A OLHAR PARA CIMA
João
Figueiras, Portugal, 215, 15’, M/6
Pedro observa
escondido na igreja as raparigas a vestirem fatos de anjo para a procissão.
Escondeu-se para que não lhe vistam aquela
fatiota ridícula.
Pedro deseja que a procissão não aconteça.
Deseja que chova, que caia um temporal sobre a
ilha.
Pedro começa a acreditar que a procissão não vai
acontecer.
O PAÍS DAS MARAVILHAS
Alice Rohrwacher
Itália/Suíça/Alemanha, 2014, 111', M/12
FICHA TÉCNICA
Título
Original: Le Meraviglie
Escrito e Realizado
por Alice Rohrwacher
Música Original: Piero Crucitti
Montagem: Marco Spoletini
Fotografia: Hélène Louvart
Interpretação: Maria Alexandra Lungu, Sam Louwyck,Alba Rohrwacher, Sabine
Timoteo e Monica Bellucci
Origem: Itália/Suíça/Alemanha
Ano: 2014
Duração: 111'
FESTIVAIS
Festival de
Cannes - Grande Prémio do Júri
CRÍTICA
Há algum tempo que não víamos “o
campo”, a ruralidade, a entrarem num filme de maneira tão expressiva e tão
palpável, a ponto de se tornarem a sua matéria.
Ainda sem sabermos que
família protagonista de O País
das Maravilhas se dedica à
apicultura já estamos a pensar em abelhas ou, vá lá, em insectos: aqueles
planos iniciais, os faróis de um automóvel a iluminarem a noite e a sugerirem
um bicho alado, suspenso no ar.
Não é
que seja um pormenor especialmente significativo, mas indicia qualquer coisa: a
enorme intenção, e a enorme atenção, que a jovem realizadora italiana Alice
Rohrwacher pôs neste filme que é a sua segunda longa-metragem de ficção.
O
País das Maravilhas é um relato de inspiração
auto-biográfica, a história de uma família que vive um modo de vida
“alternativo”, com uma certa rigidez ideológica (a personagem do pai), algures
na paisagem rural da Toscana. O pai, a mãe e as crianças formam uma espécie de
pequena “comuna”, partilhando as responsabilidades do trabalho diário e da
condução da família, a ponto de a filha mais velha, com nome de personagem de
Fellini (Gelsomina), se vir investida da liderança familiar. A questão da
autoridade é um dos temas do filme, dada, como muita coisa em O
País das Maravilhas, em tensão e em contraste. Tensão e contraste,
nesse caso, entre o fundamento ideológico – a recusa teórica de uma autoridade
absoluta e “natural” por parte do pai – e a autoridade efectiva, e efectivamente
paternal, que ele revela ao proibir a miúda mais velha de concorrer a um
concurso televisivo sobre “maravilhas rurais” (a televisão também é uma
entidade pouco grata naquela família). Se este é o conflito subjacente à
narrativa, ele vem lançar, ou servir de diapasão, outro conflito essencial, que
seria resumidamente o que opõe a “natureza” e o “espectáculo”. O filme de
Rohrwacher tem a subtileza e a inteligência suficientes para também virar esses
termos do avesso, e conter tanto uma reflexão sobre o “espectáculo da natureza”
– todas, e são muitas, as cenas em que o que está em causa é a relação entre
aquelas pessoas e o ambiente em que vivem, o campo, os lagos, as abelhas e os
outros animais – e a “natureza do espectáculo”, as cenas de rodagem do tal
programa televisivo (onde pontifica a maior vedeta do elenco, Monica Bellucci),
dadas desde o primeiro momento a partir do seu carácter artificial e
artificioso (todo o aparato da produção). Será este, porventura, o ponto em que
o filme, depois de chamar Gelsomina (que, recorde-se, era o nome da personagem
de Giulietta Masina em A
Estrada) à sua protagonista, mais entra dentro dum território
aparentado ao fellinianismo, mas que também convoca – a partir da
reconstituição do tempo dos Etruscos – uma espécie de subconsciente telúrico,
como que uma assombração cultural daquelas terras.
Mas ainda assim,
notável é o modo como Rohrwacher filma o “espectáculo da natureza”, a presença
dos elementos, o calor do Verão e a humidade da chuva súbita, o à-vontade dos
miúdos (e dos adultos) a fazerem “corpo” com o ambiente natural. Lembramo-nos
de um texto de Serge Daney, ainda nos anos 80, a comentar a tendência para a
desaparição do campo no cinema contemporâneo, cada vez mais urbanizado (e se
isto era verdade nos anos 80, mais o será nos anos 2010) – e lembramo-nos disso
porque, de facto, há algum tempo que não víamos “o campo”, a ruralidade, a
entrarem num filme de maneira tão expressiva e tão palpável, a ponto de se
tornarem a sua matéria. Não exclusiva, claro: a festa não fica completa sem os
humanos, sem a profunda impressão de realidade exalada por aquela família, as
cenas de conjunto, em paz ou em tensão mas sempre cheias de souplesse, e a
forma como daqui se vai recortando uma protagonista, Gelsomina, que atravessa o
filme a crescer e, sem nunca verdadeiramente se rebelar, a encontrar-se
enquanto criatura autónoma, dotada de vontade e... autoridade.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt/
ENTREVISTA À REALIZADORA
A sua
trajectória pessoal já passou por Portugal?
