A Vida Invisível
Vítor Gonçalves
Portugal, 2013, 99’, M/14
FICHA TÉCNICA
Realização: Vítor Gonçalves
Argumento: Vítor Gonçalves,
Mónica Santana Baptista, Jorge Braz Santos
Fotografia: Leonardo Simões
Montagem: Rodrigo
Pereira, Rui Alexandre Santos
Música: Sinan C. Savaskan
Interpretação: Filipe Duarte, João
Perry, Maria João Pinho
Origem: Portugal
Ano: 2013
Duração: 99’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Roma - Selecção Oficial
Festival de Roterdão - Selecção Oficial
NOTA DO REALIZADOR
No hospital, ao preparar uma
cena, vi a câmara sobre o tripé numa sala que desconhecia. Duma janela viam-se
umas árvores e como fundo o mar agreste. Virei a câmara para os ramos agitados
pelo vento. A excitação nascera de alguma coisa que vislumbrara e a que só
poderia aceder através da materialidade do plano. Nem pensava que fosse
destinado ao filme.
Era como se estivesse noutro
território de trabalho, no qual o mistério do que eu filmava residisse no facto
de tudo ter a ver com uma sugestão e nada ser afirmado com certeza.
Era como se eu desejasse
fazer um filme secreto.
Durante a montagem, os planos
deste outro filme fizeram a sua aparição abrindo espaços de possibilidade para
as ideias em formação.
O sentido, sempre no processo
de se tornar uma coisa nova, veio um dia, como por atração, fixar-se, colocando
o plano das árvores no seu lugar. Ele era agora capaz de participar ma
expressão de um momento decisivo da personagem. Aquele em que ela se torna
sensível à ideia da sua própria mortalidade e isso lhe oferece a possibilidade
de se sentir viva.
CRÍTICA
Vítor Gonçalves, o cineasta
de "Uma Rapariga no Verão" (1986), regressa com "Uma Vida
Invisível", protagonizado por Filipe Duarte — um belo filme, desencantado
e cristalino, sobre um presente visceralmente português.
Quando descobrimos um novo
filme português, é quase inevitável que (nos) perguntemos: que Portugal vemos
na história que o filme nos conta? No caso de "A Vida
Invisível", de Vítor Gonçalves, apetece responder através de um paradoxo
enraizado na fascinante complexidade dos resultados; por um lado, deparamos com
a saga abstracta de alguém que tenta encontrar um sentido para a sua
identidade; por outro lado, a sua trajectória revela-se indissociável de um
aqui e agora muito concreto, visceralmente português.
Esta é a história de Hugo
(Filipe Duarte) e da sua relação distante, mas cúmplice, com o seu superior
hierárquico, António (João Perry). A doença terminal de António vai desencadear
um efeito revelador: de algum modo, a evolução do seu estado de saúde funciona
como um bisturi do próprio destino de Hugo, e tanto mais quanto este, ao
reencontrar Adriana (Maria João Pinho), parece acreditar na possibilidade de
voltarem a ter uma vida conjunta...
É uma história a que
acedemos, não exactamente tendo Lisboa como pano de fundo, mas como se a cidade
fosse o lugar de uma vertigem (invisível, apetece
dizer) que contamina todos os gestos de todas as personagens. Exemplo modelar
dessa respiração narrativa é o conjunto de planos sobre as obras no Terreiro do
Paço, por assim dizer expondo uma lógica de desnudamento e reconstrução.
"A Vida Invisível"
possui, assim, a dinâmica de uma crónica social em que, explicitamente ou não,
reconhecemos algumas componentes da nossa conjuntura: a solidão urbana, a
desagregação dos laços familiares, o esvaziamento humano das relações
profissionais... Ao mesmo tempo, tudo se passa como se Vítor Gonçalves nos
quisesse mostrar o desejo imenso de sair dessa teia, a par da dificuldade de
cada um formular tal desejo — ou partilhá-lo com outro.
