POSTO AVANÇADO DO PROGRESSO
Hugo Vieira da Silva
Angola/Portugal, 2015, 120’, M/14
FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento - Hugo Vieira da Silva
Baseado no romance - de Joseph Conrad
Som - Pierre Tucat
Director de Fotografia - Fernando Lockett
Direcção de Arte - Isabel Branco
Montagem - Paulo Mil Homens
Interpretação - Nuno Lopes, Ivo Alexandre, David Caracol, Inês Helena, António Mpinda, Cleonise Malulo, Domingos Sita, Miguel Delfina (Pagé)
Ano - 2015
Origem - Angola, Portugal
Duração - 120´
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlim - Secção Fórum
NOTA DE INTENÇÕES
O desejo de fazer um filme em Angola era
antigo. Enquanto jovem a minha ideia de África, esfumava-se entre vagas imagens
do que nunca vi e esparsas memórias familiares, coloridas pela omnipresença das
mitologias coloniais que abundam em Portugal. Desde muito cedo que alimento a
suspeita de que essa vaga memória esconde questões fundamentais, facto que se
foi tornando cada vez mais claro desde que vivo fora de Portugal. África ainda
é um fantasma que assombra a minha geração, aquela cujo nascimento coincide com
a independência dos países africanos colonizados.
Foi neste contexto que acidentalmente me
cruzei com a short-story de Joseph Conrad. Encontrei no seu conto An
Outpost of Progress(1897) uma poderosa peça sobre o colonialismo,
sobre a questão da alteridade e sobre a relação ambígua entre o colonizador e o
colonizado. Quis reinventar esta história traduzindo-a para o contexto colonial
Português - que tem uma ligação muito antiga com esta região -, para explorar
uma narrativa possível da presença Portuguesa no Congo, deixando também antever
uma possível sintomatologia do colonialismo Português do final do século XIX.
O conto de Conrad apresenta-se como um
fortíssimo caleidescópio que refracta a complexidade da relação colonial,
relativizando os olhares e as posições das personagens. Não há bons nem maus,
há apenas relações de poder, transferências, inter-dependências e processos
miméticos a ocorrer.
Quis também pensar os antigos comerciantes
Portugueses do século XIX, como vagamente civilizadores, vagamente em linha com
as correntes internacionais da época, mas carregando o peso de 400 anos de
colonização, infectados pelas poderosas mitologias coloniais de um país antigo
e visto habitualmente como «pobre»: Os portugueses periféricos, muito pouco
cosmopolitas, simultaneamente arcaicos e ao mesmo tempo modernos.
Quis olhar para estes portugueses como corpos
masculinos, austeros, desejantes, angustiados, a arrastar o lastro das suas
resiliências, mas também extraordinariamente adaptativos e flexíveis,
distraídos palimpsestos desses 400 anos de história. Num dia clamando serem
colonialistas, no outro afirmando não o serem, numa espécie de esquizofrenia
que só pode ter raízes num processo profundo de repressão e de negação. Os
antecedentes dos nossos corpos, eventualmente do meu corpo também, já que me
fascina essa extraordinária hipótese de uma «história da fisicalidade, dos
corpos e dos gestos» imaginada por Aby Warburg.
Hugo
Vieira da Silva
ENTREVISTA A HUGO
VIEIRA DA SILVA
Posto Avançado do Progresso é um
filme sobre o colonialismo, sobre os aventureiros expedicionários em África no
séc. XIX ou sobre a missão civilizacional europeia?
O filme é sobretudo sobre o colonialismo
Português, que parcialmente reflecte a ideologia civilizacional Europeia da
época, mas que tem particularidades muito próprias até porque no século XIX a
presença Portuguesa em África contava já com cerca de 400 anos de existência.
No final século XIX começaram a ser importados para Portugal e para o seu espaço
colonial os novos modelos anglo-saxónicos relativos ao “progresso” e à
“civilização”, que no princípio eram um pouco estranhos ao tradicional modo de
presença colonial Portuguesa em África. As duas personagens principais deste
filme, João de Mattos e Sant’anna, representam essa geração de Portugueses para
quem, à luz dessa nova mentalidade, a África central se torna paulatinamente um
lugar de “incompreensão” e que por isso mesmo se encontram numa encruzilhada
identitária.
A minha versão é também sobre como a memória
das relações ancestrais entre Portugueses e Congoleses foi reprimida por esta
nova geração. Ora os recalcamentos (aliás bastante comuns na história
Portuguesa), favorecem a emergência de fantasmas. Neste filme são então os
fantasmas desse passado esquecido que emergem da floresta-tropical do Congo
para assombrarem os Portugueses. E os fantasmas dizem respeito a essa história
partilhada: À escravatura, à inquisição (que também existiu nos trópicos), à
idiossincrasia cultural congolesa e aos seus ícones... Enfim, um longo manto
amnésico que se perpetua até hoje.
