A VIDA INVISÍVEL, de Vítor Gonçalves || 2 DEZEMBRO || 21h30 || IPDJ


A Vida Invisível
Vítor Gonçalves
Portugal, 2013, 99’, M/14

FICHA TÉCNICA
Realização: Vítor Gonçalves 
Argumento: Vítor Gonçalves, Mónica Santana Baptista, Jorge Braz Santos 
Fotografia: Leonardo Simões 
Montagem: Rodrigo Pereira, Rui Alexandre Santos 
Música: Sinan C. Savaskan 
Interpretação: Filipe Duarte, João Perry, Maria João Pinho
Origem: Portugal
Ano: 2013
Duração: 99’


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Roma - Selecção Oficial
Festival de Roterdão - Selecção Oficial 



NOTA DO REALIZADOR
No hospital, ao preparar uma cena, vi a câmara sobre o tripé numa sala que desconhecia. Duma janela viam-se umas árvores e como fundo o mar agreste. Virei a câmara para os ramos agitados pelo vento. A excitação nascera de alguma coisa que vislumbrara e a que só poderia aceder através da materialidade do plano. Nem pensava que fosse destinado ao filme.
Era como se estivesse noutro território de trabalho, no qual o mistério do que eu filmava residisse no facto de tudo ter a ver com uma sugestão e nada ser afirmado com certeza.
Era como se eu desejasse fazer um filme secreto.
Durante a montagem, os planos deste outro filme fizeram a sua aparição abrindo espaços de possibilidade para as ideias em formação.
O sentido, sempre no processo de se tornar uma coisa nova, veio um dia, como por atração, fixar-se, colocando o plano das árvores no seu lugar. Ele era agora capaz de participar ma expressão de um momento decisivo da personagem. Aquele em que ela se torna sensível à ideia da sua própria mortalidade e isso lhe oferece a possibilidade de se sentir viva.


CRÍTICA
Vítor Gonçalves, o cineasta de "Uma Rapariga no Verão" (1986), regressa com "Uma Vida Invisível", protagonizado por Filipe Duarte — um belo filme, desencantado e cristalino, sobre um presente visceralmente português.
Quando descobrimos um novo filme português, é quase inevitável que (nos) perguntemos: que Portugal vemos na história que o filme nos conta? No caso de "A Vida Invisível", de Vítor Gonçalves, apetece responder através de um paradoxo enraizado na fascinante complexidade dos resultados; por um lado, deparamos com a saga abstracta de alguém que tenta encontrar um sentido para a sua identidade; por outro lado, a sua trajectória revela-se indissociável de um aqui e agora muito concreto, visceralmente português.
Esta é a história de Hugo (Filipe Duarte) e da sua relação distante, mas cúmplice, com o seu superior hierárquico, António (João Perry). A doença terminal de António vai desencadear um efeito revelador: de algum modo, a evolução do seu estado de saúde funciona como um bisturi do próprio destino de Hugo, e tanto mais quanto este, ao reencontrar Adriana (Maria João Pinho), parece acreditar na possibilidade de voltarem a ter uma vida conjunta...
É uma história a que acedemos, não exactamente tendo Lisboa como pano de fundo, mas como se a cidade fosse o lugar de uma vertigem (invisível, apetece dizer) que contamina todos os gestos de todas as personagens. Exemplo modelar dessa respiração narrativa é o conjunto de planos sobre as obras no Terreiro do Paço, por assim dizer expondo uma lógica de desnudamento e reconstrução.
"A Vida Invisível" possui, assim, a dinâmica de uma crónica social em que, explicitamente ou não, reconhecemos algumas componentes da nossa conjuntura: a solidão urbana, a desagregação dos laços familiares, o esvaziamento humano das relações profissionais... Ao mesmo tempo, tudo se passa como se Vítor Gonçalves nos quisesse mostrar o desejo imenso de sair dessa teia, a par da dificuldade de cada um formular tal desejo — ou partilhá-lo com outro.


