ALENTEJO, ALENTEJO
Sérgio
Tréfaut
Portugal, 2013, 100’, M/12
FICHA
TÉCNICA
Realização: Sérgio Tréfaut
Montagem: Pedro Marques
Direcção de Fotografia: João
Ribeiro
Som: Miguel Moraes Cabral, Olivier Blanc,
Armanda Carvalho
Com:
Os Camponeses de Pias, Cantadores de Aldeia Nova de
São Bento, Grupo da Casa do Povo de
Serpa, Os Ceifeiros de Cuba, Grupo do Sindicato Mineiro de Aljustrel, Papoilas
do Corvo, Coro Feminino, Cantares de Alcáçovas, Os Rouxinóis da Damaia, Os
Bubedanas
Origem:
Portugal
Ano:
2013
Duração:
100’
PRÉMIOS
INDIELISBOA
2014:
Prémio
Allianz-Digimaster para Melhor Longa-metragem Portuguesa
Premio
Tap pata Melhor Documentário Português
NOTA
DO REALIZADOR
A MINHA DESCOBERTA
DO ALENTEJO
Descobri o Alentejo na minha adolescência. O
meu pai, originário da margem esquerda do Guadiana, queria muito que eu
conhecesse a terra dos seus antepassados e o terreno fértil onde estava a
nascer a «Reforma Agrária». Enviou-me para passar uma semana na casa de
camponeses da Amieira, a aldeia de onde provinham os trabalhadores que
cultivavam a terra na Quinta da Esperança, o monte onde ele tinha crescido,
junto ao rio Ardila. Confesso que foi muito importante para mim ter vivido o
quotidiano de uma família na Amieira, aos 12 anos. Senti na pele o abismo que
existia entre o mundo cosmopolita em que eu tinha crescido primeiro no Brasil,
depois em Paris, rodeado de exilados políticos, jornalistas e universitários, e
o modo de vida pobre de uma pequena aldeia alentejana, onde toda a gente
trabalhava no campo e, com sorte, aprendera a escrever o nome depois dos 40
anos. Perturbou-me e comoveu-me a generosidade das pessoas que me ofereciam
absolutamente tudo o que tinham, sem ter nada. Lembro que a casa de banho,
recente e precária, ficava fora da casa. O duche era improvisado com uma
mangueira de água fria. No primeiro dia devo ter comido frango porque era
visita. Mas depois habituei-me à açorda de alho, algo que já conhecia da minha
infância brasileira, nos dias em que a empregada nordestina, dava uma
gargalhada e perguntava ao meu pai: «Hoje o Seu Miguel quer uma sopa de água?».
Lá em casa, toda a gente se espantava com a delícia com que o meu pai comia
aquela água fervida com alho, coentros e um ovo escalfado. Depois voltei muitas
vezes ao Alentejo. Rodei várias sequências dos meus documentários por lá (Outro País, Fleurette) e até filmei a
quase totalidade da minha primeira ficção (Viagem a Portugal). Ao mergulhar no Alentejo hoje, já em idade
madura, reencontro pessoas de uma fé generosa e panteísta, por quem tenho
imenso carinho. Sinto que, para eles, a Senhora de Guadalupe, os Reis Magos,
Catarina Eufémia e os rebanhos de ovelhas que passeiam na planície são santos
de um mesmo altar. A respeito do cante, a história é muito simples: foi graças
a um grupo de camponeses alentejanos reunidos em serenata, por baixo da janela
do quarto onde a minha mãe dormia pela primeira vez, que o meu pai conseguiu
convencê-la a deixar a França para casar com ele. Ao longo da vida, a minha mãe
chorava sempre que ouvia cantares alentejanos numa taberna. Ela gostava muito
de tabernas. Não creio que a razão da sua emoção fosse apenas a lembrança do
seu namoro com o meu pai, mas a poderosa comoção que aquelas vozes saídas do
fundo da terra lhe causavam. Comigo acontece o mesmo.
Sérgio
Tréfaut
CRÍTICA
Sérgio Tréfaut continua apostado em utilizar
o documentário como um instrumento de revelação de vivências singulares:
"Alentejo, Alentejo" mostra como os cantares alentejanos são uma
tradição viva, envolvendo todas as gerações.
De que falamos quando falamos de documentário?
Lembremos apenas o mais simples. Ou seja: um filme documental ajuda-nos a
saber/conhecer; ajuda-nos sobretudo a ter em conta como as coisas existem.
As coisas, entenda-se: também as pessoas, sobretudo as pessoas.
