SE AS MONTANHAS SE AFASTAM
Jia
Zhang-Ke
China/França/Japão, 2015, 126',
M/12
FICHA TÉCNICA
Título Original: Shan he gu ren
Título Internacional: Mountains
May Depart
Realização e Argumento : Jia Zhang-Ke
Director de Fotografia: Yu Lik Wai
Montagem: Matthieu Laclau Som Zhang Yang
Música: Yoshihiro Hanno
Director de Fotografia: Yu Lik Wai
Montagem: Matthieu Laclau Som Zhang Yang
Música: Yoshihiro Hanno
Interpretação: Zhao Tao, Zhang Yi, Liang Jingdong, Dong Zijian
Origem: China/França/Japão
Ano: 2015
Duração:126'
FESTIVAIS
Festival de
Cannes - Selecção Oficial
CRÍTICAS
Go West,
cantam os Pet Shop Boys no início do filme de Jia Zhang-ke, canção que, aliás,
voltará mais tarde à banda sonora, a sua euforia então já transformada numa
qualidade, se não elegíaca, pelo menos evocativa, marcando literalmente outro
tempo ou a memória de outro tempo, num filme que, como o de Hou Hsiao-Hsien, se
podia chamar Três Tempos.
O uso
das canções (e há outras em Se
as Montanhas se Afastam), com este exacto propósito de as converter
em matéria “fantasmática”, o lastro de um tempo perdido a insinuar-se na banda
de som, não é inédito em Jia, e bem pelo contrário é elemento fulcral de vários
filmes seus. Mas aqui, e tal como no precedente Um Toque de Pecado trabalhava a recordação do
cinema de género (nesse caso o filme de artes marciais), Jia aproxima-se do
melodrama como nunca o tinha tentado; e como na melhor tradição do melodrama o
“significado” das coisas (canções, objectos), modula-se, flutua, desvia-se,
constroi-se - e o Go West
do fim terá, na mente do espectador, um peso bem diferente do da sua audição
inicial.
Claro
que há esta ironia, “ir para o Oeste”, e não é obviamente inocente, como não o
é o facto de haver uma personagem (uma criança) chamada Dollar. O paradoxo
crucial ao filme de Jia, mais uma observação sobre as rápidas transformações da
sociedade chinesa e a sua particular sobreposição de comunismo e capitalismo,
está no tratamento, ao mesmo tempo físico e simbólico, do espaço. Os três
episódios do filme (passados em 1999, por altura de Plataforma, o filme de Jia
com que este mais explicitamente se parece relacionar, em 2014 e em 2025,
respectivamente) são assinalados por uma mudança no formato da imagem, do
“quase quadrado” do primeiro tempo ao “muito largo” do derradeiro; seria um
simples “truque”, mais ou menos inteligente (até por reproduzir a tendência
para o “alargamento” da imagem que tem sido a do cinema e não só), se Jia não o
tratasse ao contrário, e a imagem, quanto mais larga, não parecesse também cada
vez mais comprimida, os exteriores a darem lugar aos interiores, os céus limpos
a transfomarem-se em céus escuros, as personagens cada vez menos móveis, a
abundância espacial uma mera ilusão que reflecte também a separação de todos
eles, a mulher, os dois homens, a criança.
Jia não
insiste especialmente, ou explicitamente, nisto - funciona como um “clima”, uma
sugestão, quase subliminarmente a infiltrar-se no espírito do espectador e na
disposição emocional com que recebe a história contada pelo realizador.
História essa que, independentemente das questões narrativas propriamente ditas
e das alusões que nela são contidas, é sobretudo, e como que revendo boa parte
da obra de Jia, uma colecção de detalhes e notações. Da euforia da chegada de
um novo século, no primeiro episódio, onde a manifestação folclórica e popular
da “velha China”, ainda prevalece, a uma evolução à beira da “distopia” onde o
novo-riquismo tecnológico, entre outros aspectos, vai avançando, como se fosse
a visão distorcida de uma “modernidade” que chega por esmagamento (tal como a
imagem se vai esmagando). Este carácter algo “remissivo” de Se as Montanhas se Afastam,
aliado à relativa bonomia da sua colagem ao melodrama e a algumas das suas
fórmulas clássicas (o triângulo amoroso, de onde tudo parte), tem porventura
contribuído para uma recepção internacional um tanto tépida. Que nos parece
imerecida: não será outro Plataforma,
nem sequer outro Natureza
Morta, mas é um belíssimo filme, que se inscreve na obra de Jia com
inteira coerência.
O novo filme
de Jia Zhang-Ke começa como um conto contemporâneo, cuidando simultaneamente de
forma estilizada e fisicamente inscrita numa realidade material as gigantescas
mutações do seu país. Com efeito, tratar-se-á de um conto, mas de um conto tão
desesperado como sentimental, onde o maior cineasta chinês reiventa a sua
maneira de mostrar e de narrar, em total coerência com o que fizera
anteriormente (sendo Xiao-wu, Plataforma,
O mundo, Stll Life – Natureaz Morta, China – Um Toque de Pecado os marcos
mais importantes desse percurso)mas explorando novas tonalidades. [...]
O destino de
Tao, há quinze anos, no presente, e dentro de quinze anos, o que será do seu
marido, do filho de ambos, do pretendente rejeitado e de uma outra mulher
chinesa com um percurso totalmente diverso mas totalmente síncrono, será
necessário atravessar três épocas para o saber. Será uma viagem feita a
diferentes velocidades. A velocidades diversas como os comboios, TGV ou
comboios lentos, que cruzam uma paisagem tanto em rápida mutação como imutável,
e uma sociedade estratificada em camadas de desigualdade estonteante.[...]
O filme de
Jia Zhang-Ke é uma obra de grande profundidade e de uma grande inquietude.
Interroga-se sobre o futuro dos valores essenciais que funda, as relações
humanas, no contexto da transformação fulgurante da economia e dos modos de
vida. Questiona ao mesmo tempo a contradição aberta, dinâmica, entre duas
concepções do tempo.
Abordando a
destruturação-recomposição brutal de uma sociedade milenar que está todavia
longe de desaparecer completamente e que envolve mil e quinhentos milhões de
seres humanos (se nos limitarmos aos chineses, mas aquilo de que aqui se trata
diz também respeito, de modo diverso, a inúmeras outras partes do mundo), Jia
Zhang-Ke revela um verdadeiro génio na capacidade de tratar e partilhar estes
desafios infinitamente massivos e complexos através dos meios mais simples: um
molho de chaves, um prato de massa, um cão de companhia.
Se as Montanhas Se Afastam é um
melodrama familiar, que mobiliza os recursos do drama clássico como nunca antes
o realizador o havia feito. Isto traduz-se numa relação com a ficção e com o
romance que constitui novidade na obra de Jia, uma relação que é
particularmente visível na figura da actriz de todos os seus filmes desde há
quinze anos, Zhao Tao – de presença e beleza sensível e desconcertante nas três
idades que lhe atribui o argumento, e que nos faz descobrir certos dotes de uma
actriz até então não revelados.
Muito
emocionante (e, por vezes, muito divertido), este filme que interroga aquilo
que se mantém e aquilo que se pões em movimento, para o melhor e para o pior,
traduz também a manutenção da exigência do grande realizador Jia Zhang-Ke e o
seu constante movimento, como artista e como cidadão.
Jean-Michel Frodon, Slate.fr/Medeia Magazine
[trad. Inês
Viana]
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