Quase três décadas passadas sobre "Uma Rapariga no Verão" (1986), Vítor Gonçalves regressa, assim, a uma escrita da intimidade, habitada por ecos díspares da nossa actualidade. "A Vida Invisível" é a prova muito real de que é possível filmar o que somos (ou imaginamos ser) sem ceder aos estereótipos dramáticos ou morais que, todos os dias, circulam pelas telenovelas. Decididamente, isto não é a rotina televisiva — isto é cinema.
João Lopes, rtp.pt/cinemax/




ENTREVISTA AO REALIZADOR
Na primeira cena de “A Vida Invisível”, o protagonista, interpretado por Filipe Duarte, diz “estes filmes não me saem da cabeça”. Essa frase supõe uma série de saberes quanto ao que vem a seguir. Isso já estava no argumento? A escrita do argumento é a base do seu cinema?
É evidente que passo muito tempo a pensar no argumento — e a escrever. É um grande trabalho solitário, mas fui tendo conversas com a Mónica [Santana Baptista] e com o Jorge [Braz Santos] e é por isso que os nomes deles aparecem no genérico. Mas o argumento, para mim, nunca está fechado. É um organismo vivo, tem vida própria, o trabalho sobre o argumento não é prévio, atravessa todo o processo de construção do filme, da rodagem à montagem e à pós-produção.
Mas, quando faz um plano de rodagem, tudo se passa como é hábito? Por exemplo, na quarta-feira à tarde roda-se a cena 24 no décor X, com os atores Y e Z, certo?
Sim, mas, para mim, o argumento não são umas páginas que fecham a cena, mas umas páginas que abrem para a cena. Nunca se trata de filmar uma cena que já está completamente definida. Há qualquer coisa de misterioso na passagem da ideia à materialidade da expressão, através dos atores, de um sofá, da presença de uma luz. É nesse confronto com a materialidade, com o grão de uma voz, com a forma como um ator se senta ou fala que a cena vai existir.
È nítido que nada está por acaso em “A Vida Invisível”. Gostava de saber se isso é fruto de uma organização minuciosa da cena ou se, pelo contrário, a cena resulta do encontro da ideia original com algo que de repente se descobre...
Por um lado, é evidente que eu organizo o mundo, estou obcecado por organizar o mundo configurado no filme. Mas, para mim, filmar é ser capaz de trabalhar num território de que ainda não sei como vai ser encontrada a forma final de expressão.
Aqueles corredores do ministério, a estética arquitetónica das portas e das paredes, são algo que associo aos interiores do Estado Novo. Mas aquela luz esverdeada não estava lá e é um cromatismo que se traduz como a cor exata de um mundo que se desagrega, é a luz da putrefação. Aquela luz é uma escolha...
Exato. Foi muito importante o trabalho que tive de fazer com a luz, em particular na relação entre a luz do ministério e a luz da casa do protagonista. E muito em particular na expressão da ideia de espaço fechado, na relação com um mundo exterior onde existe uma luz que chega a queimar quando vai contra as cortinas, quando atravessa os estores e queima a imagem, face a uma obscuridade, uma tonalidade interior que é onde o protagonista vive, onde está inteiramente instalado. Tive sempre a noção de que a luz na expressão da história era decisiva, era essencial.
Deixe-me voltar o início do filme e às imagens que são uma herança do personagem de João Perry e se tornam quase assombrações do protagonista. Quando partiu para a rodagem, já sabia que essas imagens iam ser fundamentais na dramaturgia?
Não, por isso é que é preciso manter um espaço criativo ligado ao inconsciente, não fazer um filme apenas no domínio da razão.
