20 JANEIRO || 21h30 || IPDJ
A PRAÇA
Sergei Loznitsa, Ucrânia,
2014, 130’, M/12
FICHA TÉCNICA
Título Original: Maïdan
Realização: Sergei Loznitsa
Montagem:
Danielius
Kokanauskis e Sergei Loznitsa Fotografia:
Sergei Loznitsa e Serhiy Stetsenko
Som:
Vladimir Golovnitskiy
Origem:
Ucrânia
Ano:
2014
Duração:
130’
FESTIVAIS
Festival de
Cannes - Sessão Especial
Festival
Doclisboa - Selecção Oficial
NOTAS DO REALIZADOR
Fui a
Kiev em meados de dezembro. Eu sabia que era urgente. Eu sabia que tinha de
estar lá e tinha de filmar. Adiei todos os meus outros projetos e compromissos
e fui para Maïdan.
O
ambiente eufórico dos primeiros dias da revolta de Maïdan era tão reconfortante
e emancipador, que a sensação era a de estar no ventre materno. Nunca antes eu
tinha visto ou sentido tamanha solidariedade, camaradagem e um autêntico
espírito de liberdade. Foi incrível ver tantos voluntários trabalharem juntos, numa
imensa harmonia e com grande zelo. Todos pareciam estar atarefados: a vigiar
Maïdan, a ajudar nas cozinhas, a dar assistência médica, a atuar no palco deste
carnaval folclórico medieval – o espírito livre da nação, que desperta após um
longo sono.
Durante
as primeiras semanas da revolta de Maïdan, o perigo estava presente, mas havia
também muito humor e riso. Foi este sentido de humor ucraniano tão particular,
que os ajudou a superarem alguns dos momentos mais negros da história deste
país. Eles riam-se dos políticos incompetentes e corruptos, em vez de os
odiarem. A energia criativa era avassaladora e dezenas de cantores e poetas
amadores interpretaram as suas baladas muito ingénuas, mas incrivelmente
sinceras no palco de Maïdan. Havia também a abundância de comida… Esta foi
talvez a revolução mais bem alimentada da História. Cozinhas de campanha
trabalhavam sem parar e os voluntários e cidadãos vulgares de Kiev traziam
toneladas de alimentos e iguarias caseiras para alimentar toda a gente – eles
não perguntavam se apoiávamos a oposição ou o regime… Em meados de janeiro, o
ambiente alterou-se. Já não se tratava de um carnaval, mas sim de uma batalha.
Sangue
foi derramado. Já não era um protesto pacífico contra o presidente corrupto.
Era uma luta contra um regime diabólico era uma revolução…
A
PRAÇA é o primeiro filme na minha longa carreira de realizador de
documentários, em que eu tive de seguir os eventos da “vida real”, à medida que
se desenrolavam. Esta foi uma experiência nova e que me deixou bastante
nervoso. Normalmente, quando começo a trabalhar num documentário, começo por
definir
a estrutura completa do filme na minha mente. Sei exatamente como o filme vai
começar, como a narrativa se irá desenvolver e como vai terminar.
Fazer
A PRAÇA foi uma experiência completamente diferente. Fui recebendo imagens
novas ao longo de janeiro e fevereiro e enquanto a tensão escalava e o sangue
era derramado, eu estava a editar o filme, sem saber que final esperar. Dividi
o filme em várias partes: o prólogo, a celebração, a batalha e o post-scriptum.
O meu
objetivo é trazer o espetador até Maïdan e fazê-lo experimentar os 90 dias de
revolução, à medida que iam acontecendo. Eu queria distanciar-me dos eventos e
deixar o espetador relacionar-se com eles, sem qualquer comentário ou narrativa
em voz off. Fiz takes longos, para embrenhar o espetador na narrativa.
Tentei
gravar o máximo de som direto possível e vou usar muito desse som no filme.
Maïdan
é um enigma para mim, que ainda não consegui resolver.
Sergei Loznitsa - Março
2014
CRÍTICA
Melancólica
meditação sobre homens e mulheres numa situação de conflito: os acontecimentos
da Praça Maidan, em Kiev.
Como aconteceu com a Praça Tahrir, no Cairo, durante o
episódio egípcio da “primavera árabe”, também a Praça Maidan, em Kiev, se
tornou extremamente familiar para o mundo inteiro enquanto lugar simbólico da
resistência e do poder populares, durante a sequência de acontecimentos que, em
finais de 2013, teve como consequência imediata a deposição do presidente
ucraniano, Yanukovich, e como consequência de longo prazo um imbróglio de
proporções “globais” ainda bem longe do seu desfecho.
Esses dias entre o final de 2013 e o princípio deste
ano em que multidões se aglomeraram na Maidan e a Maidan se tornou emblema de
mais um conflito leste/oeste são o foco da atenção do cineasta ucraniano Sergei
Loznitsa, tradicionalmente dado à reflexão, na ficção ou no documentário, sobre
a história do seu país (e a relação do seu país com a URSS), e que aqui
encontramos a trabalhar a quente, quase “em directo”, no momento em que a
História se desenha.
A Praça faz o relato desses dias, com suficiente
informação e contexto para que ninguém se perca, mas sem recorrer àquele mais
básico modo de condução do olhar do espectador, o comentário “off”,
cuidadosamente evitado. Dos primeiros dias, onde o ambiente é sobretudo
festivo, espécie de “happening” popular, ao momento em que a coisa começa a
azedar e a atmosfera “pacífica” (mas sempre cheia de uma electricidade a
prenunciar tempestade) descamba em caóticas batalhas campais. Como que
assinalando que isto é apenas o princípio de uma história ainda sem fim à
vista, termina inconclusivamente sobre uma nota sombria, a imagem de um
memorial fúnebre improvisado, velas e ramos de flores, pelas vítimas da
violência que caiu sobre a Maidan.
Para além desta dimensão informativamente documental,
deste lado de “reportagem”, o que é interessante em A Praça, e
totalmente condicente com a opção de ignorar um comentário “off”, é o facto de
Loznitsa evitar os mecanismos habituais de sugestão de uma “urgência”. Está em
cima do acontecimento mas todo o filme trabalha em criação de uma distância,
bem longe dos clichés da reportagem filmada, os planos curtos ou a câmara à
mão. Pelo contrário, a câmara fixa é dominante em A Praça, e os
planos são por norma longos e frequentemente filmados de um ângulo muito
aberto. É como uma sequência de “tableaux” arrancados ao “real”, às vezes um
estranho bailado de multidões (com muitas canções e tudo), outras uma pintura
de paisagem com batalha, numa agitação que tem o condão de ultrapassar as
divisões contextuais (os “pró-ocidentais” e os “pró-russos”) para se dar a ver como
uma inesperadamente melancólica meditação sobre homens e mulheres numa situação
de conflito.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt/culturaipsilon/
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