É
verdade. Comecei por viver em Portugal como aluna do programa Erasmus; depois,
estudei documentarismo na Videoteca Municipal de Lisboa e trabalhei como
assistente de montagem de Luciana Fina, uma italiana, realizadora de
documentários, que vive em Lisboa. E era frequentadora regular da Cinemateca.
Esta
sua segunda longa-metragem de ficção, O
País das Maravilhas [depois de Corpo Celeste, 2011], quase
começa como um documentário sobre uma família no campo — o projecto envolvia
essa vontade de documentar uma determinada realidade?
Em
boa verdade, no filme tudo é falso, no sentido em que nada funciona num plano
documental. Ao mesmo tempo, gosto de dizer que inventámos um mundo e, depois,
de certa maneira, fizemos um documentário sobre esse mundo. Tudo é fabricado,
estava tudo escrito, mas devido à consistência dessa fabricação, pode parecer
um documentário.
Por
exemplo?
Por
exemplo, quando num filme há necessidade de ter uma horta, ou um jardim com
plantas, muitas vezes compram-se as plantas já crescidas e colocam-se na terra
— o que se procura é “aquela” imagem das plantas. No nosso caso, plantámos
mesmo uma horta, ou seja, cinco meses antes da rodagem definimos que plantas
queríamos, semeámo-las, tratámos delas e, no fim, tínhamos uma verdadeira
horta. E durante a rodagem consumimos aquilo que tínhamos criado na horta.
Que
efeitos esse processo teve no trabalho dos actores?
Sempre
me interessou um cinema em que o método, a maneira de chegar a determinadas
coisas, acaba por ser mais importante que as próprias coisas. Nesse sentido, os
actores acabaram mesmo por viver naquele mundo, a ponto de todos acreditarmos
profundamente naquela família — afinal, os seus membros existiam ali mesmo, à
nossa frente.
E até
que ponto os actores marcaram as personagens com elementos do seu próprio mundo
interior?
Marcaram
mesmo para além do próprio filme. Há até casos, como o de Cocò, interpretada
por Sabine Timoteo, em que a personagem acabou por existir mais para nós do que
na montagem final.
certa
altura, algo muda no filme quando chega uma equipa de televisão para fazer um
programa mais ou menos poético sobre aquela região — é um reflexo da própria
televisão que existe hoje em Itália?
Não, não é.
Aquela televisão aparece antes como produto da imaginação de uma criança, como
qualquer coisa de pré-histórico. A televisão que se faz em Itália é horrível,
está muito comprometida com a política.
Vimos outros
filmes italianos, por exemplo de Nanni Moretti ou Matteo Garrone, que nos levam
a pensar que a discussão do cinema, hoje em dia, em Itália, passa
necessariamente pela discussão do poder da televisão.
Por um lado,
podemos falar de cinema sem falar de televisão. Por outro lado, é um facto que,
trabalhando nós sobre o presente, não podemos esquecer que é da televisão que
provém a maior influência sobre a consciência política.
Pode
dizer-se que, em Itália, como noutros países europeus, há muitos espectadores
que abandonaram as salas de cinema e apenas consomem televisão?
É um problema,
sem dúvida — tem a ver com a abandono dos rituais colectivos. E escusado será
dizer que o cinema, a ideia de sair de casa e participar colectivamente na
visão de um filme, é um desses rituais que pode estar a desaparecer. Em todo o
caso, creio que algo mudou nos últimos dois ou três anos: há uma
disponibilidade maior para ir ver determinados filmes, digamos filmes algo
especiais.
E
Rossellini, Fellini, Antonioni... existe alguma memória dos grandes clássicos?
Digamos que
há uma parte de memória inconsciente, porque esses grandes cineastas mudaram o
imaginário colectivo. Ao mesmo tempo, há uma enorme ignorância, já que muito
poucos viram os seus filmes. Temos a sorte de, em Itália, existirem entidades
como a Cinemateca de Bolonha que têm desenvolvido um trabalho importantíssimo
de restauro e apresentação pública de filmes antigos. Em Itália, também existe
a televisão de Berlusconi, mas é mais interessante falarmos da Cinemateca de
Bolonha...
João Lopes, sound--vision.blogspot.pt