E ator, nesse primeiro plano na escada, já sabia que ia haver uma voz off e o que ela dizia?
Não, não... A voz off foi uma decisão muito posterior.
Então o que é que o ator tem de exprimir? Ou não tem de exprimir nada?
Nessa cena, o que eu estava a trabalhar com o Filipe Duarte era uma de insónia, ali no ministério, em que ele não era capaz de voltar para casa, casa que é, ao mesmo tempo, protetora e que sente como prisão. A ideia era essa. Bastou.
E as imagens que o personagem de João Perry deixa em herança, como surgiram?
Por um lado, o filme está constantemente a fazer referência ao espaço de uma vida que não é vivida. E havia um problema, ao nível da dramatização: como falar dessa vida que não é vivida?, como dar expressão a essa sensação tão intensa da interioridade do protagonista? Por outro lado, a determinado momento, comecei a sentir a necessidade de uma realidade que tivesse a ver com o espaço aberto, a natureza, a materialidade das rochas, o mar.
Mas não queria que isso fosse diretamente tangível, isto é, queria que a evidência das imagens em super-8 fosse de uma qualidade diferente da evidência das outras imagens. Daí o grão excessivo, a dimensão artificial...
...há mesmo alterações cromáticas manipuladas, fabricadas...
Exato. Todavia, estas imagens também estão a falar do tempo, têm uma dupla realidade, há o espaço e o tempo. Não sabemos de quando elas são, mas sabemos que são antigas, que são antes. Mas eu também queria que essas imagens adquirissem, para o protagonista, o valor de um sonho acordado. Isto é, aquilo que acontece no filme, o facto de, no fim, ele compreender que nunca mais vai voltar a ver a Adriana, que a perdeu, esta compreensão interior é feita através daquelas imagens. Elas são fundamentais porque participam de todos estes sentidos. 
Fale-me um bocadinho da música. Tanto quanto julgo saber, Sinan C. Savaskan nunca tinha feito nada para cinema...
Quando ele viu o filme e começámos a falar do modo como a música ia ser inserida, houve uma ideia decisiva: a suspensão da nota. Eu não estava interessado em colocar a música de uma forma sentimental e a questão era a de saber como ela iria ser capaz de participar da expressão de uma vida suspensa, aquela suspensão interior, fora do tempo, em que o protagonista se encontra. A ideia de uma nota que se alonga e se suspende e se alonga vem daí. Depois descobri que queria utilizar a música nos espaços vazios e que, portanto, devia ter também uma realidade autónoma que permitisse trazê-la para o primeiro plano e ser capaz de existir por si. Não quis música subsidiária da ação ou do protagonista.
Embora não seja um filme de atores, os atores são essenciais. Como é que os escolheu?
Já tinha trabalhado com o João Perry em “Uma Rapariga no Verão”. Já conhecia o Filipe Duarte de o ver em teatro e em cinema. Os outros foram escolhidos por casting. Mas não é isso que lhe interessa, claro, quer saber é a dimensão criativa da escolha do elenco. Usualmente escolhe-se um ator porque ele tem características físicas ou traços de personalidade que se adequam perfeitamente a uma personagem. Para mim, não é isso. Trata-se de encontrar alguém que vai ficar com a personagem, sim, mas o mais importante é o que vai trazer e de que eu não estava à espera. É como se houvesse uma espécie de perceção daquilo que eu ainda não vi na personagem mas que ele vai pensar e fazer.
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 7/6/14


