulos como "O Rio" (1997), "Adeus, Dragon Inn" (2003) ou "O Sabor da Melancia" (2005). E se é verdade que há no seu trabalho uma atenção constante aos que lutam por vencer as barreiras da pobreza, não é menos verdade que a sua obra está longe de poder reduzir-se a um convencional testemunho "social".
"Cães Errantes" pode ser uma excelente porta de entrada neste universo paradoxal, por assim dizer, entre o realismo mais cru e um onirismo sempre à beira do pesadelo. Filmando quase sempre através de planos de longuíssima (e fascinante) duração, Tsai Ming-liang apresenta-se, afinal, como um mestre do tempo e suas durações, num exercício em que a observação do real se torna inseparável de um verdadeiro tour de force dos actores.
No limite, aquilo que Tsai Ming-liang propõe é a participação cognitiva e sensorial numa experiência em que o cinema, reproduzindo o mundo, nos devolve também as suas zonas de opacidade e irracionalidade. Ou ainda: faz-nos falta um cinema que nos recorde que a arte de contar histórias através de imagens e sons não tem que obedecer a padrões "espectaculares" universais — "Cães Errantes" é um objecto que nos convoca, assim, para a singular energia de novas linguagens.
João Lopes, rtp.pt/cinemax


O plano inicial é logo emblemático, mesmo para quem não conheça o cinema de Tsai Ming-liang, malaio de etnia chinesa, cineasta em Taiwan: num quarto de paredes negras tracejadas a espessas rugas brancas, duas crianças dormem, numa enxerga no chão, enquanto uma mulher se penteia, vagarosa. Na banda sonora, sente-se o respirar compassado dos miúdos e o ruido abafado do pente nos cabelos. Da mulher não sabemos logo se será jovem ou madura, é uma das interrogações para a qual temos vagar, entre muitas outras que a duração do plano — quatro minutos em plano fixo — nos consente. Para a maior parte delas não teremos resposta, nem logo nem depois, nunca, mas ficamos a olhar, hipnotizados, porque a pujança de cada plano é compulsivamente absorvente. “Cães Errantes” é todo assim, em planos-sequência, às vezes a câmara planta-se inamovível, como se uma força telúrica a tivesse pregado ao chão, às vezes move-se, em morosas panorâmicas, perseguindo algo que nem sempre é definível. É que se, aqui e ali, o olhar do filme segue figuras humanas, também pode, mais além, roçar uma parede e indagar as suas fendas, as suas feridas. Figuras humanas, digo bem — não faz sentido chamar-lhes personagens, falta-lhes ossatura de identidade e de psicologia para poderem ter esse estatuto ficcional. Estão nas margens da sociedade e queremos tanto que passem de figuras a gente que fazemos, todo o tempo, um esforço para que transitem. E pomo-nos a arquitetar coisas. O que está no ecrã é de tal maneira organizado e estruturado que não nos passa pela cabeça confundir o que vemos com qualquer aleatoriedade. Cada imagem é forte — às vezes quase nos confins da provocação, como os pianos dos homens-cartaz, ao vento e à chuva, assentados numa encruzilhada de tráfego urbano, serão escravos, assombrações, insurrectos raivosos, à espera, à espreita, diante de todos? Olhamos, lá estão eles, cá estamos nós — há sentimentos difusos que circulam. Mas nunca saberemos, nunca teremos a certeza das significações e, mais, suspeitamos que ninguém as tem. Oscilamos entre a fascinação (meu Deus, como este filme é belo!) e a exasperação (meu Deus, como este filme é opaco!). “Cães Errantes” é como um quadro abstrato que interpela zona de conforto do espectador. 
Aqui há uns anos, em entrevista aqui no Expresso, Clara Ferreira Alves perguntou a Álvaro Cunhal se gostava de Picasso. Cunhal respondeu-lhe com sabedoria: “Gostar não é o melhor ponto de partida para apreciar uma obra de arte.” Lembrei-me disto a propósito deste filme de que não gosto, mas que admiro como trajeto entre o cinema tal como o conheço e outro lugar para o qual não quero ir. Porque, quando se abjura a narrativa com a premência que Tsai Ming-liang pratica, o que temos diante dos olhos pode ainda ser cinema? Ou algo que melhor se poderia definir, no domínio das artes plásticas, como instalação audiovisual? Responda quem tiver as definições e as fronteiras que balizam uma coisa e outra. 
Jorge Leitão Ramos, Expresso

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