DIA 20 MAIO | 21h30 | IPDJ
TERRA DE NINGUÉM,
Salomé Lamas, Portugal, 2012, 72’, M/16
SINOPSE
Paulo
oferece retratos sublimados das crueldades e paradoxos do poder assim como das
revoluções que o depuseram, apenas para erguer novas burocracias, novas
crueldades e paradoxos. O seu trabalho como mercenário encontra-se na franja
destes dois mundos.
FICHA
TÉCNICA
Realização e argumento: Salomé
Lamas
Director de fotografia: Takashi
Sugimoto
Som: Bruno Moreira
Montagem: Telmo Churr
Origem:Portugal
Ano: 2012
Duração: 72'
CRÍTICA
Como numa manobra de feitiçaria,
“Terra de Ninguém” faz aparecer à nossa frente um enviado das trevas da
história portuguesa das últimas décadas. “Trevas” em todos os sentidos - aquilo
que permanece obscuro, que não foi trazido à luz (à luz do cinema, pelo menos),
mas também, como numa narrativa mitológica, “trevas” enquanto lugar de onde o
mal emana. Esta conversa maniqueísta é nossa, não do filme, cuja mise en scène
faz o possível por se manter neutra e por resistir a emitir qualquer comentário
que ultrapasse a matéria de facto que é a presença, frente às câmaras e aos
microfones, de um homem vindo dos subterrâneos da história de Portugal. Mas
justamente a força do filme é essa, e é pela ausência de comentário, por
não-imposição de um contexto, que a presença do homem se torna poderosamente
espectral - e como “espectro” acaba o filme, singularmente desaparecido, como
se, ainda em termos “mágicos”, a sua própria existência real, física, pudesse
ser posta em causa e tudo não tivesse sido mais do que uma assombração.
O homem, de sessenta e tal anos, é um ex-comando. Esteve em acção na guerra
colonial, onde participou em “esquadrões da morte” e cometeu execuções
sumárias. Mais tarde, terminada a guerra, trabalhou como assassino a soldo, e
este envolvido nos GAL, a famigerada unidade clandestina “anti-terrorista” que
o Estado espanhol criou para dar caça, fora da lei, à ETA. De tudo isto o homem
fala, com pormenores e descrições por vezes bastante precisos, sentado num
cenário despido, em posição de absoluta frontalidade. O filme bebe-lhe as
palavras e sorve-lhe os traços da fisionomia, os músculos que se mexem a cada
confissão - para ele, também, o filme é um exercício confessional, e todas as
considerações morais, todos os julgamentos sobre as sua acções, provém dele
próprio. Para o espectador, posto no papel de ouvinte destinatário da
confissão, o lugar é singularmente desconfortável - e por maioria de razão,
para o espectador português, que não tem forma de se abstrair, de se pôr de
fora daquela narrativa.
Pedaço de “história oral”, “Terra de Ninguém” também é uma espécie de
“filme de acção”, mas onde a acção não tem imagens nem tradução visual possível
- como nas trevas, nada se vê, tudo é questão de palavras e de relato. A sua
sobriedade austera (apenas interrompida por um bizarríssimo número “musical”,
onde se sugere que o homem, mais “fantasma” do que nunca, acabou os dias como
“sem abrigo”) funciona como amplificação do poder desse relato, e é difícil
imaginar que alguém lhe possa ficar indiferente.
Luís Miguel Oliveira,
Ípsilon
ENTREVISTA
[...] o documentário Terra de Ninguém já
circula com um longo e premiado percurso desde que foi escolhido o Melhor Filme
português da edição de 2012 do Doclisboa. O filme baseia-se numa sessão de
entrevistas com um único personagem mas, aquilo que a princípio pode parece
redutor, ganha uma enorme dimensão devido ao entrevistado em si, o ex-soldado e
mercenário Paulo de Figueiredo, que terminou os seus dias como sem-abrigo, em
Lisboa. Em entrevista ao C7nema, a realizadora explicou como o conheceu, falou
sobre o reconhecimento que a obra tem recebido e sobre os seus novos projetos.
Terra de Ninguém traz
um depoimento verdadeiramente impressionante e que soa carregado de
autenticidade. Em que circunstâncias é que conheceu Paulo de Figueiredo e
quando é que percebeu que queria fazer um filme com ele?
O Paulo foi‐me
apresentado pelo Miguel (Lamas), sociólogo cujo trabalho admiro e sem o
qual este filme não existiria. O Paulo e o Miguel tinham uma amizade.
Desde a primeira vez que ouvi falar sobre ele, o que ocorreu fora do âmbito de
filmes ou do que quer que seja, que me coloquei essa questão. A partir desse
momento persegui, literalmente, essa ideia.
O processo já estava avançado, mas percebi
verdadeiramente que queria fazer um filme com o Paulo quando ele concordou
em fazê-lo. Neste momento ele disse-me "estou a utilizar‐te para contar a minha história" e eu
respondi: "Está certo, eu estou a utilizar‐te para fazer um filme".
Tornar assuntos privados em discussão pública não é
algo que deva ser feito de ânimo leve. Aqueles que escrevem a história devotam
demasiada atenção aos tão falados eventos escutados pelo mundo fora, ao
mesmo tempo que negligenciam os períodos de silêncio.
A forma como a memória (privada) se articula com uma
narrativa histórica é extremamente complexa e problemática. O trauma está
fora da memória, fora da história. É irrepresentável, não memorável e, ao
mesmo tempo, inesquecível. Como poderemos conhecer o trauma, ou seja, como é
que a sua irrepreensibilidade pode ser representada? E não será a própria
história um contentor original do trauma? O trabalho da memória e o seu
processo memorial de transformação do tempo e espaço, do político, do público e
do privado, da nação e da família, não será este um processo do desejo?