ILO ILO || 25 NOVEMBRO || IPDJ || 21H30


ILO ILO
Anthony Chen
Singapura, 2013, 99’, M/12

FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Anthony Chen
Fotografia: Benoit Soler
Montagem: Hoping Chen, Joanne Cheong
Som: Zhe Wu
Interpretação: Yeo Yann Yann, Chen Tianwen, Angeli Bayani e Koh Jia Ler
Origem: Singapura
Ano: 2013
Duração: 99’








FESTIVAIS e prémios
Festival de Cannes - Câmara de Ouro, Melhor 1º Filme
Palm Springs - Melhor Realizador Revelação
Filadélfia - Prémio do Júri
São Francisco - Melhor Jovem Realizador
Golden Horse Awards - Melhor Filme, Jovem Realizador, Actriz Secundária, Argumento
Bombaim - Melhor Realizador, Actriz
Hong Kong Asian Film Festival - Melhor Jovem Realizador
Asian Pacific Screen Awards - Melhor Realizador
Asian Pacific Film Festival - Melhor Actriz Secundária
Tóquio Filmex - Prémio do Público


CRÍTICA

É quase certo que qualquer português sabe mais sobre, por exemplo, a Coreia do Norte, que no entanto é um país “fechado”, do que sobre Singapura, que no entanto é um estado aberto e cosmopolita.
Entre a memória, mais ou menos mítica, do tempo em que foi uma colónia britânica, e a reputação presente de grande praça financeira onde o dinheiro abunda ou, pelo menos, se ostenta, poucos terão no espírito uma imagem “comum” de Singapura: como vivem as pessoas, como são as ruas, que preocupações têm. Uma das coisas que o cinema, apesar de tudo, ainda faz bem é esta aproximação, quase convivial, a universos que doutra forma permaneceriam estranhos. E esbater a estranheza - portanto, o contrário do “exotismo” ou do cinema turístico - é o que faz Ilo Ilo um filme de Singapura (em si mesmo uma raridade, pelo menos por cá), primeira longa-metragem de um jovem realizador nascido em 1984, Anthony Chen, Caméra d’Or no Festival de Cannes do ano passado.
É um filme “de época”, mas de época recente: final dos anos 90, época de crise financeira asiática, particularmente sentida numa “cidade-mercado” como Singapura. É já esse o vento que sopra sobre as personagens de Ilo Ilo, o pai e a mãe, ele um homem de negócios, ela uma funcionária administrativa, personagens oriundas de uma classe média aparentemente sólida mas que cedo, no filme, começam a entrever a ameaça a essa solidez. Mas ao princípio a solidez ainda é a suficiente para que o casal contrate uma criada filipina (também aprendemos, portanto, alguma coisa sobre os movimentos migratórios dentro da Ásia) para tomar conta do filho, Jiale, um garoto de dez anos, porque estão demasiado ocupados com o trabalho e porque a mãe está grávida outra vez. São os ingredientes narrativos que bastam a Chen para compor um retrato de uma família de Singapura em tempo de crise, e para contar a história, ao mesmo tempo um pouco cómica e um pouco triste, da relação de um miúdo solitário com a sua “tia” filipina (como aparentemente em Singapura os miúdos chamam às amas).


A graça de Ilo Ilo está na sua justeza, na profunda credibilidade das suas personagens, no realismo “doméstico” com que os seus ambientes são descritos. Já agora, na subtileza com que nunca deixa o primado narrativo ser ultrapassado pelo “discurso” ou pela “reflexão”, histórica ou social - isso é uma coisa que lá está em fundo, recortada e definida pela narrativa mas deixada em eco, em contexto. E uma forma de filmar a infância sem as “super-crianças” do cinema americano, uma infância muda e desajeitada, calorosa ainda que por vezes sofrida (a cena do castigo na escola, cuja violência cruel, articulada com o cerimonial nacionalista que a precede é o ponto em que Chen mais evidentemente deixa um apontamento crítico sobre o seu país). Nesse olhar sobre a infância, e sobre o seu pequeno protagonista, Chen faz lembrar bastante o japonês Hirokazu Koreeda. E talvez um pouco mais do que só ele: há uma sombra que também está em Koreeda e que se espalhou bastante por vários cinemas asiáticos, como o de Taiwan (“Ilo Ilo” também lembra um bocadinho o Edward Yang de “Yi Yi”, em tom menor e mais “corrido”) e, pela amostra, o de Singapura. Sim, falamos do senhor Yasujiro Ozu e das suas lições práticas sobre como filmar as vibrações de uma sociedade inteira a partir de pequenas células domésticas e dos seus rituais. “Ilo Ilo” aprendeu alguma coisa com essas lições, e se dizer isto não chega como elogio não imaginamos o que chegará.
Luís Miguel Oliveira, publico

VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA || 18 NOV || IPDJ || 21H30

VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA 
Alain Resnais
França/Alemanha, 2012, 115’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: Vous n'Avez Encore Rien Vu
Realização: Alain Resnais
Argumento: Laurent Herbiet e Alex Réval a partir das peças « Eurydice » e « Cher Antoine ou l’amour raté » de Jean Anouilh 
Fotografia : Eric Gautier
Montagem: Hervé de Luze 
Música: Mark Snow 
Interpretação: Mathieu Amalric, Pierre Arditi, Sabine Azéma,  Jean-Noël Brouté, Anne Consigny, Anny Duperey,  Hippolyte Girardot, Gérard Lartigau, Michel Piccoli
Origem: França/Alemanha
Ano: 2012
Duração: 115’

