O MEU AMIGO PETE | 9 OUT | 21H30 | IPDJ

O MEU AMIGO PETE
Andrew Haigh
Reino Unido, 2017, 121', M/14

FICHA TÉCNICA
Título Original: Lean on Pete
Realização e Argumento: Andrew Haigh 

baseado no romance de Willy Vlautin
Montagem: Jonathan Alberts
Fotografia: Magnus Nordenhof Jønck
Música: James Edward Barker
Interpretação: Charlie Plummer, Steve Buscemi, Travis Fimmel and Chloë Sevigny
Origem: Reino Unido
Ano: 2017
Duração: 121’

FESTIVAIS E PRÉMIOS
Venice Film Festival - Selecção Oficial
Toronto Film Festival - Selecção Oficial



TRAILER




CRÍTICA
Um conto de coming of age, variação sobre a fórmula das histórias de amizade entre adolescentes e animais, de uma delicadeza discreta.
Mudança drástica para o britânico Andrew Haigh, que do drama conjugal, psicológico e vivido entre quatro paredes, do filme anterior (45 Anos), passa para o confronto com a vastidão da paisagem americana. Uma coisa que Haigh não deve ser mesmo nada é naif, e O Meu Amigo Pete evita ficar pasmado perante o “mito” e perante a memória do cinema que imprimiu a “lenda americana”. Se há recordações do western, inevitáveis num filme que se passa entre cavalos e as paisagens abertas do Oregon, nem por um segundo elas aparecem enquanto “revisão mitológica”. É muito por isso que este filme, menos coeso, até menos intenso, do que 45 Anos, acaba por nos ir conquistando – a forma como Haigh o constrói, numa inteligência empregue como quem não quer a coisa, sempre sem empurrar nada pelos olhos do espectador adentro, ajuda bastante. Descobre-se que é como um conto de coming of age, quase uma variação sobre a fórmula tradicional das histórias de amizade entre adolescentes e animais, e isso é dado com uma delicadeza discreta, alimentada por cenas onde tudo o que importa ver é o bonding entre um rapaz solitário (Charlie Plummer) e o seu amigo equídeo.
É realista, mas o realismo mais contundente é económico. O pano de fundo é o de uma “economia de subsistência”, onde toda a gente se esgadanha por um punhado de dólares, porque são os únicos dólares disponíveis. Mesmo o circuito das corridas de cavalos é uma coisa working class, empregos e formas de ganhar a vida que valem exactamente por isso, não pelo glamour que não existe. Essa “pequenez” económica contrapõe-se à “grandiosidade” da paisagem, e essa deve ter sido uma ideia que Haigh cultivou, porque é nesse conflito de “escalas” que se desenha a tristeza severa deste olhar sobre a América rural (nos planos muito fechados sobre as casas e os trailers atravancados e o horizonte amplo dos planos mais paisagísticos). Naturalmente, o nó central também é criado por uma razão económica: Pete, o cavalo, está “obsoleto”, é uma despesa insustentável, o seu destino é um matadouro a troco de algum dinheiro. O rapaz decide tentar salvá-lo. Uma história de educação económica transforma-se numa história de educação sentimental. Ou vice-versa, mas sempre com a mais realista das tristezas.
Luís Miguel Oliveira, Público

Dois anos volvidos sobre o soberbo "45 Anos", o britânico Andrew Haigh dirige o seu primeiro filme americano, uma história de amizade entre um rapaz e um cavalo em lugares e numa rota onde não mora qualquer sonho americano. Tudo começa num obscuro beco sem saída, o circuito de corridas de cavalos em fim de linha. Dali, os animais só saem para o matadouro. Quando Pete é condenado, Charley que trabalha ali como tratador não se conforma. Ele vem de um espaço social onde a pobreza é endémica, afeiçoou-se ao cavalo — na verdade, é a coisa mais próxima que ele tem de um amigo. E foge com ele, meia América fora, em direção a leste onde ele pensa ter uma tia que os acolha. Charley é interpretado pelo jovem Charlie Plummer que saiu do último Festival de Veneza com o merecido prémio Marcello Mastroianni, destinado a um ator-revelação e que é um dos intérpretes em forte ascenso no panorama americano (vimo-lo, entretanto, no último filme de Ridley Scott, era o raptado John Paul Getty III, em "Todo o Dinheiro do Mundo").
Para um primeiro filme americano, é muito interessante que Haigh escolha filmar uma América profunda, pobre, agreste até na paisagem. Como é que ganhou fôlego e conhecimento dessa realidade para a conseguir filmar intensamente? O realizador, que encontrei em Veneza, lembra que "há muita gente na Grã-Bretanha que se sente fascinada pela América, talvez porque, comparativamente, o meu país é muito pequeno e não tem aquele tipo de paisagem. Mas é mais do que isso, a América produz um enorme impacto em toda a gente e eu, como cineasta, tento compreender as razões desse fascínio. Vivi lá, por temporadas, nos últimos quatro anos e aprendi um pouco a realidade desse continente". Aprendeu, por exemplo, que a realidade é muito diferente do que os filmes mostram. "A América dos filmes é, obviamente, mais idealizada, com mais esperança, mas se convivermos longamente com americanos vemos que aquela esperança filiada no sonho americano existe mesmo, as pessoas vivem com ela, pode sentir-se. Para o bem e para o mal, nós europeus destroçamos esse tipo de esperança. É talvez por isso que, no filme, o protagonista é empurrado pela força da esperança, mas, no fim, a esperança não se cumpre." Uma das coisas que impressionam na América profunda é a realidade da pobreza, de uma pobreza muito cavada que Haigh olha de frente. Todavia, nota, "passa-se fronteira para o Canadá e tudo muda. É um contraste muito forte".
Para este filme, tudo começa no livro homónimo de Willy Vlautin que Haigh leu "há uns quatro ou cinco anos. Apaixonei-me logo por ele, pela jornada que Charley empreende. Todos os meus filmes são tocados por um sentimento de isolamento" (que não é a mesma coisa que solidão, porque solidão implica um certo grau de sofrimento) "e que tentam compreender e lidar com isso. E Charley conforme as coisas se desmoronam sua volta, vai ficando cada vez mais sozinho — sempre acreditando que as coisas se possam resolver". A sua relação com o cavalo condenado ao matadouro é também uma forma de escapar à solidão, o que empresta a "O Meu Amigo Pete" um lado de fábula ou mesmo de parábola, no sentido biblico do termo, o que encaixa nas intenções do realizador: "Fazer um filme naturalista sem ser demasiado realista."


