DOIS
DIAS, UMA NOITE, Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, Itália/Bélgica/França,
2014, 95’, M/12
Título
Original: Deux Jours, Une Nuit
Com: Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Pili Groyne
Realização: Jean-Pierre
Dardenne, Luc Dardenne
Produção: Jean-Pierre
Dardenne, Luc Dardenne
Argumento: Jean-Pierre
Dardenne, Luc Dardenne
Origem:
Bélgica
Outros
dados: ITA/BEL/FRA, 2014, Cores, 95 min., M/12
SINOPSE
Sandra, empregada numa empresa de painéis solares,
volta ao trabalho depois de uma baixa médica prolongada. O patrão, que na sua
ausência foi obrigado a redistribuir o trabalho pelos restantes empregados,
deixa-os com um dilema: podem escolher entre o regresso de Sandra ou um bónus
pelas tarefas extra que fizeram durante esse período. Essa decisão será levada
a votação e terá de ser tomada até segunda-feira de manhã. Desesperada por
manter o emprego, Sandra sabe que tem o fim-de-semana para convencer os colegas
a votar em seu favor. Assim, ajudada por Manu, o marido, ela vai de porta em
porta, repetindo o discurso, de modo a despertar nos outros a compaixão de que
tanto necessita para manter o emprego e, simultaneamente, não perder a
esperança na generosidade humana.
Com realização e argumento dos irmãos belgas
Jean-Pierre e Luc Dardenne ("Rosetta", "O Silêncio de
Lorna" ou "O Miúdo da Bicicleta"), uma história dramática sobre
solidariedade, que conta com Marion Cotillard e Fabrizio Rongione como
protagonistas.
CRÍTICA
O sol, lá fora, ainda
brilha. Sandra descansa, o telefone toca, insistentemente. Sandra, renitente,
levanta-se e atende. Entretanto o forno dá sinal e a tarte está pronta. O dia
corre normalmente até que se contrariam as lágrimas, em vão. A vida pode mudar
a cada segundo, sem qualquer tipo de aviso. Resta lutar com as (poucas) forças
que restam.
É desta forma crua
que os veteranos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne filmaram a primeira cena de “Dois
Dias, Uma Noite”, um fantástico e tocante drama que tem como
figura principal (a belíssima) Marion Cotillard no papel de Sandra, uma mulher
casada e com dois filhos que tenta salvar o seu emprego depois de os seus
colegas terem optado por receber um bónus de mil euros em detrimento do lugar
do seu posto de trabalho na Solwal, uma empresa de painéis solares.
O dilema fora
colocado pelos responsáveis da empresa que depois do afastamento de Sandra
devido a uma depressão de origem nervosa constataram que o volume de trabalho
pode ser assegurando sem um dos colaboradores, ainda que com esforço acrescido
de cada qual. Essa decisão coloca os colegas de Sandra no difícil lugar de “escolher”
entre o bónus e Sandra, que finalmente se sente em condições psicológicas de
regressar ao trabalho.
Esse forte revés
é-lhe comunicado por Juliette (Catherine Salée) e resta a Sandra tentar durante
o fim de semana convencer os colegas a mudarem de opinião, depois de conseguir
a concordância do gerente da empresa para se realizar outra votação.
Desesperada, Sandra
tenta salvar o seu posto de trabalho e enceta uma terrível demanda. Do seu lado
está o marido Manu (Fabrizio Rongione) que encoraja a muito fragilizada esposa
a falar com os colegas. São necessários nove votos para Sandra manter o
trabalho mas o que a ainda funcionária da Solwal tem para oferecer “em troca”
aos seus colegas é apenas a sua angústia e ansiedade.
Essa terrível
situação leva Sandra a voltar a sentir sintomas depressivos e sente constrições
na garganta chegando a perder a capacidade de falar, hiperventila e a única
“salvação” assume a forma de um conhecido antidepressivo. Não é apenas o
emprego de Sandra que está em jogo, é o seu casamento, a sua vida.
A dificuldade de
Sandra é acrescida pois durante o fim de semana é mais difícil encontrar os
camaradas e suas famílias. Alguns dos seus colegas aproveitam os dias de
descanso para conseguirem mais dinheiro pois a vida é complicada. O desemprego
assola algumas destas famílias que têm nos mil euros de bónus um precioso
aliado para colmatar as crescentes necessidades. Conseguirá Sandra o seu
objetivo?