FESTIVAIS
Festival de Cannes


CRÍTICAS

“Vocês Ainda Não Viram Nada" é o penúltimo título da riquíssima fILmografia de Alain Resnais: uma viagem pelo artifício do teatro que desafia os limites da narrativa cinematográfica — um grande acontecimento!
Não poupemos as palavras: o lançamento simultâneo dos dois títulos finais de Alain Resnais — "Vocês Ainda Não Viram Nada" (2012) e "Amar, Beber e Cantar" (2014) — é um dos acontecimentos fulcrais deste ano cinematográfico. E também uma oportunidade muito especial para reavaliarmos o génio cinematográfico de Resnais a trabalhar com o... teatro!
No primeiro caso, "Vocês Ainda Não Viram Nada", o ponto de partida está em duas peças de Jean Anouilh ("Eurídice" e "Cher Antoine ou l’Amour Raté"), com um twist desconcertante: a personagem central, um encenador interpretado por Denis Podalydès, deixou um registo filmado de uma encenação sua (precisamente de "Eurídice") para ser visto e avaliado depois da sua morte por um grupo de actores que com ele colaboraram ao longo dos anos.
Desse evento pré-programado — vemos os actores sentados em frente do ecrã, um pouco como se nos víssemos num espelho que coincide com o ecrã — nasce um jogo de perversas diferenças e coincidências: Resnais filma, afinal, as contaminações entre o teatro e a vida, de acordo com uma lógica inventiva que pode pôr em causa as próprias relações entre actor e personagem. De tal modo que as personagens se chamam Sabine Azéma, Pierre Arditi, Mathieu Amalric, Lambert Wilson, Michel Piccoli...
Raras vezes se viu um cineasta ao mesmo tempo tão ágil neste equilíbrio instável verdade/artifício e tão inteligente no desafio aos limites tradicionais da ficção cinematográfica. Em última instância, "Vocês Ainda Não Viram Nada" é uma brincadeira com a teatralidade da vida, quer dizer, um exercício de puríssimo cinema.
João Lopes, rtp.pt/cinemax






A história de “Vocês Ainda Não Viram Nada” (que data de 2012) conta-se em duas penadas: após a morte do dramaturgo Antoine d’Anthac, os seus amigos (uma trupe de atores que se autointerpretam) reúnem-se na mansão do falecido para escutar a leitura do seu testamento. Nele, o autor pede-lhes que assistam in loco à projeção em vídeo de uma peça teatral da sua lavra (uma versão moderna do mito de Eurídice e Orfeu, filmada por Denis Podalydès), na qual, outrora, todos eles desempenharam um papel. Os atores são, deste modo, transformados em espectadores e forçados a presenciar a repetição dos gestos que, no passado, eles próprios realizaram. Ë um espartilho do qual cedo se libertarão, murmurando primeiro as falas das personagens e erguendo-se depois das suas cadeiras para — em paralelo com os atores do filme a que assistem — interpretarem de novo os seus antigos papéis. O que se segue é um jogo de transfusões onde tudo se converte no seu contrário (os atores em espectadores, os espectadores em personagens...) e onde não há bengala que nos ampare. Porém, este aparato narrativo servirá de base à construção de um magnífico ensaio sobre o passado (e, sobretudo, sobre as possibilidades de diferença e repetição que ele oferece ao presente). Entenda-se: “Vocês Ainda Não Viram Nada” opera, de princípio a fim, pela sobreposição de sucessivas camadas de um mito (o de Eurídice e Orfeu) que, desde o início dos tempos, os amantes têm vindo a reencenar (mutatis mutandis), como se a tragédia que então atualizam estivesse a ser vivida pela primeira vez. Pois bem: é para vincar a impossibilidade de escaparmos a uma tragédia comum que Resnais dissemina diferentes versões de um mesmo texto, adaptando livremente a “Eurydice” de Jean Anouilh para, em seguida, a submeter às variações executadas pelas duas trupes de atores do filme. E, para perceber que assim é, basta ver a cena em que Lambert Wilson (um dos três Orfeus de serviço) interrompe uma das suas falas, pedindo àqueles que vão repetindo ‘a sua’ história no ecrã que se retirem, ou seja, que o deixem (re)criar em liberdade o texto do seu presente. No final, ficamos — é claro — com a sensação de que, antes disto, ainda não tínhamos visto nada. 
Vasco Baptista Marques, Expresso, 11/10/14



ALENTEJO, ALENTEJO || 11 Novembro || 21h30 || IPDJ

ALENTEJO, ALENTEJO
Sérgio Tréfaut
Portugal, 2013, 100’, M/12

FICHA TÉCNICA
Realização: Sérgio Tréfaut
Montagem: Pedro Marques
Direcção de Fotografia: João Ribeiro
Som: Miguel Moraes Cabral, Olivier Blanc, Armanda Carvalho
Com: Os Camponeses de Pias, Cantadores de Aldeia Nova de São Bento, Grupo da Casa do Povo de Serpa, Os Ceifeiros de Cuba, Grupo do Sindicato Mineiro de Aljustrel, Papoilas do Corvo, Coro Feminino, Cantares de Alcáçovas, Os Rouxinóis da Damaia, Os Bubedanas
Origem: Portugal
Ano: 2013
Duração: 100’