PAISAGEM SOCIAL

O que mais me interessa no filme não são, todavia, os personagens centrais, o rapaz e o cavalo, mas o cenário físico e social, a paisagem corrompida e os personagens secundários. Para cada um dos múltiplos lugares onde o filme acontece, das pistas de quarta ordem de corridas de cavalos aos espaços urbanos mais ou menos degradados, da floresta ao deserto, há um trabalho de enquadramento onde as coisas nunca são belas ou feias, mas justas, significantes. Esse cenário físico e social é, para Haigh, "fundamental. sempre que se quer expressar algo, sempre que se quer imprimir um tom a um filme. Gosto muito daquelas pessoas que estão na margens, já está no livro um olhar compassivo para com elas, para as suas histórias, para o aspeto comunitário que elas criam. Por exemplo, nas pistas de corridas de cavalos as pessoas conhecem-se, formam como que uma família, na comunidade dos sem-abrigo também. E, na realidade, o que Charley procura é integrar-se numa comunidade, num grupo em que se possa sentir seguro".
Andrew Haigh tem uma forma de filmar cheia de astúcias. Por exemplo, há muitos momentos em que o quadro mostra apenas uma parte do que se está a passar, como se ele não quisesse estar — nem quisesse que nós estivéssemos — demasiado próximos, uma forma curiosa de fazer com que o espectador se aperceba da existência de uma câmara, de um dispositivo de intermediação entre o nosso olhar e o que é mostrado. O realizador explica: "Tentei encontrar um equilibrio entre um olhar subjetivo e a cena objetiva, Charley está presente em cada fotograma do filme, mas quis poder desviar-me ligeiramente dele, para que o espectador tenha vontade de o procurar ou de o confortar." Há, ainda, um trabalho muito apurado sobre o som. Por exemplo, no princípio do filme, com Charley em corrida, há uma quantidade de sons que nos assoberbam, mas não percebemos bem o que são e de onde vêm, é como se houvesse uma agressividade genérica no mundo sem origem definida. Haigh concorda: "O som pode ser incrivelmente expressivo. No princípio do filme, Charley está a chegar a um novo lugar onde morar e, quando isso acontece, há sempre muito som inidentificável em torno. Gosto que os vários materiais de um filme sejam distintos, o som pode criar uma sensação de incómodo, ou de apaziguamento, é muito importante. De resto o design do som de um filme é uma das coisas que mais tempo demoram." Mais do que dirigir um cavalo? Haigh sorri. "É assustador, sobretudo quando o cavalo é a vedeta. Começamos pelo casting e escolhemos um cavalo que tivesse um olhar humanizado. Ele tem muita zona branca nos olhos e parece que nós humanos ligamo-nos mais facilmente a um cavalo com essas características. Dirigi-lo acabou por ser relativamente fácil. Havia um cão em '45 Anos' e foi muito mais complicado. O cavalo estava muito bem treinado, nós criámos as condições para que ele fosse sempre respeitado, um ambiente de filmagens calmo, pouca gente à volta. Adaptámo-nos ao cavalo — por exemplo, deixei de poder gritar 'corta!' para não o perturbar. E Charlie Plummer teve de aprender a fazer os gestos necessários para que ele reagisse desta ou daquela maneira. O cavalo está treinado para dar uma resposta precisa a estímulos precisos. No filme não se vê, mas há inclusivamente linhas traçadas no chão em muitas cenas."
"O Meu Amigo Pete" sucede ao sucesso de "45 Anos". O sucesso é importante? "O sucesso é sempre importante, até para se conseguir financiar o filme seguinte." Porque um sucesso augura um novo sucesso? "Sobretudo porque se sabe o que um realizador é capaz de fazer. Por exemplo, vender a ideia de '45 Anos' não é fácil. São dois velhos dentro de uma casa a falar um com o outro - quem é que quer ver um filme assim? Mas, depois de feito, percebe-se como eu trabalho, percebe-se do que sou capaz. Torna mais fácil vender a ideia seguinte. A história de um rapaz que foge com um cavalo porque o querem abater? Parece uma história do Disney Channel. Sabendo o que fiz antes, percebe-se que eu não farei o que parece, as pessoas têm mais confiança em dar-me o dinheiro”.
Jorge Leitão Barros, Expresso

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