RIO GORGO
Maya Kosa e Sérgio da Costa
Portugal,
2015, 95’
PRESENÇA DOS REALIZADORES
FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Maya Kosa & Sérgio da Costa
Fotografia Sérgio da Costa
Som: Ricardo Leal, Bruno Moreira, Adrian Santos
Montagem: Telmo Churro, Sérgio da Costa e Maya Kosa
Origem: Portugal/Suiça
Ano: 2015
Duração: 95’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Doclisboa’15: Prémio Liscont para Melhor Filme da Competição Portuguesa
66º Festival de Cinema de Berlim – Forum [Alemanha, 2016]
[...] O Senhor Silva já vai poder ver em grande a sua
morte. E confirmar o que já sabia: como, nessa caminhada até à neve, foi
embalado pela empatia e afecto de Sérgio Costa e Maya Kosa, realizadores de Rio
Corgo, filme que se organiza para ser balada de acompanhamento da
caminhada final de uma personagem.
O que é muito poderoso neste filme [...] é a forma como se entrega, deslizando, sem saber o que está do outro lado da transfiguração.
O que é muito poderoso neste filme [...] é a forma como se entrega, deslizando, sem saber o que está do outro lado da transfiguração.
Jorge
Mourinha, Público
ENTREVISTA
Sérgio Costa e Maya Kosa
embalam afectuosamente a sua personagem a caminho da morte. E ela, o sr. Silva,
escreve os seus diálogos e morre. Vai poder ver-se agora a morrer no grande
ecrã. Nós também, no Doclisboa, onde Rio Corgo compete.
O senhor Silva já vai poder ver em grande a
sua morte. E confirmar o que já sabia: como, nessa caminhada até à neve, foi
embalado pela empatia e afecto de Sérgio Costa e Maya Kosa, realizadores de Rio Corgo, filme que se organiza para ser balada de acompanhamento da
caminhada final de uma personagem.
O que é muito poderoso neste filme – o mais destemido e inclassificável da Competição Nacional do Doclisboa (o festival que começou na quinta-feira) – é a forma como se entrega, deslizando, sem saber o que está do outro lado da transfiguração. Ao falar com Sérgio e com Maya sente-se que para eles continua a ser misterioso o que lhes aconteceu, o que fizeram e como fizeram, a partir do momento em que lhes apareceu numa aldeia do Douro o senhor Silva, também conhecido, e tolerado, como O Espanhol. Sentia uma morte em si.
O que é muito poderoso neste filme – o mais destemido e inclassificável da Competição Nacional do Doclisboa (o festival que começou na quinta-feira) – é a forma como se entrega, deslizando, sem saber o que está do outro lado da transfiguração. Ao falar com Sérgio e com Maya sente-se que para eles continua a ser misterioso o que lhes aconteceu, o que fizeram e como fizeram, a partir do momento em que lhes apareceu numa aldeia do Douro o senhor Silva, também conhecido, e tolerado, como O Espanhol. Sentia uma morte em si.
Já foi tudo, pastor, barbeiro, jardineiro,
palhaço, mágico, hoje diz já não ser nada. Da vocação de vagabundo, sobra-lhe a
energia para uma última viagem. E para deixar o seu legado a uma adolescente –
isto é, os seus fantasmas, os seus mortos (a mulher, Carolina) e as visões que
resultam dos seus distúrbios psíquicos. Ajudado pela balada que Sérgio e Maya
lhe tocam, Silva sai do seu corpo, faz-se personagem, escreve os seus diálogos
e morre. Ele vai ver tudo isso no filme.
Que é o quê? Responde Sérgio: “A questão de
dizer se é ficção ou documentário é sobretudo uma coisa prática quando estamos
a filmar: usamos essas palavras para denominar escolhas de trabalho, jargão
técnico. Mas nunca pensamos nas consequências de estarmos a fazer uma coisa ou
outra quando estamos a construir o filme e a dar-lhe forma final”. Ela
acrescenta: “Ficção, documentário, isso é nas conversas com a produtora, com a
televisão... Foi uma luta, para ter dinheiro para o projecto, ter de explicar o
que estávamos a fazer – só depois de termos acabado conseguimos explicar melhor
o caminho e ainda assim não está bem explicado. Para nós não há distinção, a
nossa aproximação é muito natural.”
Este não é um filme “sobre”, é
um filme “com”. Entre outros, feito com uma pessoa, o senhor Silva, que talvez
seja já uma personagem.
Sérgio da Costa (SC) — Não usaria a palavra “com”, diria que é uma adaptação de vida
dele. Não é “sobre”, de facto, mas usámos uma matéria que vem dele, a
biografia, o seu dia-a-dia, e tentámos transformá-la num filme, como uma
adaptação — de uma pessoa.
Maya Kosa (MK) — Foi um processo longo, com mudanças. Inicialmente tínhamos
recolhido muita informação sobre o sr. Silva e depois escrevemos um guião, como
numa ficção tradicional.
Como é que aquela pessoa vos
apareceu? Porque é da ordem da aparição: parece pertencer e simultaneamente não
pertencer àquela paisagem, àquele mundo.
