RODIN
Jacques Doillon
BE/FR/EUA, 2017, 119’, M/14
FICHA TÉCNICA
Título original: Rodin
Realização e Argumento: Jacques Doillon
Montagem: Frédéric Fichefet
Fotografia: Christophe Beaucarne
Música: Philippe Sarde
Interpretação: Vincent Lindon, Izïa Higelin, Séverine Caneele, Bernard Verley
Origem: Bélgica/ França/EUA
Ano: 2017
Duração: 119’
FESTIVAIS
Cannes 2017 – nomeado para a Palma d’Ouro
TRAILER
CRÍTICA
Um filme sobre a obstinação da integridade
artística.
O filme
histórico não era o sítio onde esperaríamos reencontrar Jacques Doillon,
cineasta que noutros tempos (anos 80, anos 90) até foi seguido com regularidade
em Portugal e que filmou sempre “relações”, conjugais ou familiares, mais
canónicas ou mais irregulares, com frequentes incursões pelo universo da
infância e da adolescência (os belos Ponette, Le Petit Criminel ou La Fille de Quinze Ans). [...]
A primeira coisa a fazer é
resistir ao aparato semi-institucional que parece rodear o filme. Doillon é (e
continua a ser) cineasta suficiente para fazer sua a encomenda, e é o que ele
faz aqui. Rodin não
é o biopic solene
e pomposo do “grande homem” das “artes”: as coisas passam-se noutra escala, e,
por exemplo, a construção narrativa, assente em blocos separados por elipses
(que por vezes engolem muitos anos), nada tem de académico, pelo contrário,
assim como, no capítulo das questões românticas (a relação de Rodin com as
mulheres, em especial com Camille Claude, sua amante e discípula de muitos
anos), tudo distancia Rodin do
célebre Camille Claudel de
Bruno Nuytten em finais dos anos 80 (com Isabelle Adjani no seu mais “diva” e
Depardieu como Rodin, ainda não, mas quase, no seu mais brutamontes).
Quer Vincent Lindon, quer Izia Higelin são
essencialmente simples e discretos, e as cenas curtas, mais corriqueiras ou
mais conflituosas, com que Doillon dá o evoluir da relação são até os momentos
em que o filme mais se aproxima do Doillon “típico” e mais tipicamente
intimista (podendo até, através das parties
de campagne das personagens, compor algumas graças com o
impressionismo).
Mas o centro de Rodin é
o trabalho, o homem no seu atelier, com as mãos na pedra ou no gesso, os olhos
nos modelos, em cenas filmadas quase sempre numa certa penumbra, como se as
cores se reduzissem ao preto e branco. Não chega a ser a Belle Noiseuse (de
Rivette), porque nada se compara ao labirinto e aos jogos de poder e sedução
que esse filme encena, mas a sua atenção à matéria, ao trabalho sobre a
matéria, ao processo obsessivo (e intrinsecamente “erótico”) que leva à
transmutação da carne em pedra aproximam-nos mais do filme de Rivette do que
dum pastelão académico convencional sobre o “grande escultor”. E depois, que é
o ponto onde Doillon com certeza se projecta a si próprio, o combate, quase
político (e certamente “institucional”, porque Rodin era já um “artista
oficial” do Estado francês), pela liberdade criativa e pela independência, pela
sua visão contra a visão, justamente, oficial — exemplificada pela longuíssima
luta, que ocupa quase toda a segunda metade do filme, para fazer prevalecer a
sua “escandalosa” escultura de Balzac contra praticamente tudo e todos. Um
filme sobre a obstinação da integridade artística, em suma, como um Fountainhead em ponto
pequeno, e bastante bem tal como está. O plano final — uma imagem contemporânea
da estátua de Balzac no jardim do museu japonês em que se encontra — é qualquer
coisa que talvez só esperássemos ver num filme de Manoel de Oliveira ou dum
cineasta oliveiriano. Rodin é
filme até ao fim, e não dizemos isso a todos.