Quase três décadas passadas
sobre "Uma Rapariga no Verão" (1986), Vítor Gonçalves regressa,
assim, a uma escrita da intimidade, habitada por ecos díspares da nossa
actualidade. "A Vida Invisível" é a prova muito real de que é
possível filmar o que somos (ou imaginamos ser) sem ceder aos estereótipos
dramáticos ou morais que, todos os dias, circulam pelas telenovelas.
Decididamente, isto não é a rotina televisiva — isto é cinema.
João Lopes, rtp.pt/cinemax/
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Na
primeira cena de “A Vida Invisível”, o protagonista, interpretado por Filipe
Duarte, diz “estes filmes não me saem da cabeça”. Essa frase supõe uma série de
saberes quanto ao que vem a seguir. Isso já
estava no argumento? A escrita do
argumento é a base do seu cinema?
É
evidente que passo muito tempo a pensar no argumento — e a escrever. É um
grande trabalho solitário, mas fui tendo conversas com a Mónica [Santana
Baptista] e com o Jorge [Braz Santos] e é por isso que os nomes deles aparecem
no genérico. Mas o argumento, para mim, nunca está fechado. É um organismo
vivo, tem vida própria, o trabalho sobre o argumento não é prévio, atravessa
todo o processo de construção do filme, da rodagem à montagem e à pós-produção.
Mas, quando faz um plano de rodagem, tudo se passa como é hábito? Por exemplo, na quarta-feira à tarde roda-se a cena 24 no décor X, com os atores Y e Z, certo?
Mas, quando faz um plano de rodagem, tudo se passa como é hábito? Por exemplo, na quarta-feira à tarde roda-se a cena 24 no décor X, com os atores Y e Z, certo?
Sim, mas, para mim, o argumento
não são umas páginas que fecham a cena, mas umas páginas que abrem para a cena. Nunca se trata de filmar uma cena
que já está completamente definida. Há qualquer coisa de misterioso na passagem
da ideia à materialidade da expressão, através dos atores, de um sofá, da
presença de uma luz. É nesse confronto com a materialidade, com o grão de uma
voz, com a forma como um ator se senta ou fala que a cena vai existir.
È nítido que nada está por acaso em “A Vida Invisível”. Gostava de saber se
isso é fruto de uma organização minuciosa da cena ou se, pelo contrário, a cena
resulta do encontro da ideia original com algo que de repente se descobre...
Por
um lado, é evidente que eu organizo o mundo, estou obcecado por organizar o
mundo configurado no filme. Mas, para mim, filmar é ser capaz de trabalhar num
território de que ainda não sei como vai ser encontrada a forma final de
expressão.
Aqueles
corredores do ministério, a estética arquitetónica das portas e das paredes,
são algo que associo aos interiores do Estado Novo. Mas aquela luz esverdeada
não estava lá — e é um cromatismo que se traduz como a
cor exata de um mundo que se desagrega, é a luz da putrefação. Aquela luz é uma
escolha...
Exato.
Foi muito importante o trabalho que tive de fazer com a luz, em particular na
relação entre a luz do ministério e a luz da casa do protagonista. E muito em
particular na expressão da ideia de espaço fechado, na relação com um mundo
exterior onde existe uma luz que chega a queimar quando vai contra as cortinas,
quando atravessa os estores e queima a imagem, face a uma obscuridade, uma tonalidade
interior que é onde o protagonista vive, onde está inteiramente instalado. Tive
sempre a noção de que a luz na expressão da história era decisiva, era
essencial.
Deixe-me
voltar o início do filme e às imagens que são uma herança do personagem de João
Perry e se tornam quase assombrações do protagonista. Quando partiu para a
rodagem, já sabia que essas imagens iam ser fundamentais na dramaturgia?
Não,
por isso é que é preciso manter um espaço criativo ligado ao inconsciente, não fazer
um filme apenas no domínio da razão.
E ator, nesse primeiro plano na escada, já sabia que ia haver uma voz off e o que
ela dizia?
Não, não... A voz off foi uma decisão muito posterior.
Não, não... A voz off foi uma decisão muito posterior.
Então o que é que o ator tem de exprimir? Ou não tem de exprimir nada?