MK — Estivemos a fazer um filme na aldeia de onde vem o Sérgio,
Pedralva, perto de Anadia. Ele foi mesmo uma aparição para nós. Vivia numa
aldeia ao lado. Começámos a partilhar o seu quotidiano, e ele pareceu logo
aberto para uma aventura em conjunto. O problema é que muda de aldeia de tempos
a tempos. Decidimos segui-lo. É como um saltimbanco, a dedicação dele é
divertir as pessoas, o objectivo da vida são os truques, as canções, como uma
missão.
Meses depois encontrámos uma pessoa
diferente, tinha mudado completamente. Já não era a pessoa alegre, era o
contrário, estava muito em baixo, sem força física. Por uma razão concreta:
iniciara um tratamento no hospital, no departamento de psiquiatria, começou a
receber injecções de psicotrópicos que matavam a sua folia. Já tínhamos a ideia
de desenvolver um projecto com o “outro” Silva, tínhamos de trabalhar agora com
a transformação. Durante uma repérage tornou-se óbvio que
tínhamos de filmar a personagem na natureza, isso era algo, por um lado,
completamente pictórico e por outro ligado à sua vida de vagabundo — andou a pé
por Portugal quando era pequeno. Mas a primeira coisa que filmámos foi ele na
neve morto, e isso foi determinante para o resto, para o argumento. Ele dizia:
“sinto uma morte em mim”. E nós transformámos isso numa morte mais imaginária,
mais espiritual.
A partir de certa altura
sente-se, é palpável, que
há uma caminhada. Como se aquela figura se preparasse para deixar um território
e chegar a outro.
MK — Sim, o plano final foi inspirado pelas fotos do [escritor
suíço] Robert Walser [1978-1956] morto na neve [encontrado morto no dia de
Natal de 1956, depois de ter desaparecido de um hospital psiquiátrico].
Queríamos alguém que tivesse fugido para morrer na natureza. Talvez isso seja
brutal, mas é essa a caminhada do filme. As crises que acontecem, não temos
explicação para elas, a não ser que se integram nessa caminhada.
Para fazer como fizeram, aquela
figura teve de se implicar com a sua intimidade. Porque está a participar na
ritualização de uma morte, que é a sua. Houve algum momento em que tivessem
dado conta de aquele corpo deixar de ser apenas o do sr. Silva para passar a
ser uma ficção? E que uma outra criatura apareceu no filme?
SC — Sim, houve um momento de mudança mas foi progressiva, tal como
as conversas, os encontros. Tudo isso levou ao aparecimento de uma personagem,
porque nós próprios começámos a recriar uma personagem diferente. É o nosso
pequeno Frankenstein, uma figura construída por várias fontes, ele e o nosso
imaginário.
MK — Durante a rodagem, que durou dois meses e meio com paragem
a meio para escrever e entrevistá-lo de novo e introduzir a personagem da
rapariga [a adolescente Ana], que não existia, nem estávamos conscientes do que
iria ser o dia seguinte. Foi um processo intuitivo. Estávamos com medo de ver o
que iríamos encontrar na rodagem, até porque a certa altura as crises dele
começaram a estruturar a narrativa.
Há momentos em que ele parece
estar a olhar para si próprio, como se fosse exterior ao seu corpo.
MK — Esse era o sentimento dele, não estava bem, havia dias em que era mais presente, outros em que era difícil trabalhar com ele. Era sempre uma luta, tínhamos sempre de falar muito. Não sei qual a consciência dele. A sequência com a mulher morta, que lhe aparece, e que é interpretada pela nossa assistente de realização, corresponde a visões verdadeiras, dele, que recriámos.
MK — Esse era o sentimento dele, não estava bem, havia dias em que era mais presente, outros em que era difícil trabalhar com ele. Era sempre uma luta, tínhamos sempre de falar muito. Não sei qual a consciência dele. A sequência com a mulher morta, que lhe aparece, e que é interpretada pela nossa assistente de realização, corresponde a visões verdadeiras, dele, que recriámos.
Houve
algum momento em que ele perguntou: para quê isto?
MK — Foi
de uma dedicação incrível. Sempre disse que o fazia para nós. Sempre teve a
coisa da representação, era uma forma de se divertir connosco. Escrevemos
diálogos, perguntámos o que ele diria, ele encontrava sempre fórmulas melhores
do que as nossas. Às vezes uma piada transformava-se numa cena. Um dia
perguntei-lhe como é que ele lavava a roupa, ele respondeu, irritado, “Como
lavo a roupa? Com os pés”. E eu disse-lhe: “Então o sr. Silva vai fazer isso no
filme”.
É um
filme centrado numa personagem, mas o título desloca-se para a geografia. A
mapear um território onde tudo, o mundo, pode acontecer — como no Twin
Peaks" de David Lynch.
SC — Sim, durante muito tempo O Mágico foi o título de trabalho. Mas sempre achámos que era errado incidir o foco na personagem. Não queríamos fechar o espectador. Por isso Rio Corgo — que até é ao lado de onde filmámos. Tem a ver com o que disse: abrir para colocar todo o mundo ali.