Luís
Miguel Oliveira, Público
ENTREVISTA
A VICENT LINDON
Tal como quase todos os grandes artistas,
Vincent Lindon é uma pessoa muito fácil de entrevistar. Conversar sobre um
filme, para ele, não é pausa nem frete, mas sim uma das derradeiras e mais
importantes etapas do seu trabalho, a que ele se entrega com uma dedicação
extrema e invulgar. Quantos filmes não são o que são por ter sido ele a
interpretá-los? A reputação de Lindon vem de longe: ator muito seletivo de tudo
em que se mete, quando ele escolhe um papel envolve-se em todos os sectores que
o afetam; reflete, discute, contesta, faz perguntas. E acaba por 'ganhar' os
filmes, porque eles também são dele. Em Cannes, em maio passado, um dia depois
da estreia mundial deste novo trabalho de Jacques Doillon (apresentado a
concurso pela Palma de Ouro) , ainda não tínhamos sequer ligado o gravador e já
Lindon disparava, para esclarecer: "Vai perguntar-me porque é que eu
aceitei fazer Rodin, não é? Pois bem, não sei. Ainda não descobri. Vão ver o
filme, a resposta está lá. " Há muito tempo que Lindon e Jacques Doillon
se conhecem, há muito que ambos queriam trabalhar em conjunto "e quando
ele me ofereceu este papel, quando me disse que 'escreveu este guião para mim
[Doillon, de resto, é autor de quase todos os argumentos dos seus filmes], não
podia, simplesmente, dizer-lhe que não: o artista [Rodin] é tão grande, tão
original e moderno, que não pude resistir à tentação".
Como é seu hábito, Lindon preparou-se até à
exaustão. "Comecei por coisas simples: deixar crescer a barba, cortar o
cabelo. Tinha de dar ares ao homem. Depois atirei-me ao trabalho. Ele era
escultor e não havia outro caminho: tive de aprender a esculpir. Sabe, há mil
maneiras de fazer isto no cinema, num filme biográfico com planos curtos e
momentos episódicos, até um imbecil pode passar por Rodin. Acontece que eu sei
como é que Jacques trabalha, conheço a sua abordagem à mise en scène, ele privilegia os planos-sequência, takes de seis
ou sete minutos, sem cortes. Ora, fui obrigado a tornar-me escultor. Durante
cinco meses, tive aulas, quatro horas por dia. Não havia outra maneira e
comecei a gostar daquilo. Aprendi a gostar das sensações que Rodin também terá
tido, a compressão da massa, a experiência tátil, a concentração do olhar sobre
a matéria, as dores nas costas que nos aparecem de estarmos fixados na mesma
posição. A minha interpretação de Rodin vem de tudo isto, das descrições
extraordinárias que dele fez Rainer Maria Rilke, do próprio fantasma que ele
foi para mim. Foi incrível para alguém tão nervoso como eu ter de passar por
todo aquele processo — e aprender a ganhar uma calma até chegar a rodagem.
Esculpir é tão extraordinário, tão sensual, que depois não consegues parar,
fica-te para a vida. O professor com quem aprendi tudo esteve ontem em Cannes
para subir a passadeira vermelha connosco. Enviou-me uma mensagem e, em
setembro [esta conversa foi gravada em maio], vamos recomeçar, uma ou duas
vezes por semana. Já fiz um leão. Fiz uma cópia do 'Le Baiser', de Rodin, que
não ficou nada má. É um trabalho longo, que começa com uma impressão da forma e
que depois se vai apurando, dias a fio, meses a fio, e que exige determinação,
talento e paciência. "
Não é — todos nós o sabemos —
a primeira vez que Rodin e a sua paixão tumultuosa por Camille Claudel visitam
o cinema (e na memória estão ainda bem presentes o filme que Bruno Nuytten
rodou em 1988, "A Paixão de Camille Claudel", com Isabelle Adjani,
bem como o mais recente "Camille Claudel 1915", de Bruno Dumont, com
Juliette Binoche). Contudo, esta é talvez a primeira vez que um filme sobre o
escultor coloca o trabalho e o ato de criação em si no plano principal (“sim,
meti as mãos na massa", disse-nos Lindon mais do que uma vez) , deixando
de lado uma abordagem psicológica àquelas figuras. No filme de Doillon, que se
passa em 1880 numa altura em que Rodin começa a ser reconhecido pelo Estado
francês (que lhe encomenda "La Porte de L'Enfer"), Rodin tem 40 anos,
Camille apenas 16 - o papel é de Izia Higelin, atriz parisiense em ascensão.