Com uma simplicidade
desarmante, os irmãos Dardenne transformam “Dois Dias, Uma Noite” em um dos
mais emblemáticos filmes deste ano e a sua participação na mais recente edição
do Festival de Cannes pode ser sinónimo de grande sucesso não só pelo filme em
si como através do magnífico trabalho de Cotillard.
Anteriormente
galardoados com a Palma de Ouro com “Rosetta” (1999) e “A Criança” (2005),
Jean-Pierre e Luc Dardenne oferecem ao espetador uma brilhante estória de cariz
realista e social que se assume como uma tensa narrativa que vem mais uma vez
revelar a mestria da sua capacidade de filmar pessoas “comuns” em situações
“comuns”.
É com essa ímpar arte
– que nos remete para, por exemplo, alguns dos momentos mais brilhantes do
britânico Ken Loach, – que os Dardenne conseguem transformar “Dois Dias, Uma
Noite”, em um filme que espelha a ténue linha que separa a solidariedade do ato
(desesperado) da necessidade, trabalhando um personagem no seu limite emocional
que tenta esconder o seu desabar face a uma intensão de resgatar uma maioria
democrática que resulta de uma votação manipulada e suja que coloca em rota de
colisão colegas de trabalho, familiares chegados, famílias à beira da rutura.
A simplicidade (e
extrema competência) da trama encontra um poderoso aliado na câmara de
Jean-Pierre e Luc Dardenne que acompanha Sandra na sua provação derivando de
planos estáticos para outros cuja ligeiríssima oscilação faz sentir o espetador
como parte do drama sentido a partilha de uma realidade filtrada pelo grande
ecrã.
Para além disso,
nunca é demais referir, outro dos grandes pilares da consistência de “Dois
Dias, Uma Noite” é a extraordinária entrega de Marion Cotillard que a encaixa
na perfeição em um dos mais austeros e difíceis papéis criados pela dupla
belga. Sandra mistura traços de uma dignidade e contenção assombrosas e a sua
técnica de atuação é deslumbrante – a cena em que está ao telefone com um dos
primeiros colegas (no caso, Kader) com que tenta tornar seu aliado na votação é
de um dramatismo extraordinário pela forma como a atriz se entrega e trabalha a
ação, os silêncios, as pausas, a concentração. O seu rosto espelha a amargura,
convence e comove, tal como um filme em si que figurará, seguramente, nas
listas dos melhores do ano.
Carlos
Eugénio Augusto,
http://www.ruadebaixo.com/dois-dias-uma-noite-14-11-2014.html
ENTREVISTA
Estamos
uma vez mais em Seraing, nos arredores de Liège, na pequena cidade belga em que
Jean-Pierre e Luc rodaram quase todos os seus filmes, desde “A Promessa” e
“Rosetta”. Há uma fábrica de painéis solares, e uma empregada para despedir,
Sandra. Ela recebe o telefonema na sexta. Na segunda seguinte, ordens do patrão
(ao que chegou o capitalismo), os colegas dela votam o seu futuro: e se ela for
para a rua, há mil euros de bónus para cada. Destemida, com todos ela falará,
um por um, para que escolham a sua permanência — até a lengalenga quase se
tornar oração. Esta foi a quinta vez que entrevistei os Dardenne e nenhuma
entrevista foi igual, tal como acredito que nunca eles fizeram dois filmes
iguais. Não falta agora gente a apregoar o contrário — enquanto promovem coisas
atrozes. Dizem que os belgas se repetem. Mas eles estão fortes. Ainda combatem
pelo mundo. Sabem o que estão a fazer. E têm os pés na terra.
Os
vossos filmes estão baseados na repetição incessante das cenas nos ensaios mas
já me disseram em tempos que esta ‘fórmula’ aparente varia sempre de filme para
filme, e consoante os atores com que trabalham. Como é que correu no caso de
“Dois Dias, Uma Noite”?
Luc Dardenne — Fizemos ainda mais
repetições desta vez! Mas há muito a dizer antes de chegarmos à resposta da sua
pergunta. A primeira coisa que tenho a salientar é que Marion Cotillard queria
tanto fazer este filme connosco como nós com ela. O desejo foi recíproco.
