DIA
27 MAIO | 21h30 | IPDJ
O
CONGRESSO
Ari Folman
Israel/Alemanha/França/Bélgica, 2013, 122’, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização: Ari Folman
Argumento: Ari
Folman , adaptação do livro "The Futurological Congress“ de Stanislaw Lem
Montagem: Nili
Feller
Fotografia: Michal
Englert Música: Max
Richter
Interpretação:
Robin Wright, Harvey Keitel, Jon
Hamm, Paul Glamatti
CRÍTICA
Há uma cena absolutamente incrível em O Congresso e que
tem, simultaneamente, tudo e nada a ver com o tema principal desta fábula
futurista (será tão futurista assim?). Forçada a render-se perante as
evidências de uma sociedade e indústria que não lhe presta mais atenção - foi
obrigada a chegar-se para o lado e dar espaço a qualquer outra nova estrela -
temos uma Robin Wright a fazer
de (ser?) Robin Wright. A dar tudo de si enquanto actriz e pessoa, a
entregar a sua alma, só com a sua expressão facial, a entregar-se perante um
scanner majestosamente impressionante, repleto de luzes e sons, a retirar a
máscara da máscara. A deixar-se ser. Uma Robin Wright que cometeu decisões erradas na vida
(não cometemos todos?) e a enfrentar as suas consequências. Uma actriz a fazer
de actriz, mas estarrecedoramente tão despida, a soar tão frágil e tão
verdadeira, que nos fazer querer também que ela pudesse entregar-se assim em
todos os filmes (e que lho permitissem mais também). E se nesta impressionante
cena temos todas as desilusões da vida (dela e da nossa) ali espelhadas, na
seca e crua constatação da verdade, depressa o filme vai caminhando para uma
realidade (animada) virtual, curiosamente com uma semelhança acentuada com a
realidade que conhecemos.
O filme, esse, é de certo modo
inclassificável. É um objecto desconcertante, surreal, onírico, psicadélico e
alucinado. Mas nem por isso menos desligado da nossa realidade. Um jogo de
espelhos e realidades, uma espécie de Matrix em fase de pré-criação, uma
constatação da facilidade (ou ser-nos-á imposto?) com que abdicamos da nossa
identidade para sermos a identidade de todos ou de quem nos controla. Para
sermos a identidade que querem que sejamos. Escrito nos anos 70, o livro em que
este filme se baseia (Kongres futurlogiczny, Stanislaw Lem) não está
assim tão distante da imagem que temos agora em pleno em século XXI. Daí que,
apesar da dimensão absurda e satírica, nos consigamos relacionar tão bem com um
filme que retrata o momento em que todos, enquanto seres que constituem uma
sociedade, nos deixamos (re)criar por um mundo, interiormente, tão decadente.
Demasiado trágico e desiludo para uns, francamente honesto e real para
outros. Ari Folman entrega-se pessoalmente a um projecto
surpreendente e magicamente estarrecedor, tão sublimado pela estonteante banda
sonora de Max Richter. O Congresso não deixará certamente ninguém
indiferente, porque o filme é feito sobretudo para incomodar. A uma indústria
deslumbrada pelo glamour, a uma sociedade adormecida nessa falsa luz, a um
espectador que se deixa irradiar por isso. Incomoda-nos a nós porque talvez nos
vejamos ali ou porque talvez nos assustemos com esta profecia globalizada.
Talvez seja este o mais fascinante filme do ano.
Tiago Ramos, splitscreen-blog.blogspot.com
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Ao
fim de mais ou menos 50 minutos de projecção, O Congresso abandona a imagem
real para passar a ser inteiramente animado. Nesse momento, o espectador na sala
perde as referências: o que até aí era uma meditação melancólica sobre a
fugacidade da fama e as mudanças tecnológicas que o mundo está a impor ao
cinema como o conhecemos transforma-se numa alucinação lisérgica sobre um
futuro próximo onde as regras da realidade tal como as conhecemos deixaram de
ter efeito. É como se entrássemos em território desconhecido, com algo da
inscrição de Dante à entrada do Inferno: abandonai toda a esperança ao atravessar
este portal. Do
outro lado da linha telefónica, o realizador e argumentista Ari Folman, 51
anos, diz que sim, que é isso que espera que os espectadores sintam. Depois do
triunfo de Valsa com Bashir (2008), o cineasta queria afastar-se o mais
possível da “verdade” e da verosimilhança daquela catarse em forma de
“documentário animado” das suas próprias experiências no exército israelita,
sobretudo durante o infame massacre de Sabra e Chatila em 1982.