Um dos aspectos mais
interessantes do filme é ele ser um filme de câmara, um huis-clos que
acontece em África, continente sobre o qual temos sempre uma ideia de grandes
espaços abertos, florestas intermináveis, ignorância dos limites territoriais.
Quer comentar?
Trabalhei na África central na zona tropical
e sub-tropical, ao longo do curso do Rio Congo, lugar de florestas
impenetráveis e labirínticas, habitadas pelos povos Kongo tanto a sul como a
norte, na sua complexidade e variedade étnica, espaço que no final do século
XIX foi retalhado pelas chamadas fronteiras de “régua e esquadro” do
colonialismo moderno. A África pré- “Conferência de Berlim” (1884) abunda em
reinos e potentados. Por exemplo, no início do século XIX, um sertanejo
português para comerciar com reis e chefes localizados no hinterland, partindo
habitualmente da costa e até chegar ao seu destino, teria de passar por dezenas
de fronteiras e pagar vários tributos a chefes locais. Esta forma de comércio
durou 400 anos e era a garantia da manutenção das estruturas de poder local. A
partir do final século XIX, com a chegada em força das novas potências
coloniais europeias e com a ocupação territorial efectiva, é imposta uma espécie
de “terraplanagem” física, social e cultural que faz desaparecer essa África.
Surge então nos países ocidentais a ideia de África como um espaço vazio, sem
limites, história ou memória, o “não-lugar”. Esta noção é por exemplo
romantizada por Conrad no Heart of Darkness / Coração das
Trevas, que, apesar de denunciar o colonialismo descreve o Congo
como uma espécie de espaço mítico, selvagem, insalubre e terrível. Por outro
lado, no Conrad mais arguto e seminal (na minha opinião o do An
Outpost of Progress / Posto Avançado do Progresso) a floresta é
então um pequeno palco onde os mal-entendidos e a ambiguidade da relação
colonial se encenam num jogo de esconde-esconde, de permanentes equívocos quase
burlescos e onde as personagens Africanas ganham finalmente subjectividade.
Quis acentuar essa dimensão teatral.
Interessou-me muito a forma como
explora o pensamento mágico, as cosmologias desta região do Congo. E um aspecto
muito bem tratado, a meu ver, é a impossibilidade do entendimento deste pensamento
por parte dos dois comerciantes portugueses. No caso deles, a irracionalidade
só lhes chega pela loucura. Está de acordo?
Sim, concordo. A este respeito há um livro
fascinante de um antropólogo Americano, Johannes Fabian, chamado Out of our
Minds — Reason and Madness in the Exploration of Central Africa, onde,
desconstruindo de forma sistemática os relatos de viagem e diários dos
exploradores, cientistas ou comerciantes europeus que deambulavam pela África
tropical no final século XIX, se prova que esses documentos são muitas vezes
idealizados ou imprecisos e que na maior parte do tempo estes Europeus estariam
num estado permanente de êxtase provocado pela doença, altas dosagens de
quinino, álcool, opiáceos e outras drogas. A hipótese, que acho muito pertinente,
é de que teria sido apenas nessa “zona” extática que os exploradores europeus
transcenderam as suas limitações psicológicas e sociais, conseguindo alguma
imersão nas culturas locais, o que teria proporcionado eventuais diálogos ou
esporádicas relações um pouco mais “horizontais” do que o sistema colonial
poderia supor. Diria que a loucura das minhas personagens é tanto gerada pela
impossibilidade de compreensão do outro como pela emergência do reprimido, mas
gostava de pensá-la como uma possibilidade de imersão cultural, provavelmente
só possível quando os corpos se esquecem de quem são...
Porque decidiu atribuir nomes da
nobreza europeia aos africanos e vesti-los com fatos da corte?
Na minha versão livre do An Outpost of Progress, ao contrário do original o presente intersecciona-se com o passado, anulando o tempo cronológico. Num mesmo plano, no tempo presente do filme, (finais do século XIX), ecoam fantasmaticamente personagens esquecidas desses 400 anos de relações. Havia desde quinhentos, um reino Congolês com uma estrutura social copiada ao detalhe do reino Português., como se no meio da selva tropical, no século XVI, se edificasse uma cópia de Portugal com reis e nobres negros de nomes e identidade portuguesas.
Na minha versão livre do An Outpost of Progress, ao contrário do original o presente intersecciona-se com o passado, anulando o tempo cronológico. Num mesmo plano, no tempo presente do filme, (finais do século XIX), ecoam fantasmaticamente personagens esquecidas desses 400 anos de relações. Havia desde quinhentos, um reino Congolês com uma estrutura social copiada ao detalhe do reino Português., como se no meio da selva tropical, no século XVI, se edificasse uma cópia de Portugal com reis e nobres negros de nomes e identidade portuguesas.
Entrevistado
por António Pinto Ribeiro
TRAILER
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