"Alentejo, Alentejo", de Sérgio
Tréfaut, é um objecto que nos ajuda a entender o encanto, a beleza e o poder de
comunicação dos tradicionais cantares alentejanos. Como? Começando por recusar
a via mais simples e, por certo, mais fácil: a de tratar a tradição como uma
espécie de curiosidade pitoresca que sirva para sustentar uma qualquer retórica
turística ou, pior ainda, para animar o populismo televisivo. O que está em
jogo é bem diferente: a redescoberta das sonoridades alentejanas enraiza-se
numa dinâmica viva de passado/presente.
Nomes como os Camponeses de Pias, os
Cantadores de Aldeia Nova de São Bento ou o Grupo da Casa do Povo de Serpa (e
estou apenas a citar algumas das entidades que colaboraram no filme) surgem,
assim, numa dupla e fundamental qualidade: por um lado, são herdeiros directos
daqueles cantares — o chamado cante alentejano — e da sua energia
poética e simbólica; por outro lado, existem como manifestação de uma atitude
que vê o passado como algo que importa reconverter para as manifestações do
presente.
Daí que "Alentejo, Alentejo"
documente, não apenas os próprios cantares, mas a sua inserção no quotidiano
dos nossos dias, incluindo no espaço específico da escola. Há mesmo uma cena
tocante (com o grupo Os Rouxinóis da Damaia) em que deparamos com um ensaio,
numa escola, que concentra uma ideia fundamental: a de que a transmissão da
tradição não se faz convocando uma nostalgia mais ou menos piedosa, mas sim
através da permanente associação do gosto de descobrir e do trabalho que
enriquece esse gosto.
João Lopes, rtp.pt/cinemax
ENTREVISTA AO REALIZADOR
É
reputado documentarista e tem na sua filmografia dos mais carismáticos filmes
portugueses. Agora debruça-se sobre o cante alentejano, numa jornada invulgar
que vai até à alma de um povo, pela voz das suas gentes. Um Alentejo profundo
resgatado pelo seu olhar peculiar. É sobre esse trabalho de três anos que nos
fala.
Como
é que nasce a vontade de fazer um filme sobre o cante alentejano?
O ponto de partida é o convite da Câmara de Serpa, que decidiu desencadear a candidatura
do cante a Património da Humanidade. Sugeriram-me dois filmes, um de dez
minutos para integrar a candidatura, cumprindo as regras da UNESCO, e que é
estritamente jornalístico, informativo e que explica a um paquistanês como a um
australiano ou a um malaio o que é o cante alentejano, mesmo que nunca tenha
ouvido falar dele. Foi feito nessa perspetiva, com voz off, o que é um
pouco frustrante relativamente às ambições estéticas e à paixão que possa
despertar essa música, ter de pôr uma voz off no meio da música para dar
explicações! A outra proposta, em simultâneo, era uma longa-metragem com total
liberdade e que fiz ao longo de três anos.
Ajudou
à decisão de aceitar o facto de se tratar do cante alentejano?
Se me tivessem proposto fazer um
filme sobre o fado, por exemplo, não teria aceite, não seria a pessoa indicada
nem seria acertado. Mas o cante alentejano sempre me tocou muito. Na música
portuguesa, é o que sempre me comoveu mais. Não hesitei e entrei no desafio de
descobrir como é que tudo se construiria, se filmava, se gravava.
Este
não é um documentário regular. De que premissas partiu para o estruturar?
Uma é minha, a outra vem do convite, que
implicava não dever focar apenas um grupo ou uma região, mas ser mais
abrangente. Compreendi que nunca teria possibilidade de conhecer os cerca de
150 grupos que havia no início da candidatura e assumi que ia fazer algo sobre
a identidade alentejana, a identidade de um povo. São essas as premissas. A
partir daí, fui filmar os grupos a cantar. Também fiz pesquisa em arquivos e
percebi que o que estava filmado era mau, excetuando uma ou outra coisa,
nomeadamente o trabalho do Alfredo Tropa com o Michel Giacometti [“Povo que
Canta’], interessante pelo conceito com que o filmaram.
O material, em geral, é tão mau?
É
mortiço, triste, predomina o registo simples. Quando se vai a uma taberna e se
coloca a câmara à frente de uns cantores, permitindo-nos apenas a alusão à
‘tristeza’, o que se consegue é uma porcaria, e destrói-se a essência do cante.