A sua
escolha? Um romance de ficção científica do escritor polaco Stanislaw Lem
(1921-2006), O Congresso
Futurológico, publicado em 1971, sobre um futuro onde a realidade é
infinitamente mutável e subjectiva. Folman introduz na sátira de Lem sobre uma
sociedade em fuga para a frente a odisseia futurista de uma actriz - Robin
Wright, interpretando-se a si própria - que aceita ser “digitalizada”, nunca
mais trabalhar, e deixar que o estúdio de Hollywood a que vendeu a sua imagem
faça o que quiser com o seu avatar digital.
Folman
fala ao PUBLICO de Telavive alguns dias antes de O Congresso chegar às salas portuguesas, um ano depois da
estreia em Cannes 2013 na secção Un Certain Regard. Ao contrário de Valsa
com Bashir, cujo percurso imparável começou na competição de Cannes 2008 e
terminou na nomeação para Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, a invulgaridade de
O Congresso tem deixado
muita gente perplexa - uma primeira metade em imagem real, com um elenco que
inclui ainda Harvey Keitel, Danny Huston e Paul Giamatti, e uma segunda metade
em animação tradicional que recorda os midnight movies psicadélicos dos
1970s. O cineasta admite: “É como partir numa viagem estranha, numa espécie de
montanha russa. Mas se aceitar entrar, tem de se recostar na cadeira e deixar-se
levar, confiando que pelo final do filme vai chegar são e salvo onde quer que
seja o término, e por muito longe que seja.”
O Congresso combina imagem real e animação de um modo que muito pouca gente tentou antes. E que muito pouca gente vai tentar no futuro... Foi assim tão difícil?
O Congresso combina imagem real e animação de um modo que muito pouca gente tentou antes. E que muito pouca gente vai tentar no futuro... Foi assim tão difícil?
Tanto
que ainda nem acredito que consegui
fazê-lo! Foi de loucos. Trabalhar com nove estúdios de animação em sete países,
conseguir o financiamento, tudo neste filme foi difícil. E não creio que mais
alguém vá repetir a experiência.
Por
causa dessa loucura?
A
loucura é uma metáfora muito simples para exprimir a minha teimosia. O establishment
cinematográfico é tão antiquado que é muito difícil conseguir fazer algo
diferente. E vivemos numa época onde a forma de arte está a mudar tanto...
Penso que em breve os espectadores vão deixar de ir ao cinema ver filmes de
autor, porque esses filmes não vão ter acesso aos complexos multi-salas. Vamos
ter de os ver em casa, e só vamos poder ir ao cinema ver os filmes de
super-heróis. E os actores já podem ser inteiramente digitalizados; as
instalações de digitalização que se vêem no filme são verdadeiras, nem eu
pensava que já existisse algo do género quando escrevi o guião. A animação por
computador é cada vez mais perfeita...
É por isso que a animação de O Congresso tem uma qualidade primitiva, antiquada, como os filmes dos irmãos Fleischer [animadores pioneiros de Hollywood, activos nas décadas de 1920 e 1930 e responsáveis pelos cartoons de Betty Boop]?
É por isso que a animação de O Congresso tem uma qualidade primitiva, antiquada, como os filmes dos irmãos Fleischer [animadores pioneiros de Hollywood, activos nas décadas de 1920 e 1930 e responsáveis pelos cartoons de Betty Boop]?
A animação é de facto uma homenagem
aos irmãos Fleischer - tinham um estilo fantástico, muito artesanal. Comparados
com os filmes da Disney o seu traço era muito menos certinho, o que fazia deles
os “maus rapazes”, e penso que é isso que ainda hoje torna os seus cartoons muito
interessantes. Procurámos canalizar os Fleischer a par dessa nostalgia do
cinema antigo, mas a verdade é que, artística e financeiramente, ser-nos-ia
muito difícil conseguir prever o futuro. Não tenho dinheiro para fazer sequer
hoje um minuto de animação ao nível da Pixar, acha realmente que vou ser capaz
de projectar o que eles vão estar a fazer daqui a 20 anos? Seria como meter um
golo na própria baliza. Foi uma solução artística que se tornou numa solução de
produção que jogava igualmente bem com o tema do filme.
Como Ihe surgiu a ideia de introduzir a história da actriz que vende a sua imagem nos temas do romance de Stanislaw Lem?
Como Ihe surgiu a ideia de introduzir a história da actriz que vende a sua imagem nos temas do romance de Stanislaw Lem?
