CEMITÉRIO DO ESPLENDOR | 13 DEZ | 21H30 | IPDJ



CEMITÉRIO DO ESPLENDOR
 Apichatpong Weerasethakul
 TH/RU/DE/FR/MY/KR/MX/EUA/NO, 2015,122', M/14

FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Apichatpong Weerasethakul
Montagem: Lee Chatametikool
Fotografia: Diego Garcia
Som: Akritchalerm Kalayanamitr
Interpretação: Jenjira Pongpas Widner, Banlop Lomnoi, Jarinpattra Rueangram
Origem: Tailândia/Reino Unido/Alemanha/França/Malásia/Coreia do Sul/México/EUA/Noruega
Ano: 2015
Duração: 122'

FESTIVAIS
Festival de Cannes - Un Certain Regard 




CRÍTICAS


Oitava longa do tailandês Apichatpong Weerasethakul, “Cemitério do Esplendor” tem por centro um hospital de campanha, instalado numa antiga escola da cidade de Khon Kaen. Nas suas camas, jazem, imóveis, os corpos de um grupo de soldados que — a fazer fé nas palavras de uma enfermeira — padecem de uma misteriosa doença (outra tropical malady...) que os impede de permanecerem acordados por mais de algumas horas. Quem os observa é a personagem cujos passos seguiremos: a de uma velha enfermeira voluntária (Jenjira Pongpas, presença habitual nos filmes de Apichatpong), que depressa concentrará a sua atenção sobre um jovem soldado (Banlop Lomnoi) que não recebe visitas da família.
Entre estas duas figuras, nascerá uma relação de amizade intermitente, que tomará literalmente lugar ‘entre comas’, isto é: nos intervalos das sucessivas síncopes do soldado. De maneira a coreografá-la, o cineasta lançará mão de uma realização construída à base de planos fixos, que faz questão de manter as suas distâncias em relação às personagens (que serão quase sempre enquadradas de pé, em diálogo com o espaço físico que habitam). À letargia da câmara (e à duração lassa, distendida, que ela promove) responderá uma narrativa desprovida de acontecimentos notáveis que, à imagem de todas aquelas que Apichatpong nos ofereceu no passado, tratará de fundir o quotidiano com o fantástico. Não se estranhe, pois, que os médicos se socorram de tubos de néon fluorescentes (que, à noite, fazem com que o hospital se assemelhe a uma nave espacial) para proporcionar sonhos tranquilos aos soldados adormecidos. E não se estranhe, ainda, que surja no hospital uma jovem médium (alegadamente cobiçada pelo FBI), que tem a seu cargo a tarefa de estabelecer contacto com os espíritos dos soldados, permitindo-lhes dialogar por interposta pessoa com aqueles que os vêm visitar. Estamos em presença de uma personagem que, como o próprio filme (e, já agora, como todo a obra de
Apichatpong), está chamando a si a tarefa de religar aquilo que a lógica académica separa. Entenda-se: ontem como hoje, aquilo que mais interessa ao cineasta é a possibilidade de dinamitar os dualismos que entravam a liberdade da representação — seja ele o da ficção e do documentário (mandado às urtigas em “Mysterious Object at Noon”) seja ele o da vida e da morte (mandado às urtigas em “O Tio Boonmee...”). É também por isso que “Cemitério do Esplendor” cria um epicentro narrativo (o quarto do hospital) que opera como um permanente ponto de passagem entre o presente e o passado, a realidade e o sonho: territórios contraditórios que, aqui, acabarão por se confundir em absoluto. A sequência em que a enfermeira e o soldado jantam juntos e vão ao cinema (com Apichatpong a aproveitar o ensejo para enxertar um delirante filme dentro do filme) corresponde a um acontecimento real ou a um simples sonho do soldado? Eis uma questão à qual o cineasta se recusa a responder, porque sabe bem que o cinema não está, nem do lado da realidade nem do lado do sonho: ele está — como sempre esteve — do lado daqueles que vivem a realidade como um sonho e o sonho como uma realidade.
Vasco Baptista Marques, Expresso







Muitos são os “esplendores” deste “cemitério” para o espectador que nele se aventure.
Depois de Mekong Hotel, filme de menor fôlego que era um acerto de contas, da parte de Apichatpong, com um “fantasma” pessoal (a retoma de um filme que principiou nos anos 2000 mas cuja produção abortou), Cemitério do Esplendor é a verdadeira sequência de O Tio Boonmee que Se Lembra das Suas Vidas Anteriores, o filme de 2010 que consagrou Apichatpong e que o introduziu no circuito comercial português. Sendo diferente desse filme, não deixa de conter ecos dele e de outros do autor, como Sindromas e um Século (o final, com um número de dança fitness num jardim público, é quase auto-citação). Mas é ainda uma questão de “vidas anteriores”, e de “objectos misteriosos ao meio-dia” (titulo da primeira longa de Apichatpong), como naquele plano de céu, sol e nuvens em que o enquadramento é invadido pelo que parece uma enorme amiba – num filme cheio de “bestiário”, de cães a dinossauros petrificados, passando por uma galinha que só tem par na que Oliveira fazia entrar em Belle Toujours. É fácil perdermo-nos em pormenores deste tipo a propósito de Cemitério do Esplendor, filme riquíssimo em detalhes, mais sublinhados ou discretos, visuais, sonoros ou dialogados, numa explosão de pistas que levam o espectador para várias direcções, e que corresponde à idiossincrasia de Apichatpong – onde para lá do semblante de “austeridade” tudo funciona sempre em surpresa, e cada plano guarda uma porta aberta para a entrada do imprevisível e do surpreendente (inclusive do humor, Cemitério do Esplendor é também um filme muito divertido).
Essa comunicação entre elementos díspares está próxima do essencial. Cemitério do Esplendor é mais uma vez um filme sobre um tempo presente onde se acumulam os tempos passados e os tempos míticos, uma grande arqueologia da realidade e do imaginário fundidos um no outro numa união inextricável. Tudo se acumula, os tempos existem “por cima” uns dos outros – como a escola-hospital que é o espaço central do filme (e onde dormem os soldados acometidos por uma “tropical malady” que os deixa em estado cataléptico), construída sobre um antigo cemitério de reis, que continuam a sugar a energia dos soldados para as suas próprias batalhas. Ou como aquele passeio pelo bosque que é um palácio “imaginário” e que se conclui com um encontro com uma expressão palpável de uma memória dolorosa recente, o que parece um abrigo anti-bombardeamento, “habitado” por figuras humanas como um presépio, e que a protagonista associa às suas recordações do “bombardeamento do Laos”. Mas nessa sequência, outras figuras-estátua – o par de amantes que tem o espelho de um par de esqueletos na mesma posição – indicia a associação harmoniosa de contrários (harmoniosa mesmo quando é dramática) que é uma das chaves do cinema de Apichatpong. Ou mesmo quando não é dramática e é só modernamente “mundana” – já falámos do fitness, mas que outro filme associa espíritos do outro mundo a uma longa cena de demonstração publicitária de um creme de beleza (de características olfactivas peculiares)? Muitos são os “esplendores” deste “cemitério”, muitas são as surpresas guardadas para o espectador que nele se aventure.
Luís Miguel Oliveira, Público


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