O OUTRO LADO DA ESPERANÇA
Aki Kaurismäki
Finlândia/Alemanha, 2017, 100', M/12
FICHA TÉCNICA
Título Original: Toivon tuolla puolen
Escrito e realizado por Aki Kaurismäki
Montagem: Samu Heikkilä
Fotografia: Timo Salminen
Interpretação: Sherwan Sakari, Haji Kuosmanen, Ville Virtanen, Dome Karukoski , Tommi Korpela
Origem: Finlândia/Alemanha
Ano: 2017
Duração: 100'
FESTIVAIS
Festival de Berlim - Urso de Prata - Melhor Realizador
Grande Prémio da Crítica Internacional (FIPRESCI) 2017 - votado por 576 críticos de cinema de todo o mundo
TRAILER
CRÍTICA
O
desencanto com os “tempos modernos”: o retronos filmes de Kaurismaki não
é uma questão de decoração mas antes a expressão de uma “filosofia”.
O Outro
Lado da Esperança também é o outro lado de Le Havre, o filme anterior
de Aki Kaurismaki. Recorde-se: Le
Havre era o filme inicial de uma anunciada “trilogia portuária” (é
assim que tradicionalmente Kaurismaki pensa a sua obra, em grupos de três
filmes), e estando-se nessa altura em 2011 vinha já dominado por aquilo a que
mediaticamente se chama a “crise dos refugiados”. O “Havre” de Kaurismaki era
um ponto de passagem, um porto de abrigo temporário: tudo andava à volta de um
miúdo africano que, “clandestinamente” é claro, precisava de atravessar a
Mancha para ir ter com a família ao Reino Unido. Depois de 2011 aconteceram
coisas que agudizaram essa “crise”, nomeadamente a guerra civil na Síria, e
lançaram pela Europa fora a paranóia xenófoba. Kaurismaki, na sequência das
manifestações finlandesas dessa paranóia (por exemplo o partido dos “verdadeiros
finlandeses” ou lá como se chamava), chegou a declarar-se zangado com os seus
compatriotas – e é difícil não concordar com ele sobretudo se pensarmos na
geografia finlandesa, país de densidade populacional mínima com vastos
segmentos de milhares de quilómetros quadrados onde só há renas, pinheiros e a
ocasional sauna para madeireiros.
Portanto,
e abreviando, depois da incursão francesa este é o filme de Kaurismaki para os
seus compatriotas, e o porto é o porto lá de casa, o de Helsínquia. Não é um ponto
de passagem, é um destino, o destino escolhido por Khaled (que nas primeiras
imagens vemos a levantar-se das lamas e dos lodos, como o Martin Sheen do Apocalypse Now ou como uma
criatura da lagoa negra), que atravessou meio continente desde a Síria, perdeu
a irmã pelo caminho algures nos Balcãs (o resto da família morreu em casa, em
plena refeição, atingida por um míssil não se sabe se disparado “pelo Assad,
pelos rebeldes, pelos russos, pelos americanos ou pelo Daesh”), e achou
Helsínquia um sítio simpático e acolhedor. E como não? A Helsínquia de
Kaurismaki não é bem Helsínquia, de que ele aliás tinha pintado um retrato
gélido em Luzes do Crepúsculo,
o seu último filme finlandês; é uma versão de cinema, uma terra idealizada, um
mundo onde praticamente toda a gente preservou um sentido fundamental de
decência e solidariedade, onde a nobreza é uma questão de carácter, e onde por
cada “skinhead” apostado em fazer mal ao herói Khaled se levantam quatro ou
cinco em sua defesa (muito bonita, a cena em que os meliantes que atacam Khaled
são corridos à pancada por um grupo de estropiados e sem-abrigo).
É aí
que a história de Khaled se cruza com a história de Wikstrom, interpretado por
um velho kaurismakiano, Sakari Kuosmanen. Wikstrom é um homem à procura de uma
vida nova – farto de vender camisas, farto da mulher (fabulosa sequência
inicial aquela em que ele sai de casa, numa série de planos rápidos e
expressivos onde ninguém, nem ele nem a mulher, diz uma palavra, e percebemos
tudo o que há a perceber sobre o casal), resolve juntar às economias os ganhos
de uma noite no poker e comprar um restaurante. Será ele a acolher Khaled entre
os seus empregados e, com a ajuda de um miúdo “hacker”, a garantir-lhe a
documentação correcta depois de o pedido de asilo ser recusado. Porque também
Kaurismaki podia ter como moral que “quando a lei não é justa a justiça passa
antes da lei” (como se dizia no Filme
Socialismo de JLG), e porque Wikstrom reconhece em Khaled um tipo
de clandestinidade, ou de marginalidade, semelhante à sua: é um homem de outro
tempo desencantado com os “tempos modernos”, o “retro” nos filmes de Kaurismaki não é uma
questão de decoração mas antes a expressão de uma “filosofia” (e o restaurante
serve para uma série de gags
gourmet, oscilando entre o sushi,
a comida indiana e o que quer que esteja na moda e sirva para os clientes irem
aparecendo), e porque o carácter policial e metediço do “estado” ameaça um e
outro da mesma maneira, como se vê na visita ao restaurante da espécie de ASAE
lá do sítio. É sempre esse “o lado da esperança” em Kaurismaki, o lado dos que
estão à margem, e por isso também não faltam os vários números de “rock”
interpretados por velhos “rockers”
finlandeses de rostos que hesitamos como descrever, se tristes se abençoados
por uma espécie de felicidade “zen”
que consiste no alheamento total, na absoluta marginalidade. Este é o
humanismo de Kaurismaki, muito básico, muito idealista. E uma vez garantido,
até pode brincar com os estereótipos da xenofobia e da islamofobia: “vamos lá
beber uma cerveja ou lá que raio bebem estes infiéis”, diz a certa altura
Khaled ao seu amigo iraquiano.
, Público
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