PRÉMIOS
INDIELISBOA 2014:
Prémio Allianz-Digimaster para Melhor Longa-metragem Portuguesa
Premio Tap pata Melhor Documentário Português

NOTA DO REALIZADOR
A MINHA DESCOBERTA DO ALENTEJO
Descobri o Alentejo na minha adolescência. O meu pai, originário da margem esquerda do Guadiana, queria muito que eu conhecesse a terra dos seus antepassados e o terreno fértil onde estava a nascer a «Reforma Agrária». Enviou-me para passar uma semana na casa de camponeses da Amieira, a aldeia de onde provinham os trabalhadores que cultivavam a terra na Quinta da Esperança, o monte onde ele tinha crescido, junto ao rio Ardila. Confesso que foi muito importante para mim ter vivido o quotidiano de uma família na Amieira, aos 12 anos. Senti na pele o abismo que existia entre o mundo cosmopolita em que eu tinha crescido primeiro no Brasil, depois em Paris, rodeado de exilados políticos, jornalistas e universitários, e o modo de vida pobre de uma pequena aldeia alentejana, onde toda a gente trabalhava no campo e, com sorte, aprendera a escrever o nome depois dos 40 anos. Perturbou-me e comoveu-me a generosidade das pessoas que me ofereciam absolutamente tudo o que tinham, sem ter nada. Lembro que a casa de banho, recente e precária, ficava fora da casa. O duche era improvisado com uma mangueira de água fria. No primeiro dia devo ter comido frango porque era visita. Mas depois habituei-me à açorda de alho, algo que já conhecia da minha infância brasileira, nos dias em que a empregada nordestina, dava uma gargalhada e perguntava ao meu pai: «Hoje o Seu Miguel quer uma sopa de água?». Lá em casa, toda a gente se espantava com a delícia com que o meu pai comia aquela água fervida com alho, coentros e um ovo escalfado. Depois voltei muitas vezes ao Alentejo. Rodei várias sequências dos meus documentários por lá (Outro País, Fleurette) e até filmei a quase totalidade da minha primeira ficção (Viagem a Portugal). Ao mergulhar no Alentejo hoje, já em idade madura, reencontro pessoas de uma fé generosa e panteísta, por quem tenho imenso carinho. Sinto que, para eles, a Senhora de Guadalupe, os Reis Magos, Catarina Eufémia e os rebanhos de ovelhas que passeiam na planície são santos de um mesmo altar. A respeito do cante, a história é muito simples: foi graças a um grupo de camponeses alentejanos reunidos em serenata, por baixo da janela do quarto onde a minha mãe dormia pela primeira vez, que o meu pai conseguiu convencê-la a deixar a França para casar com ele. Ao longo da vida, a minha mãe chorava sempre que ouvia cantares alentejanos numa taberna. Ela gostava muito de tabernas. Não creio que a razão da sua emoção fosse apenas a lembrança do seu namoro com o meu pai, mas a poderosa comoção que aquelas vozes saídas do fundo da terra lhe causavam. Comigo acontece o mesmo.
Sérgio Tréfaut