Nessa
cena, o que eu estava a trabalhar
com o Filipe Duarte era uma de
insónia, ali no ministério, em que ele não era capaz de voltar para casa, casa
que é, ao mesmo tempo, protetora e que sente como prisão. A ideia era essa.
Bastou.
E as
imagens que o personagem de João Perry deixa em herança, como surgiram?
Por um lado, o filme está
constantemente a fazer referência ao espaço de uma vida que não é vivida. E
havia um problema, ao nível da dramatização: como falar dessa vida que não é
vivida?, como dar expressão a essa sensação tão intensa da interioridade do
protagonista? Por outro lado, a determinado momento, comecei a sentir a
necessidade de uma realidade que tivesse a ver com o espaço aberto, a natureza,
a materialidade das rochas, o mar.
Mas
não queria que isso fosse diretamente tangível, isto é, queria que a evidência
das imagens em super-8 fosse de uma qualidade diferente da evidência das outras
imagens. Daí o grão excessivo, a dimensão artificial...
...há
mesmo alterações cromáticas manipuladas, fabricadas...
Exato. Todavia, estas imagens também estão a falar do tempo, têm uma dupla realidade,
há o espaço e o tempo. Não sabemos de quando elas são, mas sabemos que são
antigas, que são antes. Mas eu também queria que essas imagens adquirissem,
para o protagonista, o valor de um sonho acordado. Isto é, aquilo que acontece
no filme, o facto de, no fim, ele compreender que nunca mais vai voltar a ver a
Adriana, que a perdeu, esta compreensão interior é feita através daquelas
imagens. Elas são fundamentais porque participam de todos estes sentidos.
Fale-me um bocadinho da música. Tanto quanto julgo saber, Sinan C. Savaskan nunca tinha feito nada para cinema...
Fale-me um bocadinho da música. Tanto quanto julgo saber, Sinan C. Savaskan nunca tinha feito nada para cinema...
Quando ele viu o filme e começámos a falar do modo como a música ia ser inserida,
houve uma ideia decisiva: a suspensão da nota. Eu não estava interessado em
colocar a música de uma forma sentimental e a questão era a de saber como ela
iria ser capaz de participar da expressão de uma vida suspensa, aquela
suspensão interior, fora do tempo, em que o protagonista se encontra. A ideia
de uma nota que se alonga e se suspende e se alonga vem daí. Depois descobri
que queria utilizar a música nos espaços vazios e que, portanto, devia ter também
uma realidade autónoma que permitisse trazê-la para o primeiro plano e ser
capaz de existir por si. Não quis música subsidiária da ação ou do
protagonista.
Embora não seja um filme de atores, os atores são essenciais. Como é que os escolheu?
Já tinha trabalhado com o João Perry em “Uma Rapariga no Verão”. Já conhecia o Filipe Duarte de o ver em teatro e em cinema. Os outros foram escolhidos por casting. Mas não é isso que lhe interessa, claro, quer saber é a dimensão criativa da escolha do elenco. Usualmente escolhe-se um ator porque ele tem características físicas ou traços de personalidade que se adequam perfeitamente a uma personagem. Para mim, não é isso. Trata-se de encontrar alguém que vai ficar com a personagem, sim, mas o mais importante é o que vai trazer e de que eu não estava à espera. É como se houvesse uma espécie de perceção daquilo que eu ainda não vi na personagem mas que ele vai pensar e fazer.
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 7/6/14
Embora não seja um filme de atores, os atores são essenciais. Como é que os escolheu?
Já tinha trabalhado com o João Perry em “Uma Rapariga no Verão”. Já conhecia o Filipe Duarte de o ver em teatro e em cinema. Os outros foram escolhidos por casting. Mas não é isso que lhe interessa, claro, quer saber é a dimensão criativa da escolha do elenco. Usualmente escolhe-se um ator porque ele tem características físicas ou traços de personalidade que se adequam perfeitamente a uma personagem. Para mim, não é isso. Trata-se de encontrar alguém que vai ficar com a personagem, sim, mas o mais importante é o que vai trazer e de que eu não estava à espera. É como se houvesse uma espécie de perceção daquilo que eu ainda não vi na personagem mas que ele vai pensar e fazer.
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 7/6/14