JANIS: LITTLE GIRL BLUE
Amy Berg, EUA, 2015, 103’, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização: Amy Berg
Montagem: Mark Harrison, Maya Hawke, Billy McMillin, Garret Price, Brendan Walsh
Música: Joel Shearer
Fotografia: Francesco Carrozzini, Jenna Rosher
Com: Cat Power, Janis Joplin, Peter Albin
Origem: EUA
Ano: 2016
Duração: 103’
TRAILER
CRÍTICA
Tem
sido difícil arrancar Janis Joplin à caricatura de uns anos 1960 de excessos e
libertinagem. Little Girl Blue procura além do mito para nos mostrar o
que estava por trás daquela voz tão poderosa, tão eloquente, tão sofrida.
[...]
Criado
ao longo de quase uma década por Amy J. Berg (Deliver Us From Evil) e contando com a
colaboração próxima da família de Joplin, em especial a sua irmã e irmão mais
novos, o documentário mergulha como nunca na intimidade de Janis Joplin,
naquilo que era a mulher por trás do mito (falamos de cinema ou televisão,
esclareça-se, não de biografias literárias). Além disso, e contrariamente ao
que é habitual num documentário supervisionado pela família do biografado, não
há em Janis: Little Girl Blue a
tentação de fazer hagiografia e esconder os elementos mais sensíveis do seu
percurso e personalidade. É certo que estamos perante o corriqueiro formato
documental em que depoimentos alternam com imagens de arquivo, mas são muitas e
raramente vistas essas imagens [...], bem como as cartas que nos revelam quem
era e que pensava Janis Joplin fora do palco e do estúdio. E isso, falando de
Janis Joplin, a desconhecida Janis Joplin, é precioso.
Ouvimo-la:
“Querida família, consegui passar o meu – ufff – 27º aniversário sem o sentir
verdadeiramente… Estive a olhar em volta e reparei numa coisa… de quanto
precisas realmente. A necessidade de ser amada e a necessidade de te orgulhares
de ti própria. E acho a ambição é isso – não é uma procura depravada por um
posto ou dinheiro. Talvez seja amor. Muito amor!”.
Janis:
Little Girl Blue é aquela história. A de uma cantora
arrebatadora que se entregava sem restrições à música que cantava – “eu sei
perfeitamente o que significa cada palavra desta canção”, diz à banda que tenta
corrigi-la em Summertime.
A de uma performer que ocupava o palco como um furacão, ou seja, incontrolável
por definição. A de uma pessoa que cresceu em Port Arthur, Texas, ou seja, no
sul racista, misógino e conservador do Sul dos Estados Unidos recusando
conformar-se e pagando por isso enquanto vítima de ostracismo e bullying cruel.
A mulher que contrariou o que se esperava de uma mulher no seu tempo – “se te
defines como alguém que nasceu para lavar pratos, esse é um problema teu”,
respondeu à imprensa que a confrontava com as críticas à forma aberta como
vivia a sua sexualidade – e que acabaria por encontrar lugar para si entre a
comunidade de músicos e artistas de São Francisco, os “esquisitos” ocupados a
serem criativos e a planearem “mudar o mundo”. Parece uma grande ambição, mas é
coisa pouca. Janis Joplin sabia viver no palco, mas não sabia o que fazer
quando ele lhe desaparecia e ficava sozinho consigo mesma. “Meu deus, quero tão
desesperadamente ser feliz”, ouvimo-la novamente – isso era bem mais difícil
que mudar o mundo.
Janis
Joplin é aquela que raramente vimos para além da caricatura. A cantora de
vozeirão imponente e vida vivida no limite, entre libertinagem sexual, drogaria
a rodos e copo sempre cheio de generosas doses de whisky – e foi isso, mas não enquanto poster sem vida. A
mulher que representou como nenhuma outra a mitologia dos anos 1960: e depois
sai uma versão de Mercedes
Benz, canção paródia sem importância alguma, porventura e menos
relevante que alguma vez gravou, interpretada por uma qualquer concorrente a um
qualquer concurso de talentos televisivo, obviamente enfiada em calças à
boca-de-sino, camisa de cores garridas, muitos colares ao pescoço e penas na
cabeça.