"Quando se é generoso, é-se generoso. Quando se é louco ou cruel, é-se
louco ou cruel. As pessoas não podem mudar e Doillon faz parte dos
primeiros", acrescenta Vincent. "Às vezes, ouço dizer que Rodin fez
Camille Claudel enlouquecer. Não acredito nisso: ela era louca! Amaram-se
enquanto estiveram juntos, e talvez ele a tenha amado mais do que o contrário.
" Para Lindon, a história deles é normal, igual à de tantas outras,
"é uma história entre um homem e uma mulher que se admiraram que se
admiraram mutuamente. Amaram-se e quando o amor acabou, disseram bye bye, só isso. Camille foi parar
depois a um hospital psiquiátrico, mas se ela não tivesse conhecido Rodin acho
que esse teria sido o seu destino de qualquer forma. Ora, Doillon e eu seguimos
este caminho, isto é: deixámos a biografia de lado. Aquilo que conta para mim no
filme é o meu trabalho na escultura. É a espontaneidade e a vivacidade de Izia
Higelin. Não uma luta sobre a obsessão, a competição, o ciúme entre um homem e
uma mulher". Lindon refere depois que, se ambos foram génios, foram
contudo incomparáveis: "Sejamos sensatos: ele era o mestre, ela a
estudante. Camille quis seguir o seu caminho, não quis copiar quem a ensinou,
acho isso notável. Agora, eles não são comparáveis, e não é por um ser homem e
a outra mulher. Rodin trabalhava depressa, Camille era muito focada e dedicada.
Camille esculpiu 400 peças, Rodin 13 mil. Há 55 museus dedicados a Rodin,
apenas um a Camille. Isto são factos que estão necessariamente ligados à
história daquele tempo. É claro que eles não tiveram as mesmas chances. É claro
que a representação das mulheres na sociedade do fim do século XIX era débil.
Mas isto não é culpa de Rodin! Aliás, ele é um dos maiores defensores da causa
das mulheres: amou-as, esculpiu-as e encorajou Camille a crescer como artista
quando todas as convenções da sua época lhe eram adversas. Enfim, acho que uma
parte de mim ainda está dentro do filme. Estarei eu a falar como Rodin
agora?" Lindon prosseguiu a entrevista a encadear respostas nas suas
próprias perguntas. Tudo o que ele quer quando interpreta uma personagem é
ser-lhe infiel, levando-a se possível até à fronteira do ridículo. "Quando
fiz 'A Lei do Mercado' [de Stéphane Brizé, 2015], receei que todos os franceses
pobres me gritassem: 'Ó Vincent, vai-te lixar e fica lá no teu rico bairro e na
tua bela vida burguesa, não te metas connosco. ' Quando estava a fazer 'Rodin'
pensava muitas vezes que o fantasma do próprio estava ali ao meu lado e a
rir-se de mim: 'Ah, ah, ah. Não é assim que se faz...' Um amigo disse-me uma
dia uma coisa que eu nunca irei esquecer: 'Tens a tendência a olhar para ti com
os olhos do teu inimigo.' E eu acho que ele tem razão: quando estou a fazer um
filme, construo o meu próprio inimigo. É uma luta — e eu gosto de lutar. É para
o meu inimigo que eu represento. E com os olhos 'dele' que eu me vejo. E
andamos nisto há que tempos, como o cão e o gato". Lindon diz que aprendeu
a desconfiar da arte contemporânea. Gosta dos séculos XVIII e XIX, de música
clássica, e o que o leva aos museus é Manet, Cézanne, os impressionistas, e
Rodin, sobretudo desde que o interpretou. Nunca faz filmes a pensar na
audiência porque, "se pensasse nisso, seria o primeiro passo para os
filmes que faço não serem vistos". E o trabalho com Doillon? "Foi uma
love Story. Ele é o oposto de mim. É tão gentil, tão calmo, tão intelectual,
fala tão docemente... O Jacques é como um homem discreto que andou na rua com
um cão muito grande — e o cão muito grande fui eu. Ele tem poder sobre mim,
leva-me para onde quer, diz-me sim ou não, mas eu também tenho poder sobre ele,
porque ladro. Ladro muito. E às vezes mordo!"
Vasco
Baptista Marques, Expresso
CURTA-METRAGEM DE ABERTURA DA SESSÃO
Um retrato delirante da escultura Princess X de
Constantin Brancusi, uma controversa escultura em bronze, que começou como um
busto da igualmente controversa sobrinha bisneta do Napoleão, a Marie
Bonaparte.
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