CRÍTICA
Sérgio Tréfaut continua apostado em utilizar o documentário como um instrumento de revelação de vivências singulares: "Alentejo, Alentejo" mostra como os cantares alentejanos são uma tradição viva, envolvendo todas as gerações.
De que falamos quando falamos de documentário? Lembremos apenas o mais simples. Ou seja: um filme documental ajuda-nos a saber/conhecer; ajuda-nos sobretudo a ter em conta como as coisas existem. As coisas, entenda-se: também as pessoas, sobretudo as pessoas.
"Alentejo, Alentejo", de Sérgio Tréfaut, é um objecto que nos ajuda a entender o encanto, a beleza e o poder de comunicação dos tradicionais cantares alentejanos. Como? Começando por recusar a via mais simples e, por certo, mais fácil: a de tratar a tradição como uma espécie de curiosidade pitoresca que sirva para sustentar uma qualquer retórica turística ou, pior ainda, para animar o populismo televisivo. O que está em jogo é bem diferente: a redescoberta das sonoridades alentejanas enraiza-se numa dinâmica viva de passado/presente.
Nomes como os Camponeses de Pias, os Cantadores de Aldeia Nova de São Bento ou o Grupo da Casa do Povo de Serpa (e estou apenas a citar algumas das entidades que colaboraram no filme) surgem, assim, numa dupla e fundamental qualidade: por um lado, são herdeiros directos daqueles cantares — o chamado cante alentejano — e da sua energia poética e simbólica; por outro lado, existem como manifestação de uma atitude que vê o passado como algo que importa reconverter para as manifestações do presente.
Daí que "Alentejo, Alentejo" documente, não apenas os próprios cantares, mas a sua inserção no quotidiano dos nossos dias, incluindo no espaço específico da escola. Há mesmo uma cena tocante (com o grupo Os Rouxinóis da Damaia) em que deparamos com um ensaio, numa escola, que concentra uma ideia fundamental: a de que a transmissão da tradição não se faz convocando uma nostalgia mais ou menos piedosa, mas sim através da permanente associação do gosto de descobrir e do trabalho que enriquece esse gosto.
João Lopes, rtp.pt/cinemax



ENTREVISTA AO REALIZADOR
É reputado documentarista e tem na sua filmografia dos mais carismáticos filmes portugueses. Agora debruça-se sobre o cante alentejano, numa jornada invulgar que vai até à alma de um povo, pela voz das suas gentes. Um Alentejo profundo resgatado pelo seu olhar peculiar. É sobre esse trabalho de três anos que nos fala.
Como é que nasce a vontade de fazer um filme sobre o cante alentejano?
O ponto de partida é o convite da Câmara de Serpa, que decidiu desencadear a candidatura do cante a Património da Humanidade. Sugeriram-me dois filmes, um de dez minutos para integrar a candidatura, cumprindo as regras da UNESCO, e que é estritamente jornalístico, informativo e que explica a um paquistanês como a um australiano ou a um malaio o que é o cante alentejano, mesmo que nunca tenha ouvido falar dele. Foi feito nessa perspetiva, com voz off, o que é um pouco frustrante relativamente às ambições estéticas e à paixão que possa despertar essa música, ter de pôr uma voz off no meio da música para dar explicações! A outra proposta, em simultâneo, era uma longa-metragem com total liberdade e que fiz ao longo de três anos.
Ajudou à decisão de aceitar o facto de se tratar do cante alentejano?
Se me tivessem proposto fazer um filme sobre o fado, por exemplo, não teria aceite, não seria a pessoa indicada nem seria acertado. Mas o cante alentejano sempre me tocou muito. Na música portuguesa, é o que sempre me comoveu mais. Não hesitei e entrei no desafio de descobrir como é que tudo se construiria, se filmava, se gravava.
Este não é um documentário regular. De que premissas partiu para o estruturar?
Uma é minha, a outra vem do convite, que implicava não dever focar apenas um grupo ou uma região, mas ser mais abrangente. Compreendi que nunca teria possibilidade de conhecer os cerca de 150 grupos que havia no início da candidatura e assumi que ia fazer algo sobre a identidade alentejana, a identidade de um povo. São essas as premissas. A partir daí, fui filmar os grupos a cantar. Também fiz pesquisa em arquivos e percebi que o que estava filmado era mau, excetuando uma ou outra coisa, nomeadamente o trabalho do Alfredo Tropa com o Michel Giacometti [“Povo que Canta’], interessante pelo conceito com que o filmaram.

