6 JANEIRO
O CAVALO DINHEIRO
Pedro Costa, Portugal, 2014, 104’, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização: Pedro Costa
Imagem: Leonardo Simões, Pedro Costa
Som: Olivier Blanc, Vasco Pedroso
Montagem: João Dias
Montagem Som: Hugo Leitão
Música: Os Tubarões
Com: Ventura, Vitalina Varela, Tito Furtado,António Santos, Benvindo Tavares
Imagem: Leonardo Simões, Pedro Costa
Som: Olivier Blanc, Vasco Pedroso
Montagem: João Dias
Montagem Som: Hugo Leitão
Música: Os Tubarões
Com: Ventura, Vitalina Varela, Tito Furtado,António Santos, Benvindo Tavares
Origem: Portugal
Ano: 2014
Duração:
104' PRÉMIOS E ALGUNS FESTIVAIS
Festival de Locarno, Suiça - Leopardo Melhor Realizador
Festival do Rio de Janeiro, Brasil
Festival de Vancouver, Canadá
Festival de Toronto, Canadá
Festival de Nova Iorque, EUA
St. Petersbourg Media Forum, Rússia
Festival de Valdivia, Chile
Festival du Nouveau Cinéma, Montreal, Canadá
Festival de Londres BFI, Reino Unido
CRÍTICA
Cavalo Dinheiro é tudo menos “outro filme das Fontaínhas”. Pelo contrário, e
mesmo se tudo o liga ao essencial da obra de Pedro Costa desde Ossos (e antes desse, a Casa de Lava, o filme
“caboverdeano” que está na origem de toda esta série), é um “filme novo das
Fontaínhas”. Nunca as Fontaínhas – ou o que resta delas – tinham servido para o
que Cavalo Dinheiro faz.
Se, por boas razões, de Ossos a Juventude
a Marcha, passando pelas várias curtas-metragens que Costa foi
fazendo com o mesmo universo, se tratava sempre de filmes “concêntricos”,
geograficamente concêntricos, a primeira surpresa de Cavalo
Dinheiro é o seu
início, a sua abertura (com jogo de palavras e sem ele). A montagem de uma
sequência de fotografias de Jacob Riis, retratando operários, biscateiros,
sem-abrigo, da Nova Iorque de finais de século XIX, as casas onde vivem, os
bares onde se divertem. Vemos vários Venturas – cada vez mais o único verdadeiro
“ícone”, em todos os sentidos, do cinema português contemporâneo – naquelas
imagens, e é impossível deixar de pensar em todos os “filhos” que ele procurava
em Juventude em Marcha: mas aqui vemos os pais,
os primos, os irmãos, de outra época e doutro lugar, um parentesco imaginário
que fica a pairar sobre o filme e que o inscreve em algo mais vasto do que só a
História portuguesa das últimas décadas. O filme tem, de resto, uma espécie de
“intervalo”, sensivelmente a meio, para uma série de planos com figuras
marginais ou estranhas à “narrativa” de Cavalo Dinheiro (e uma canção dos Tubarões em “off”),
que directamente se ligam, entre a homenagem e o reconhecimento, a essa
montagem fotográfica inicial.
Mas também é o filme onde vemos Ventura na
cidade – Ventura face às janelinhas iluminadas do Hospital de Santa Maria
(soberbos planos onde “a noite tem mil olhos”), Ventura na Fonte Luminosa da
Alameda, um plano ao lusco-fusco onde a combinação de auto-estradas, aviões a
rasar e placards publicitários cria uma aparência de lugar sem sítio definido.
O paradoxo – mas o filme é isto, uma constante deriva entre abertura e
fechamento, sem nunca se esclarecer qual dos termos é mais ilusório – é que
nunca Pedro Costa foi tão cavernoso, tão cheio de subterrâneos, escadarias
íngremes, corredores estreitos, reais ou criados a partir do trabalho da
iluminação (e eventualmente, da pós-produção, sendo certo queCavalo Dinheiro puxa as possibilidades da imagem
digital a um alcance nunca visto e que é, isso sim e de pleno direito,
“vanguardista”). “Sweet Exorcist”, a curta-metragem incluída em Centro
Histórico, revisitada em Cavalo Dinheiro (Ventura preso dentro do elevador) e
por ordem cronológica de visibilidade a sua origem, já nos deixava a pensar no
expressionismo no sentido da sua tradição cinematográfica, esse jogo com a
projecção da interioridade das personagens a transmitir-se ao espaço
circundante, a deformá-lo, distorcê-lo, defini-lo, inventá-lo. Cavalo
Dinheiro é também isto, do princípio ao fim: um sonho, ou um
pesadelo, de Ventura, onde nada (nem as outras personagens, como a espantosa
Vitalina, primeira figura feminina depois de Vanda, ausente neste filme, a ser
um “match” para Ventura) tem uma segura existência “real”, no sentido diegético
do termo. Tudo são sombras e subterrâneos, ou tudo pode sair das sombras e dos
subterrâneos, terreno fértil para a imaginação e para a sugestão, como
acontecia nos filmes de Tourneur ou de Lang, velhas predilecções de Costa, e
descendentes directos do expressionismo histórico, que Cavalo
Dinheiro, tanto, mas tanto, faz lembrar de uma ponta a outra.
O que equivale a dizer, mais ou menos, que
Ventura está tão preso dentro da sua cabeça como dentro do elevador onde, no
final, o deixamos. Sonho ou pesadelo, das sombras e dos subterrâneos saltam
fantasmas, memórias desconexas, histórias apenas oralmente relatadas como a do
cavalo que dá nome ao filme (e foi “comido pelos abutres”, fábula cheia de
ressonâncias contemporâneas, é outra maneira de explicar o que aconteceu ao
“dinheiro”). São os fantasmas da história de Portugal dos últimos 40 e tal
anos, da diáspora cabo-verdeana, da guerra, do 25 de Abril, do que aconteceu
depois, do que ainda não deixou de acontecer. Como num teatro onírico, cenas da
guerra são revividas, com soldados e chaimites, num qualquer beco dos arredores
de Lisboa. Como num filme de “zombies”, um soldado-homem-estátua serve de
último parceiro a Ventura (que de facto raramente está sozinho neste filme), na
extraordinária sequência do elevador que se conclui com aquele, poderosíssimo,
gesto de mãos, como se em desespero de causa a personagem tentasse um
derradeiro exorcismo, um “doce exorcismo”. Tem um efeito: pára o sonho, pára o
filme. Mas espectador algum conseguirá sair daquele elevador.
Como dizia alguém, o que é espantoso em
Pedro Costa é que cada filme é melhor que o anterior, mesmo quando isso parecia
impossível. Cavalo Dinheiro, magnífico
filme, confirma isso.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt/
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