MK — As crises dele tinham sempre a ver com a água, na banheira, no rio. Era sempre um elemento forte.
SC — Sim, durante muito tempo O Mágico foi o título de trabalho. Mas sempre achámos que era errado incidir o foco na personagem. Não queríamos fechar o espectador. Por isso Rio Corgo — que até é ao lado de onde filmámos. Tem a ver com o que disse: abrir para colocar todo o mundo ali.
MK — As crises dele tinham sempre a ver com a água, na banheira, no rio. Era sempre um elemento forte.
Que
relação se estabelece entre essa figura e os habitantes da aldeia? O filme
parece organizar-se para o proteger. Há uma certa altura em que Rio
Corgo se
torna balada para o acompanhar na caminhada final — músicos dentro de um carro
a tocarem e a cantarem para ele.
SC — Pode
parecer estranho, mas é difícil uma resposta clara. Cada vez que vejo a
caminhada final, com aqueles músicos a tocarem, sinto uma verdade: toca-me a
liberdade daquela figura quando está a caminhar.
MK — Todas as pessoas que aparecem no filme pertencem à mesma família. E trata-se da única família que aceita a presença do sr. Silva. Ele chegou a esta aldeia, encontrou uma casa, mas toda a gente tem preconceitos em relação a ele, porque ele bebe, porque se veste daquela maneira. Quando nós chegámos à aldeia as pessoas olharam-nos da mesma maneira — ainda por cima falávamos com sotaque esquisito [Sérgio e Maya vivem em Genebra, Suíça, onde se formaram em cinema pela Escola Superior de Arte e Design, em 2010, ano em que tiveram Miguel Gomes como professor; são filhos de imigrantes portugueses, ele, e polacos, ela]. Mas essa família abriu-se a nós: a Ana, rapariga que aparece no filme, a avó, o pai, que toca concertina, e a mãe, que aparece numa das cenas do hospital. Ficaram do nosso lado, e aproveitámos quem estava disposto para trabalhar connosco.
MK — Todas as pessoas que aparecem no filme pertencem à mesma família. E trata-se da única família que aceita a presença do sr. Silva. Ele chegou a esta aldeia, encontrou uma casa, mas toda a gente tem preconceitos em relação a ele, porque ele bebe, porque se veste daquela maneira. Quando nós chegámos à aldeia as pessoas olharam-nos da mesma maneira — ainda por cima falávamos com sotaque esquisito [Sérgio e Maya vivem em Genebra, Suíça, onde se formaram em cinema pela Escola Superior de Arte e Design, em 2010, ano em que tiveram Miguel Gomes como professor; são filhos de imigrantes portugueses, ele, e polacos, ela]. Mas essa família abriu-se a nós: a Ana, rapariga que aparece no filme, a avó, o pai, que toca concertina, e a mãe, que aparece numa das cenas do hospital. Ficaram do nosso lado, e aproveitámos quem estava disposto para trabalhar connosco.
As
canções estavam connosco e com o filme desde o primeiro momento em que o
conhecemos, porque ele sempre teve uma ligação forte com a música. A sequência
de que fala, a do carro, foi um acaso: fomos filmar a uma cascata, estavam ali
uns rapazes a tocar guitarra e dissemos-lhes que os íamos filmar.
E é
aí que o filme parece tomar posição em relação à personagem — e com isso vocês
posionam-se afectivamente.
SC — Sim,
é uma coisa afectiva. Esta música tocada no carro é uma sequência que nasce da
nossa empatia. De maneira muito intuitiva resolvemos utilizar essa canção para
ele caminhar. Durante toda a rodagem estivemos numa zona de empatia e de
fascinação.
Se
alguém vos perguntar o que é Rio
Corgo, o que dirão?
MK — É
uma pergunta que nos vai perseguir...
SC — Arranjei
hoje uma resposta: é um filme sobre a vagabundagem e a imaginação como espaços
de liberdade. É a única que consigo: imaginação do senhor Silva e a nossa
também.
MK — É um filme construído como uma
sucessão de eventos prosaicos que estão na antecâmara da morte.
A
partir de certo momento torna-se clara a sucessão de actos e gestos com força
ritualística.
MK — É também uma história de transmissão e de iniciação. A rapariga recebe dele uma herança. Ele sente que desaparece e começa a contar a história dele, da infância, da mulher que morreu, das visões, e ela é a pessoa que o vai substituir quando morrer.
MK — É também uma história de transmissão e de iniciação. A rapariga recebe dele uma herança. Ele sente que desaparece e começa a contar a história dele, da infância, da mulher que morreu, das visões, e ela é a pessoa que o vai substituir quando morrer.
SC —
Ele não tinha muito interesse em saber o que estávamos a fazer. Tentámos
explicar, e o que era o seu papel, ele queria era estar na acção, fazer as
coisas, não teorizar sobre isso.
MK — Durante a rodagem queríamos mostrar-lhe o que tínhamos filmado, mas ele não olhava, dizia que queria ver em grande.
MK — Durante a rodagem queríamos mostrar-lhe o que tínhamos filmado, mas ele não olhava, dizia que queria ver em grande.
Vasco Câmara, Público
Sem comentários:
Enviar um comentário