VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA
Alain Resnais
França/Alemanha, 2012, 115’, M/12
FICHA
TÉCNICA
Título
Original: Vous n'Avez Encore Rien
Vu
Realização: Alain Resnais
Argumento: Laurent
Herbiet e Alex Réval a
partir das peças « Eurydice »
e « Cher Antoine ou l’amour raté »
de Jean Anouilh
Fotografia : Eric Gautier
Montagem: Hervé
de Luze
Música: Mark
Snow
Interpretação: Mathieu
Amalric, Pierre Arditi, Sabine Azéma, Jean-Noël Brouté, Anne Consigny,
Anny Duperey, Hippolyte Girardot, Gérard Lartigau, Michel Piccoli
Origem: França/Alemanha
Ano: 2012
Duração: 115’
FESTIVAIS
Festival de Cannes
CRÍTICAS
“Vocês Ainda Não Viram Nada" é o
penúltimo título da riquíssima fILmografia de Alain Resnais: uma viagem pelo
artifício do teatro que desafia os limites da narrativa cinematográfica — um
grande acontecimento!
Não poupemos as palavras: o lançamento
simultâneo dos dois títulos finais de Alain Resnais — "Vocês Ainda Não
Viram Nada" (2012) e "Amar, Beber e Cantar" (2014) — é um dos
acontecimentos fulcrais deste ano cinematográfico. E também uma oportunidade
muito especial para reavaliarmos o génio cinematográfico de Resnais a trabalhar
com o... teatro!
No primeiro caso, "Vocês Ainda Não Viram
Nada", o ponto de partida está em duas peças de Jean Anouilh
("Eurídice" e "Cher Antoine ou l’Amour Raté"), com um twist desconcertante: a personagem central,
um encenador interpretado por Denis Podalydès, deixou um registo filmado de uma
encenação sua (precisamente de "Eurídice") para ser visto e avaliado
depois da sua morte por um grupo de actores que com ele colaboraram ao longo
dos anos.
Desse evento pré-programado — vemos os
actores sentados em frente do ecrã, um pouco como se nos víssemos num espelho
que coincide com o ecrã — nasce um jogo de perversas diferenças e
coincidências: Resnais filma, afinal, as contaminações entre o teatro e a vida, de acordo com uma lógica inventiva que pode pôr em
causa as próprias relações entre actor e personagem. De tal modo
que as personagens se chamam Sabine Azéma, Pierre Arditi, Mathieu Amalric,
Lambert Wilson, Michel Piccoli...
Raras
vezes se viu um cineasta ao mesmo tempo tão ágil neste equilíbrio instável
verdade/artifício e tão inteligente no desafio aos limites tradicionais da
ficção cinematográfica. Em última instância, "Vocês Ainda Não Viram
Nada" é uma brincadeira com a teatralidade da vida, quer dizer, um
exercício de puríssimo cinema.
João Lopes, rtp.pt/cinemax
A história de “Vocês Ainda Não Viram Nada” (que data de 2012) conta-se em duas penadas: após a
morte do dramaturgo Antoine d’Anthac, os seus amigos (uma trupe de atores que
se autointerpretam) reúnem-se na mansão do falecido para escutar a leitura do
seu testamento. Nele, o autor pede-lhes que assistam in loco à projeção
em vídeo de uma peça teatral da sua lavra (uma versão moderna do mito de
Eurídice e Orfeu, filmada por Denis Podalydès), na qual, outrora, todos eles
desempenharam um papel. Os atores são, deste modo, transformados em
espectadores e forçados a presenciar a repetição dos gestos que, no passado,
eles próprios realizaram. Ë um espartilho do qual cedo se libertarão, murmurando
primeiro as falas das personagens e erguendo-se depois das suas cadeiras para —
em paralelo com os atores do filme a que assistem — interpretarem de novo os
seus antigos papéis. O que se segue é um jogo de transfusões onde tudo se
converte no seu contrário (os
atores em espectadores, os espectadores em personagens...) e onde não há
bengala que nos ampare. Porém, este aparato narrativo servirá de base à
construção de um magnífico ensaio sobre o passado (e, sobretudo, sobre as
possibilidades de diferença e repetição que ele oferece ao presente).
Entenda-se: “Vocês Ainda Não Viram Nada” opera, de princípio a fim, pela
sobreposição de sucessivas camadas de um mito (o de Eurídice e Orfeu) que,
desde o início dos tempos, os amantes têm vindo a reencenar (mutatis
mutandis), como se a tragédia que então atualizam estivesse a ser vivida
pela primeira vez. Pois bem: é para vincar a impossibilidade de escaparmos a
uma tragédia comum que Resnais dissemina diferentes versões de um mesmo texto,
adaptando livremente a “Eurydice” de Jean Anouilh para, em seguida, a submeter
às variações executadas pelas duas trupes de atores do filme. E, para perceber
que assim é, basta ver a cena em que Lambert Wilson (um dos três Orfeus de
serviço) interrompe uma das suas falas, pedindo àqueles que vão repetindo ‘a
sua’ história no ecrã que se retirem, ou seja, que o deixem (re)criar em
liberdade o texto do seu presente. No final, ficamos — é claro — com a sensação
de que, antes disto, ainda não tínhamos visto nada.
Vasco Baptista Marques,
Expresso, 11/10/14
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