Acontece que ela é hoje, como todos sabem, uma star do cinema europeu e
talvez a maior do cinema francês. E o que lhe era exigido é que fosse ela a vir
ter connosco, ou seja, para o nosso território de trabalho. Também aqui creio
que a troca foi mútua já que esperávamos igualmente que ela trouxesse coisas
novas ao nosso trabalho, o que aconteceu. Por outro lado, sempre tivemos a
esperança de que ela chegasse ao set sem ‘imagens’ do seu passado. Isto
é: fizemos o filme sem nos lembrarmos um segundo da grande atriz que ela é e
dos filmes que já fez. Foi como se quiséssemos simular uma espécie de
‘virgindade’ para Marion Cotillard enquanto atriz e representante da moda — e
ela compreendeu isso imediatamente. Uma vez definidos e assimilados estes
pontos, começámos os ensaios.
Recearam
que Marion não fosse capaz de se adaptar ao vosso sistema?
L.D. — Receámos, não o vou
esconder, que ela resistisse aos métodos de trabalho que apurámos. Normalmente,
quando um ator trabalha pela primeira vez com um cineasta, esconde-se. Mantém
uma distância cautelosa. Procura não dizer nada que o comprometa. Nós também,
aliás. Já o sabemos pela experiência e sabemos também que temos de ser sinceros
acima de tudo. E quantas vezes já nos enganámos e tivemos que dizer a um ator
ou uma atriz, “desculpe, mas isto não vai funcionar...” Felizmente, com ela, a
relação humana tornou-se forte desde o primeiro momento e, nos ensaios,
aceitámos as suas sugestões à medida que ela ia aceitando as nossas. Não vejo
que pudesse ter sido de outra maneira, aliás. A definição deste ambiente de
entreajuda, digamos assim, foi também muito importante na relação com os outros
atores, maioritariamente não profissionais, porque estes tinham uma tendência
natural a olhar para Marion corno a star — lá está: e isso prejudicava o
filme. Marion não tinha motorista em “Dois Dias, Uma Noite”. Não havia ninguém
a maquilhá-la. Nem os outros atores estavam lá apenas para lhe dar a réplica.
Quer dizer, ela estava em quase todos os planos, é claro que ensaiámos mais com
ela do que com os outros, mas todos se encontravam em pé de igualdade.
È nos ensaios que vocês encontram os planos?
È nos ensaios que vocês encontram os planos?
LD. — Exatamente. É o movimento dos corpos
dos atores nos décors que nos indica qual vai ser a posição da câmara.
Trabalhámos muito aqui, sabíamos que tínhamos muitas cenas de interiores,
tirámos apontamentos. É nos ensaios que ‘vestimos’ as pessoas. “Esta cor vai
melhor aqui, aquele tapete tem de sair dali, é preciso empurrar um pouco aquele
armário para o fundo, etc...” Ou seja: os décors e o guarda-roupa
descobrem-se ao mesmo tempo que se pensa a mise en scène, é isto que
quero dizer. Última coisa: não sei se já lhe disse isto em tempos mas nós
começamos sempre por filmar as cenas mais físicas. Como cair, como correr, como
lutar... Ou, às vezes, coisas tão simples como isto: como é que uma mulher tira
o telemóvel do seu saco? Há muitas maneiras de uma mulher tirar um telemóvel de
um saco... É nestas cenas que sentimos se um ator está preparado. É nestas
cenas que descobrimos se ele ou ela vão conseguir ou não ser a personagem.
Acham
que, ao filmarem com uma atriz como Marion Cotillard, ou com Cécile de
France em “O Miúdo da Bicideta”, o vosso filme anterior, a perceção que os
espectadores têm do vosso cinema se altera? Algumas vozes já disseram aqui em Cannes que um filme
vosso com Marion não pode ser um Dardenne puro. Esquecem-se que Rosseillini foi
atacado pelo mesmo motivo há mais de 60 anos quando começou a filmar com Ingrid
Bergman...
Jean-Pierre Dardenne — Isso não é um dilema para nós. Não somos Rossellini e Marion Cotillard não vem do norte da Europa!.. Mas é verdade que essa foi uma questão que nos colocámos antes de filmar. Saber se Marion Cotillard iria impedir os espectadores de encontrarem o papel de Sandra. Mas o repto acabou por se tornar o oposto, precisamente: “vamos trabalhar com a Marion até que os espectadores possam encontrar a personagem.” A Marion ‘desaparece’ no filme, com o seu trabalho, com a sua cumplicidade. Eu acho que só a Sandra fica.