Janis
Joplin desapareceu cedo demais, aos 27 anos, em Outubro de 1970. Deixou quatro
álbuns, Big Brother & The
Holding Company e Cheap
Thrills, ancorados no rock psicadélico de São Francisco, I Got Dem Ol’ Kozmic Blues Again Mama!,
entre a soul, o blues e o funk, e Pearl,
o seu álbum mais celebrado, síntese inspirada de todas as suas referências.
Mas
Janis Joplin não desapareceu mais cedo que os outros membros do dito clube dos
27, como Brian Jones, afogado numa piscina um ano antes, Jimi Hendrix,
desaparecido em Setembro do mesmo ano, ou Jim Morrison, traído pelo coração
numa banheira em Paris, em 1971. Como Kurt Cobain, 27 anos quando disparou uma
caçadeira sobre si mesmo em 1994, ou Amy Winehouse, que tinha a mesma idade
quando o corpo cedeu por fim em 2011. Joplin, porém, mantém-se em grande parte
desconhecida.
A posteridade não a tratou da mesma forma, mesmo tendo
em conta que rivalizava em popularidade e respeito crítico com os seus contemporâneos
desaparecidos precocemente. Talvez o explique o facto de, ao contrário de
Hendrix, não ter uma família que inunda o mercado constantemente com novas
edições de novo material, de material quase novo, de material redundante.
Talvez tal se justifique por, ao contrário de Jim Morrison, o seu legado não
ter servido de referência para uma série de bandas nascidas tão distantes
quanto os anos 1980, ou por não ser rosto de um momento zero, irrepetível, na
definição da cultura popular juvenil e do imaginário rock’n’roll, como o foi
Brian Jones nos Rolling Stones. Faltar-lhe-á um biopic (há três décadas que
correm rumores de que um estará a caminho), como aquele em que Val Kilmer
encarnou Jim Morrison, nos anos 1990, e que deu nova vida e novas gerações aos
Doors. E não negligenciemos a questão do género. Janis Joplin foi mulher sob os
holofotes num meio quase exclusivamente masculino, numa sociedade marcada pela
misoginia, e que assim se manteria nas décadas seguintes: Joplin contou como,
num concerto no Madison Square Garden, um ano antes de morrer, o público seguiu
cada minuto à espera que um desastre pudesse acontecer – como que um eco do
que, quatro décadas depois, aconteceria com Amy Winehouse.
Little Girl Blue, se não por tudo o resto, e mesmo
que falte rasgo ao documentário, tem essa grande virtude: a justiça para com o
que foi Janis Joplin, a cantora que surgiu de rompante na São Francisco
contracultural da década de 1960, que se apresentou ao resto da América e ao
mundo através do Monterey Pop Festival, que se emancipou desse caldo cultural
para se afirmar, pela força e aguda sensibilidade que transmitia a sua voz
maturada pela adulação devotada a Bessie Smith, Odetta, Aretha Franklin ou Otis
Redding.
Janis:
Little Girl Blue mostra a beatnick que se
apaixonou pela soul e pelos blues e que, logo à primeira canção registada em
fita, era ela ainda estudante da Universidade do Texas, deixou ecoar o
sentimento que atravessaria tantas das suas cartas, tantas das canções: “What
good can drinkin’ do / Lord, I drink all night / but the next day I still feel
blue”.
Mostra a rapariga que, apesar de incapaz de ser como os pais ambicionavam, se
enchia de preocupação quando a mãe a visitava – gostaria da casa nova, do seu
namorado Country Joe, do chao-min que
preparara para ela? Deixa-nos conhecer a cantora que, entre a heroína e o
álcool, que abandonava ocasionalmente para sempre voltar, foi uma intérprete
magistral, vivendo cada verso à flor da pele. Frontal, sem traços de cinismo,
expôs-se sem restrições: disse o que quis dizer, viveu como quis viver.
“Billie
Holiday, Aretha Franklin. Elas são tão subtis, conseguem ‘milk you’ com duas
notas. Conseguem fazer-te sentir que te explicaram todo o universo”, elogia no
documentário. “Eu ainda não consigo isso. Tudo o que tenho agora é poder. Se
continuar a cantar, talvez o consiga”. Morreu cedo demais. Não nos chegou a
mostrar o universo como pretendia. Essa tragédia é nossa. A tragédia dela,
entre a música que a preenchia como nada mais, o desejo de viver plenamente, excessivamente,
e a implacável angústia que a consumia, explica-se agora.
Mário Lopes, Público
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