A maioria fica-se por isso, o que impede a possibilidade de reconhecer os
grupos de forma alegre, positiva. Fiz uma reflexão com o diretor de fotografia,
o João Ribeiro, para perceber como entrar na cabeça das pessoas, entender a
essência da música, a alma das gentes. Filmar um grupo com estes pressupostos
não é fácil. Optei por fazê-lo com a câmara muito próximo das pessoas em grupo,
através de travellings à mão, recusando o plano de conjunto, ou então
não se consegue a intimidade pretendida nem se entra ‘dentro’ da música. Acho
que descobri como filmar e gravar o som da melhor forma para o projeto. Os
primeiros alinhamentos, só com partes musicais, revelaram-se muito
interessantes, mas à medida que o filme se tornava maior isso mostrou-se
repetitivo, aborrecido...
Daí as entrevistas isoladas e os alunos das escolas...
Daí as entrevistas isoladas e os alunos das escolas...
Pensei neles e também nos poetas
populares para dispor de uma
forma narrativa mais lírica. E registei muitos depoimentos ou entrevistas. Só
que a contaminação do formato dos telejornais faz com que as pessoas tenham um
discurso informativo, e tive de deitar muita coisa para o lixo. Culpa minha,
provavelmente. Só mais tarde é que me surgiu a hipótese da açorda para fazer
com que as pessoas se abrissem mais, pudéssemos chegar à sua intimidade.
Afinal, a açorda faz parte da identidade alentejana e tem também a ver com a
minha própria relação com o Alentejo, esteve no meu primeiro contacto com
aquela região. E essa opção mostrou-se bastante forte para o andamento do
projeto.
Tem uma relação anterior com o Alentejo. Trabalha isso no filme?
Tem uma relação anterior com o Alentejo. Trabalha isso no filme?
O filme não tem nada de autobiográfico,
longe disso. Se tenho essa
relação com o cante é porque aos 12 anos,
chegado a Portugal vindo do Brasil e de Paris, menino da cidade habituado à
convivência com intelectuais, exilados políticos e universitários, tive a
experiência do contacto com um território onde encontrei pessoas que raras
vezes sabiam escrever o próprio nome e que não tendo praticamente nada
ofereciam tudo o que possuíam, tinham o hábito da partilha, o que me marcou
para sempre. Nutro um enorme respeito pelas pessoas que então conheci e que
reconhecia como a parte mais fraca de um sistema que não lhes permitia ter
condições dignas de vida, mas que, apesar de tudo, tinham uma nobreza enorme.
O que
está bem vincado no testemunho da senhora Catarina, do Baleizão, quando fala do
tempo em que o pai dividia uma sardinha pelos filhos e do respeito e dignidade
que transmite ao falar desses tempos de pobreza extrema.
Fala de ter frio, de andar descalça até no inverno, a Catarina, que
ainda hoje não sabe assinar. E que conta aquela pobreza toda e acaba dizendo
que, mesmo assim, iam pela estrada em direção ao trabalho nos campos, com tão
tenra idade, cantando as modinhas. Ela é uma força da natureza, uma
mulher maravilhosa.
É a primeira a ser filmada na preparação da açorda, a estratégia para chegar à intimidade dos cantores. E há, quase ao fim do filme, o grupo de três jovens que preparam um petisco — uma açorda, exatamente — e que fazem uma reflexão profunda sobre a sua pertença ao cante alentejano.
Correu
muito bem com Catarina. A partir daí surgiu a ideia de ter as pessoas a falar após ganharmos intimidade, e cozinhar pareceu bem.
Carlos Arruda, que é um rapaz de
vinte e tal anos, solista do grupo de
Serpa, faz aquela açorda já numa cozinha toda high-tech lisboeta
— trabalha no Banco de Portugal — e fala de quanto lutou na adolescência contra
os colegas de escola, que achavam que era ridículo e risível pertencer a um
grupo de cante. É mais importante ter depoimentos íntimos do que discursos
teóricos, que dariam outro filme, diferente... Por exemplo, há tanto a dizer
sobre as diásporas, só que preferi que as pessoas que falam sobre as diásporas
falassem de dentro. Se o filme não fala do facto de haver uma diáspora
alentejana no Canadá ou nos Estados Unidos, ou que há grupos na Alemanha e na
França, paciência! Desejo é que se entenda que as pessoas que tiveram de sair
do Alentejo trouxeram consigo essa paixão, a condição dessa pertença. Mesmo
quando as modas têm autor conhecido, quando os grupos as editam em disco, raras
vezes está lá escrito quem é. Trata-se de um património coletivo, e em qualquer
lugarejo toda a gente sabe cantar as modas mais conhecidas, com variações de
lugar para lugar. Mas é um património comum, que teve a sua evolução histórica
e que conhece hoje, um novo entusiasmo.
António Loja Neves, Expresso, 20/9/14
António Loja Neves, Expresso, 20/9/14
Sem comentários:
Enviar um comentário