SE AS MONTANHAS SE AFASTAM | 22 NOV | 21H30 | IPDJ



SE AS MONTANHAS SE AFASTAM
 Jia Zhang-Ke
 China/França/Japão, 2015, 126', M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: Shan he gu ren
Título Internacional: Mountains May Depart
Realização e Argumento : Jia Zhang-Ke
Director de Fotografia: Yu Lik Wai
Montagem: Matthieu Laclau Som Zhang Yang
Música: Yoshihiro Hanno
Interpretação: Zhao Tao, Zhang Yi, Liang Jingdong, Dong Zijian
Origem: China/França/Japão
Ano: 2015
Duração:126'

FESTIVAIS
Festival de Cannes - Selecção Oficial
 




CRÍTICAS

Go West, cantam os Pet Shop Boys no início do filme de Jia Zhang-ke, canção que, aliás, voltará mais tarde à banda sonora, a sua euforia então já transformada numa qualidade, se não elegíaca, pelo menos evocativa, marcando literalmente outro tempo ou a memória de outro tempo, num filme que, como o de Hou Hsiao-Hsien, se podia chamar Três Tempos.
O uso das canções (e há outras em Se as Montanhas se Afastam), com este exacto propósito de as converter em matéria “fantasmática”, o lastro de um tempo perdido a insinuar-se na banda de som, não é inédito em Jia, e bem pelo contrário é elemento fulcral de vários filmes seus. Mas aqui, e tal como no precedente Um Toque de Pecado trabalhava a recordação do cinema de género (nesse caso o filme de artes marciais), Jia aproxima-se do melodrama como nunca o tinha tentado; e como na melhor tradição do melodrama o “significado” das coisas (canções, objectos), modula-se, flutua, desvia-se, constroi-se - e o Go West do fim terá, na mente do espectador, um peso bem diferente do da sua audição inicial.
Claro que há esta ironia, “ir para o Oeste”, e não é obviamente inocente, como não o é o facto de haver uma personagem (uma criança) chamada Dollar. O paradoxo crucial ao filme de Jia, mais uma observação sobre as rápidas transformações da sociedade chinesa e a sua particular sobreposição de comunismo e capitalismo, está no tratamento, ao mesmo tempo físico e simbólico, do espaço. Os três episódios do filme (passados em 1999, por altura de Plataforma, o filme de Jia com que este mais explicitamente se parece relacionar, em 2014 e em 2025, respectivamente) são assinalados por uma mudança no formato da imagem, do “quase quadrado” do primeiro tempo ao “muito largo” do derradeiro; seria um simples “truque”, mais ou menos inteligente (até por reproduzir a tendência para o “alargamento” da imagem que tem sido a do cinema e não só), se Jia não o tratasse ao contrário, e a imagem, quanto mais larga, não parecesse também cada vez mais comprimida, os exteriores a darem lugar aos interiores, os céus limpos a transfomarem-se em céus escuros, as personagens cada vez menos móveis, a abundância espacial uma mera ilusão que reflecte também a separação de todos eles, a mulher, os dois homens, a criança.
Jia não insiste especialmente, ou explicitamente, nisto - funciona como um “clima”, uma sugestão, quase subliminarmente a infiltrar-se no espírito do espectador e na disposição emocional com que recebe a história contada pelo realizador. História essa que, independentemente das questões narrativas propriamente ditas e das alusões que nela são contidas, é sobretudo, e como que revendo boa parte da obra de Jia, uma colecção de detalhes e notações. Da euforia da chegada de um novo século, no primeiro episódio, onde a manifestação folclórica e popular da “velha China”, ainda prevalece, a uma evolução à beira da “distopia” onde o novo-riquismo tecnológico, entre outros aspectos, vai avançando, como se fosse a visão distorcida de uma “modernidade” que chega por esmagamento (tal como a imagem se vai esmagando). Este carácter algo “remissivo” de Se as Montanhas se Afastam, aliado à relativa bonomia da sua colagem ao melodrama e a algumas das suas fórmulas clássicas (o triângulo amoroso, de onde tudo parte), tem porventura contribuído para uma recepção internacional um tanto tépida. Que nos parece imerecida: não será outro Plataforma, nem sequer outro Natureza Morta, mas é um belíssimo filme, que se inscreve na obra de Jia com inteira coerência.





O novo filme de Jia Zhang-Ke começa como um conto contemporâneo, cuidando simultaneamente de forma estilizada e fisicamente inscrita numa realidade material as gigantescas mutações do seu país. Com efeito, tratar-se-á de um conto, mas de um conto tão desesperado como sentimental, onde o maior cineasta chinês reiventa a sua maneira de mostrar e de narrar, em total coerência com o que fizera anteriormente (sendo Xiao-wu, Plataforma, O mundo, Stll Life – Natureaz Morta, China – Um Toque de Pecado os marcos mais importantes desse percurso)mas explorando novas tonalidades. [...]
O destino de Tao, há quinze anos, no presente, e dentro de quinze anos, o que será do seu marido, do filho de ambos, do pretendente rejeitado e de uma outra mulher chinesa com um percurso totalmente diverso mas totalmente síncrono, será necessário atravessar três épocas para o saber. Será uma viagem feita a diferentes velocidades. A velocidades diversas como os comboios, TGV ou comboios lentos, que cruzam uma paisagem tanto em rápida mutação como imutável, e uma sociedade estratificada em camadas de desigualdade estonteante.[...]
O filme de Jia Zhang-Ke é uma obra de grande profundidade e de uma grande inquietude. Interroga-se sobre o futuro dos valores essenciais que funda, as relações humanas, no contexto da transformação fulgurante da economia e dos modos de vida. Questiona ao mesmo tempo a contradição aberta, dinâmica, entre duas concepções do tempo.
Abordando a destruturação-recomposição brutal de uma sociedade milenar que está todavia longe de desaparecer completamente e que envolve mil e quinhentos milhões de seres humanos (se nos limitarmos aos chineses, mas aquilo de que aqui se trata diz também respeito, de modo diverso, a inúmeras outras partes do mundo), Jia Zhang-Ke revela um verdadeiro génio na capacidade de tratar e partilhar estes desafios infinitamente massivos e complexos através dos meios mais simples: um molho de chaves, um prato de massa, um cão de companhia.
Se as Montanhas Se Afastam é um melodrama familiar, que mobiliza os recursos do drama clássico como nunca antes o realizador o havia feito. Isto traduz-se numa relação com a ficção e com o romance que constitui novidade na obra de Jia, uma relação que é particularmente visível na figura da actriz de todos os seus filmes desde há quinze anos, Zhao Tao – de presença e beleza sensível e desconcertante nas três idades que lhe atribui o argumento, e que nos faz descobrir certos dotes de uma actriz até então não revelados.
Muito emocionante (e, por vezes, muito divertido), este filme que interroga aquilo que se mantém e aquilo que se pões em movimento, para o melhor e para o pior, traduz também a manutenção da exigência do grande realizador Jia Zhang-Ke e o seu constante movimento, como artista e como cidadão.
Jean-Michel Frodon, Slate.fr/Medeia Magazine
[trad. Inês Viana]

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