Quando
comecei a trabalhar no projecto, fui a uma conferência que teve lugar num
festival de ficção científica aqui em Telavive, que debatia o motivo pelo qual
Lem tinha detestado todas as adaptações que tinham sido feitas dos seus livros –
tanto o Solaris de Andrei Tarkovski (1972) como a versão de Steven
Soderbergh com George Clooney (2002), e uma série de adaptações polacas [de
outros livros]. Percebi que, independentemente do que fizesse com o livro, ele
detestá-lo-ia. Por isso encontrava-me numa posição confortável, não tinha de lhe
agradar - e senti-me à vontade
para me afastar o mais possível do livro. A primeira parte também tem a ver com
o tema da identidade do romance... A história da actriz tem qualquer coisa de
tragédia grega, é sobre uma mulher que está a envelhecer e a quem o diabo vem
propôr um pacto, vem oferecer a juventude eterna, como Dorian Gray. O representante
do estúdio é o diabo, mas não diz que a matam se ela não aceitar a oferta; diz
que a eliminam dos écrãs, do passado, da história. Que ela deixaria de existir.
Ela assina o pacto com o diabo, mas não porque precise de dinheiro para operar
o filho - isso aconteceria num filme americano, mas este não é um filme
americano. EIa fá-lo porque quer ser jovem para sempre... Mais tarde, quando
acabámos o filme, mostrá- mo-lo aos herdeiros de Lem. E eles acharam que era a
adaptação mais fiel jamais feita de um dos seus livros, porque apesar de todas
as diferenças o seu espírito estava lá.
Quando pede a uma actriz para se
interpretar a si própria, está a obrigá-la a olhar-se ao espelho e entregar-se
ao projecto de modo muito mais intenso do que é habitual.
Sim, é verdade, mas o que aconteceu é
interessante. Quando propus o filme à Robin, ela aceitou imediatamente. Quando
lhe enviei o guião dez meses depois, estava à espera que ela pedisse alterações
- mas nunca me pediu para mudar nada, e achei isso intrigante. Começámos a rodagem,
tudo correu bem. Quando fomos a Cannes apresentar o filme, fizemos muitas
entrevistas em conjunto, e ela passava o tempo a dizer que não tinha nada a ver
com a personagem no écrã. Deixou- me usar o seu nome verdadeiro, os seus dois
filmes mais conhecidos, A Princesa Prometida e Forrest Gump, e o
facto de ser uma mãe solteira com dois filhos; mas fora isso a Robin Wright do
filme nada tinha a ver com ela. Isso foi chocante... mas nos intervalos das
entrevistas percebi que não era uma brincadeira. A mulher que estava ali ao meu
lado não tinha mesmo nada a ver com a mulher que estava no écrã e que eu tinha
escrito. O que vemos no ecrã é um ideal , e acho que ela tomou a atitude
correcta, a fim de ser capaz de repreentar uma personagem. Foi algo muito
corajoso da parte dela.
Já abordou um pouco o assunto, mas a
realidade está a ultrapassar a ficção de tal modo que O Congresso pode
ser entendido como uma antecipação muito assustadora do futuro...
E é!
E isso já estava no livro. Quando escreveu o romance, Stanislaw Lem previu
muitas coisas como o ipad, a televisão em 3D - sobretudo, previu que as drogas
farmacêuticas teriam o poder de transformar as nossas emoções. Previu que
sempre que vivêssemos uma crise iríamos ao médico para ele nos aviar uma
receita que nos pusesse a funcionar outra vez. Previu os anti-depressivos, a reality
TV e o novo sonho de ser uma estrela instantânea, de podermos ser famosos sem
termos de trabalhar para isso. No fllme, há essa dimensão de se tomar uma droga
para se ser quem se quiser ser; e o que eles querem mesmo é ser famosos.
Ainda se pode ser optimista num tal
mundo?
Posso
dizer-lhe uma coisa. A tecnofobia não levou a natureza humana a lado nenhum, e
talvez um dia as pessoas leiam a sua entrevista e digam, “olhem para este
palerma a falar da televisão em 3D, parece aqueles tipos que quando se inventou
o cinema sonoro diziam que o cinema ia morrer.” Os meus filhos nasceram nos
tempos da Playstation e estão tão à vontade com um joystick como com uma caneta. Acha que daqui a uns
anos eles se vão importar que o actor no écrã seja uma versão digital e não de
carne e osso?
Jorge Mourinha,
Público, 14/3/14
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