Há outro nível neste filme que julgo ser da ordem da moral e da ética e que não deixa de ser um retrato da perversão do capitalismo contemporâneo na fábrica de painéis solares em que Sandra trabalha são os seus colegas operários que decidem se ela vai ou não manter o emprego. A entidade patronal arranjou uma maneira de lavar as mãos como Pilatos. De onde vos veio esta ideia?
Jean-Pierre Dardenne — Isso não é um dilema para nós. Não somos Rossellini e Marion Cotillard não vem do norte da Europa!.. Mas é verdade que essa foi uma questão que nos colocámos antes de filmar. Saber se Marion Cotillard iria impedir os espectadores de encontrarem o papel de Sandra. Mas o repto acabou por se tornar o oposto, precisamente: “vamos trabalhar com a Marion até que os espectadores possam encontrar a personagem.” A Marion ‘desaparece’ no filme, com o seu trabalho, com a sua cumplicidade. Eu acho que só a Sandra fica.
Há outro nível neste filme que julgo ser da ordem da moral e da ética e que não deixa de ser um retrato da perversão do capitalismo contemporâneo na fábrica de painéis solares em que Sandra trabalha são os seus colegas operários que decidem se ela vai ou não manter o emprego. A entidade patronal arranjou uma maneira de lavar as mãos como Pilatos. De onde vos veio esta ideia?
J.P.D. — À partida, fomos
inspirados por factos verídicos que nos contaram e por artigos de jornal sobre
situações semelhantes. Neste ponto, a história do filme é uma síntese de toda a
informação que recolhemos sobre o assunto. Infelizmente, trata-se de um assunto
muito comum na Europa em que vivemos.
L.D.
— Há outra coisa aqui que é fundamental: o cinismo do poder é hoje muito maior
do que dantes. No passado, o patrão daquela empresa teria encontrado uma
desculpa de secretaria para se esconder ao despedir aquela mulher. Teria
encontrado uma solução sem mostrar o que ele pensa. Ao passo que hoje, o patrão
ousa dizer: “Estamos a pagar um salário a mais na empresa, não conseguimos
decidir quem é que vai para a rua, por isso decidam vocês, trabalhadores...”
Como Pilatos, de facto. Isto ainda é mais gritante nas pequenas empresas como
aquela, que não têm sindicatos nem secções de recursos humanos. E o medo acaba
por tornar conta das pessoas, porque têm dívidas, rendas e creches dos filhos
para pagar, etc. O sistema é perverso, como diz: aquele patrão vai atacar os
trabalhadores arrasando o espírito de solidariedade que possa existir entre
eles. Veja como é feita a votação que decide a permanência de Sandra: através
de voto secreto. Numa fábrica dos anos 70, isso seria impossível. Nessa altura,
cada voto seria a mão levantada de cada um, às claras.
È por isso que Sandra se bate? Pela solidariedade?
È por isso que Sandra se bate? Pela solidariedade?
J.P.D.
—
No início, não. Talvez sô pense em manter o emprego porque precisa do dinheiro
como do pão para a boca. Ela está deitada no primeiro plano. Está cansada. Mas
ao longo daquele fim de semana, ela vai tomar consciência do que se está a
passar e vai erguer-se. E percebe que a solidariedade é um ato moral.
O que mais preservam nos vossos fllmes?
J.P.D. — O tempo de
trabalho. Um equilíbrio entre meios e fins. E já que falamos de dinheiro, quero
dizer que os nossos orçamentos nunca foram e provavelmente nunca serão
faraónicos. Não o queremos. Não gastamos um euro em prestígio e odiamos o glamour.
Não queremos jornalistas no plateau durante a rodagem, mesmo aqueles
de que gostamos: invariavelmente, mandamo-lo embora. Somos económicos. Pagamos
bem a toda a gente, sempre a tempo e horas, somos exigentes com a nossa equipa.
Trabalhamos com técnicos que conhecemos e que moram na região em que filmamos,
isso ajuda. Hoje, podemos ensaiar seis semanas co os atores e ter rodagens de
50 dias. É confortável. É um luxo que muitos cineastas não têm. Mas o luxo do
tempo é o mais precioso.
L.D.
— Dito isto, se você estiver em Seraing no nosso próximo filme, não fique com
medo e apareça. Será bem recebido. Desde que não faça perguntas.
Que filme é esse?
Que filme é esse?
L.D.
— Ainda não sabemos, mas se tiver uma boa ideia... Nós pagamos.
Vasco Baptista Marques,
Expresso, 22/11/14
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