O material, em geral, é tão mau?
É mortiço, triste, predomina o registo simples. Quando se vai a uma taberna e se coloca a câmara à frente de uns cantores, permitindo-nos apenas a alusão à ‘tristeza’, o que se consegue é uma porcaria, e destrói-se a essência do cante. A maioria fica-se por isso, o que impede a possibilidade de reconhecer os grupos de forma alegre, positiva. Fiz uma reflexão com o diretor de fotografia, o João Ribeiro, para perceber como entrar na cabeça das pessoas, entender a essência da música, a alma das gentes. Filmar um grupo com estes pressupostos não é fácil. Optei por fazê-lo com a câmara muito próximo das pessoas em grupo, através de travellings à mão, recusando o plano de conjunto, ou então não se consegue a intimidade pretendida nem se entra ‘dentro’ da música. Acho que descobri como filmar e gravar o som da melhor forma para o projeto. Os primeiros alinhamentos, só com partes musicais, revelaram-se muito interessantes, mas à medida que o filme se tornava maior isso mostrou-se repetitivo, aborrecido...
Daí as entrevistas isoladas e os alunos das escolas...
Pensei neles e também nos poetas populares para dispor de uma forma narrativa mais lírica. E registei muitos depoimentos ou entrevistas. Só que a contaminação do formato dos telejornais faz com que as pessoas tenham um discurso informativo, e tive de deitar muita coisa para o lixo. Culpa minha, provavelmente. Só mais tarde é que me surgiu a hipótese da açorda para fazer com que as pessoas se abrissem mais, pudéssemos chegar à sua intimidade. Afinal, a açorda faz parte da identidade alentejana e tem também a ver com a minha própria relação com o Alentejo, esteve no meu primeiro contacto com aquela região. E essa opção mostrou-se bastante forte para o andamento do projeto.
Tem uma relação anterior com o Alentejo. Trabalha isso no filme?
O filme não tem nada de autobiográfico, longe disso. Se tenho essa relação com o cante é porque aos 12 anos, chegado a Portugal vindo do Brasil e de Paris, menino da cidade habituado à convivência com intelectuais, exilados políticos e universitários, tive a experiência do contacto com um território onde encontrei pessoas que raras vezes sabiam escrever o próprio nome e que não tendo praticamente nada ofereciam tudo o que possuíam, tinham o hábito da partilha, o que me marcou para sempre. Nutro um enorme respeito pelas pessoas que então conheci e que reconhecia como a parte mais fraca de um sistema que não lhes permitia ter condições dignas de vida, mas que, apesar de tudo, tinham uma nobreza enorme.
O que está bem vincado no testemunho da senhora Catarina, do Baleizão, quando fala do tempo em que o pai dividia uma sardinha pelos filhos e do respeito e dignidade que transmite ao falar desses tempos de pobreza extrema.
Fala de ter frio, de andar descalça até no inverno, a Catarina, que ainda hoje não sabe assinar. E que conta aquela pobreza toda e acaba dizendo que, mesmo assim, iam pela estrada em direção ao trabalho nos campos, com tão tenra idade, cantando as modinhas. Ela é uma força da natureza, uma mulher maravilhosa. 

É a primeira a ser filmada na preparação da açorda, a estratégia para chegar à intimidade dos cantores. E há, quase ao fim do filme, o grupo de três jovens que preparam um petisco uma açorda, exatamente e que fazem uma reflexão profunda sobre a sua pertença ao cante alentejano.
Correu muito bem com Catarina. A partir daí surgiu a ideia de ter as pessoas a falar após ganharmos intimidade, e cozinhar pareceu bem. Carlos Arruda, que é um rapaz de vinte e tal anos, solista do grupo de Serpa, faz aquela açorda já numa cozinha toda high-tech lisboeta — trabalha no Banco de Portugal — e fala de quanto lutou na adolescência contra os colegas de escola, que achavam que era ridículo e risível pertencer a um grupo de cante. É mais importante ter depoimentos íntimos do que discursos teóricos, que dariam outro filme, diferente... Por exemplo, há tanto a dizer sobre as diásporas, só que preferi que as pessoas que falam sobre as diásporas falassem de dentro. Se o filme não fala do facto de haver uma diáspora alentejana no Canadá ou nos Estados Unidos, ou que há grupos na Alemanha e na França, paciência! Desejo é que se entenda que as pessoas que tiveram de sair do Alentejo trouxeram consigo essa paixão, a condição dessa pertença. Mesmo quando as modas têm autor conhecido, quando os grupos as editam em disco, raras vezes está lá escrito quem é. Trata-se de um património coletivo, e em qualquer lugarejo toda a gente sabe cantar as modas mais conhecidas, com variações de lugar para lugar. Mas é um património comum, que teve a sua evolução histórica e que conhece hoje, um novo entusiasmo.
António Loja Neves, Expresso, 20/9/14