GOOD TIME
Josh e Benny Safdie
EUA, 2017, 101', M/16
FICHA TÉCNICA
Realização: Ben Safdie
e Joshua Safdie
Argumento: Ronald Bronstein e Josh Safdie
Montagem: Ronald Bronstein e Benny Safdie
Imagem: Sean Price Williams
Música: Daniel Lopatin
Interpretação: Robert
Pattinson, Jennifer Jason Leigh, Barkhad Abdi
Origem: EUA
Ano: 2017
Duração: 101’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Cannes - Selecção Oficial
CRÍTICA
Já tínhamos
saudades de filmes assim, com assaltos a bancos a darem para o torto e
correrias loucas de bandidos vulneráveis, com o ponto de vista da câmara sempre
a incidir não no poder, não na polícia e no paternalismo, mas em quem os
desafia, do primeiro ao último fotograma — e com uma fé inabalável num cinema
de género capaz de entreter e comover em simultâneo. Josh e Benny Safdie, manos
de Nova Iorque nascidos nos eighties, autores que nos habituámos a seguir há
uma dúzia de anos desde as primeiras curtas (são conhecidos cá pelo saudoso
"Vão-me Buscar Alecrim", de 2009), mostraram em Cannes, em maio
passado, este filme vibrante em que se sente que cada segundo de vida é
realmente vivido como se fosse o último. Ter Nova Iorque como pano de fundo
ajuda e os Safdie conhecem-na como a palma das mãos. Rodado em Manhattan e nos
seus arrabaldes fervilhantes e nada turísticos (a norte, em Queens, onde os
Safdie cresceram), "Good Time" é também um filme de imersão na cidade
agreste, suja e dura tal como certos heist
movies da Nova Hollywood ali se fizeram no século que passou, dos anos 70 e
80 de Lumet e de Scorsese aos diabólicos anos 90 de Abel Ferrara e nesse
sentido, é coisa bastante oldfashioned, a contracorrente dos thrillers
asseados que os EUA produzem hoje.
À nossa frente,
quase desde o primeiro plano, surge-nos Connie Nikas, que acaba de sair da
choça nesse "good time" irónico do título — jargão americano que, em
linguagem para condenados, significa liberdade condicional. Cara de poucos amigos,
blusão encarnado desportivo e gorro sobre boné para não dar nas vistas, Connie
tem um irmão mais novo, Nick Nikas. Pouco ou nada vamos saber do passado deles,
se outros laços de sangue existem ainda no mundo além dos que os unem — e que
Josh e Benny vão na ficção testar ao limite. Sabemos, sim, que Nick sofre de um
distúrbio emocional que lhe exige atenção médica. Mas Connie tem outros planos,
quer arrancar o irmão dos hospitais, das salas de psiquiatria, dos jogos de
palavras e de associações que lhe recordam a avó e a infância. Num ápice, surge
um assalto a um banco (um dos mais eficazes de que me lembro no cinema, em que
a ameaça é só sugestão), é preciso dólares para 'cavar' dali. Deste salto
brusco, em montagem de nervo, caímos noutro: o golpe corre mal, Nick é
apanhado, apanha uma tareia e vai parar ao hospital. Mais não se conta...
Em Cannes,
falámos com os Safdie, à velocidade deles, isto é, a 100 à hora, como no filme.
A paixão deles por cada plano recorda-nos as entrevistas com Tarantino. Isto de
termos um filme feito por dois irmãos em que um deles (Nick/Benny Safdie)
também interpreta "é coisa complicada" , acrescenta Josh:
"Quando o meu irmão se ri na rodagem eu rio, quando ele chora, eu choro,
porque sei que muito disto vem da nossa infância, com divórcios de pais,
violência e suicídios que nos traumatizaram. O Benny estava sempre a
entreter-me com as suas performances em miúdo, eu ripostava com as minhas e
sempre achei que ele era o melhor ator dos dois. " A personagem de Nick vem
de longe, contou-nos Benny. É um tipo complicado emocionalmente, não expressa
as emoções. "He's hard to crack. Em 2010, estive para entrar num filme do
Ronald Bronstein
[coargumentista de quase todos os filmes dos
Safdie, incluindo "Good Time"] e desenvolvi esta personagem, que era
então uma versão juvenil do Nick. O filme não se fez mas a personagem ficou. O
Nick é uma parede a nível emocional, engole tudo. E torna-se um dique prestes a
rebentar.”
Os
Safdie têm um método de trabalho curioso: escrevem ao detalhe as biografias de
cada uma das suas personagens, embora quase nada disso chegue sequer ao guião.
No set, interessa-lhes a energia dos
planos, um caos controlado que cede muito pouco à improvisação (embora tudo
pareça espontaneidade e explosão de primeira take). Em simultâneo, são apoiados
por um casting nada tradicional que vai respigar muitos dos seus não-atores nos
locais de rodagem e por um diretor de arte [Sam Lisenco] que se mexe em Nova
Iorque como ninguém ("é um tipo de Brooklyn que está na 'família' há muito
tempo' esclarece Benny. "Ensinou-nos que é a olhar para o chão, para os
passeios e bocas de metro, que se conhece uma cidade"). A música é outro
triunfo do filme e deve-se ao génio eletrónico de Oneohtrix Point Never (aka
Daniel Lopatin), "um gajo muito intelectual que podia ter sido um
compositor judeurusso noutra encarnação" , diz Josh. "Foi o nosso
diretor de fotografia, Sean Price Williams [no seu primeiro trabalho em 35 mm]
quem o indicou. Os 45 minutos que compôs para nós até à canção final
[interpretada por Iggy Pop] são outra personagem do filme. "
Nova-iorquino
como poucos, "Good Time" tem outra peça que à partida não encaixava
em Nova Iorque: é o ator que faz de Connie ("o fuck up da família, a
semente má" , diz Benny): Robert Pattinson. O ator britânico, que se
esmerou a afinar o sotaque yankee e arranca uma performance sublime, é o
coração do filme. "Nenhum de nós tinha visto 'Twilight' e não lemos
revistas de bisbilhotices" , diz Josh. "Foi ele que nos procurou.
Quando o encontrámos em Los Angeles, parecia um soldado ferido, traumatizado
pela fama. Ele é famoso, mas não tira gozo nenhum em ser uma celebridade.
Disse-nos que fizéssemos dele o que quiséssemos. Vestimo-lo como no filme e o
Benny foi com ele lavar carros numa bomba de gasolina para um teste de câmara,
um dia inteiro. Não dissemos a ninguém que estávamos a filmar e ninguém em Nova
Iorque o reconheceu. O Robert foi meticuloso, obsessivo, sedento. Deu-nos brava
luta até ao fim. Acho que este era o papel que lhe faltava para romper com
qualquer coisa dentro dele”.
Francisco
Ferreira, Expresso
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