Como funcionou a organização das perguntas e a
construção do documentário? Foi tudo pensado e planeado de antemão ou foi
modificando na medida em que ouvia as declarações do Paulo de Figueiredo?
As perguntas, ou o guião possível, surgiram de uma
conversa inicial com o Paulo, que serviu para testar o dispositivo, comunicar a
ele as minhas intenções, de escrever um guião para a rodagem. Neste
primeiro encontro foi claro o meu descompasso. E foi‐me dito algo como "tens de ir para casa
estudar (...) não tens ideia no que te estás a meter".
Depois de refletir apercebi‐me que este era o único dispositivo possível para este
filme que respeitasse o Paulo, o hipotético espectador e o processo de
feitura do próprio filme.
Procurei um espaço neutro no qual nem eu nem ele
tivéssemos referências. Filmar para documentário é estabelecer uma relação
para ser filmada entre a câmara e dois corpos (pelo menos). Ao permitir
uma entrevista, a relação de poder entre o sujeito do filme e a
realização é atenuada. Ao sujeito é dada a palavra e a possibilidade de
escolher como interagir com o
realizador e o espectador. Alguém irá falar e alguém irá escutar. A conversa tem lugar no presente "aqui e agora" e a ideia era que o espectador pudesse sentir aquilo que eu estava a sentir naquele momento. Se isso acontecer, o filme é bem-sucedido.
realizador e o espectador. Alguém irá falar e alguém irá escutar. A conversa tem lugar no presente "aqui e agora" e a ideia era que o espectador pudesse sentir aquilo que eu estava a sentir naquele momento. Se isso acontecer, o filme é bem-sucedido.
Estabeleci que a rodagem teria a duração de 5 dias,
nem mais, nem menos. Estes 5 dias marcam a estrutura do filme. Uma estrutura
quase literária pontuada com capítulos, virgulas e pontos. A partir do momento
em que o Paulo se senta na cadeira, adquire a consciência de que será julgado,
não por mim, que ousei não julgar para que este processo coubesse ao
espectador. É um filme misterioso em que muitas das questões levantadas, que
são maiores do que o Paulo e do que a realização. É um filme onde as
expectativas da realização se encontram com as expetativas do sujeito do filme.
Como é que lidou com as questões da alta política
implícitas nas declarações dele, principalmente no que se refere aos espanhóis?
A maioria das declarações do Paulo infelizmente não é
estranha aos espanhóis. Por outro lado, o desconforto da sua narrativa, a
forma como interroga o nosso conforto e a hipocrisia que coexiste com a
suposta democracia, ou mesmo com os discursos que à sombra da democracia
se constroem é, no mínimo, desconcertante.
Consta que Paulo de Figueiredo dedicou‐se a uma instituição de Sem‐Abrigo (GIMAE) e obteve uma espécie de redenção do seu
passado. Alguma vez pensou em explorar este outro lado no filme?
Bom, isso foi como escreveu Friedrich Nietzsche em
"Assim Falava Zaratustra": "Redimir os passados e
transformar tudo, 'foi' num 'assim o quis': só isto é redenção para mim."
Sim, é certo, mas se "obteve uma espécie
de redenção do seu passado" é uma questão para o Paulo e para aqueles
que o acompanharam. O filme abre precisamente com a questão: "O que
achas que estamos a fazer aqui?", ao que Paulo responde: "Quis
contar a história da minha vida e a partir dai cada um que pense o que quiser".
Terra de Ninguém aborda a complexidade de Paulo
e não é possível afirmar com clareza que o filme siga um caminho e não o
outro (independentemente do que estes possam ser e do que se possa dizer
sobre o filme). Na cena final, de exterior, que poderia ser o início de um
outro filme, é visível o companheirismo entre Paulo, Chiquinho e Alcides (os
dois últimos, africanos ‐ todos eles
sem-abrigo).
Este momento reequaciona e desconstrói toda a
narrativa escutada anteriormente. Nunca pensei incluir a GIMAE (seria
escolher um enquadramento institucional para alguém que recusava ser
enquadrado) – pensei, sim, em incluir um amigo próximo de Paulo, alguém que
nunca se preocupou com questões de identidade. Depois as coisas não seguiram
esse caminho.
O seu trabalho foi escolhido o melhor filme português
do Doc Lisboa no ano passado, passou pelo Fórum do Festival de Berlim e pelo
Cinéma du Réel, entre outros. Alguma vez pensou que o seu trabalho iria ter
essa repercussão? Que expetativas tem para estreia comercial de Terra
de Ninguém depois do prémio no DocLisboa?
Não e sim. Não tenho expetativas. Os filmes que
fazemos são para serem vistos. A repercussão que os filmes têm ou não
infelizmente nem sempre depende unicamente destes. Tentámos fazer um filme
que coloca questões e que, para tal, procura um espectador ativo.
Está a trabalhar em novos projetos?
Acabei de realizar uma curta‐metragem, Teatrum Orbis Terrarum, que
estreou recentemente no DocLisboa e no Festival de Roma (secção Cinema XXI),
projeto que teve também uma versão em instalação apresentada na Sala Polivalente
do Museu Nacional de Arte Contemporânea – integrada na programação do Festival
Temps d'Image.
Encontro‐me neste
momento a desenvolver uma docu-ficção para rodar no Peru com a produção de O
Som e a Fúria. Neste momento o projeto encontra‐se comprometido
devido à situação que se vive no setor audiovisual, arriscando uma estratégia
de coprodução internacional.
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