François Ozon
França, 2014, 108’, M/16
FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: François Ozon
Adaptado livremente de The New Girlfriend de Ruth Rendell
Montagem: Laure Gardette
Fotografia: Pascal Marti
Música Original: Philippe Rombi
Interpretação: Romain Duris, Anaïs Demoustier, Raphäel Personnaz, Isild Le Besco, Aurore Clément
Jean-Claude Bolle Reddat
Origem: França
Ano: 2014
Duração: 108’
FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de San Sebastián 2014 – Prémio Sebastiane
Festival de Londres 2014 – Selecção Oficial, Em Competição
Prémios César 2015 – Nomeações para Melhor Actor e Melhor Guarda-Roupa
TRAILER
CRÍTICA
Um dos mais originais criadores do actual cinema francês, François Ozon, está de volta com "Uma Nova Amiga", retrato de um invulgar triângulo amoroso inspirado num conto de Ruth Rendell.
Como definir, afinal, as linhas de força do cinema de François Ozon? Como ligar — se que é tal é possível — títulos tão fascinantes, e também tão diferentes, como "Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes" (2000), adaptação de uma peça de Rainer Werner Fassbinder, "8 Mulheres" (2002), um musical, ou "O Tempo que Resta" (2005), uma reflexão sobre a aproximação da morte?
Talvez possamos responder através do novo lançamento com assinatura de Ozon, "Uma Nova Amiga", brilhante exercício narrativo inspirado num conto de Ruth Rendell ("The New Girlfriend"), definido a partir de um triângulo invulgar: duas amigas, Claire (Anaïs Demoustier) e Laura (Isilde Le Besco), e o marido de Laura, David (Romain Duris); quando Laura morre, Claire descobre que David "compensa" a falta da mulher, assumindo-se ele próprio como personagem feminina...
Que está em jogo, então? Seja qual for o registo dramático, "ligeiro" ou "grave", Ozon tende a colocar em cena personagens que transcendem os modelos de comportamento que, por razões públicas ou privadas, são levadas a assumir. Seria, por isso, um erro encarar a transfiguração de David como o assumir de uma posição "militante" — se ele desliza para a personagem de uma mulher (a que Claire dará o nome de Virginia), é tão só para ser fiel à verdade mais íntima dos seus desejos e do amor que neles se transporta.
Ozon consegue, assim, a proeza, ao mesmo tempo iconográfica e poética, de discutir o próprio conceito de personagem, nessa medida mobilizando os actores para um invulgar jogo de evidências e máscaras. No caso de "Uma Nova Amiga", importa destacar a subtil composição de Romain Duris, afinal superando e, de alguma maneira, ironizando a própria dicotomia sexual.
João Lopes, rtp.pt/cinemax/
Como definir, afinal, as linhas de força do cinema de François Ozon? Como ligar — se que é tal é possível — títulos tão fascinantes, e também tão diferentes, como "Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes" (2000), adaptação de uma peça de Rainer Werner Fassbinder, "8 Mulheres" (2002), um musical, ou "O Tempo que Resta" (2005), uma reflexão sobre a aproximação da morte?
Talvez possamos responder através do novo lançamento com assinatura de Ozon, "Uma Nova Amiga", brilhante exercício narrativo inspirado num conto de Ruth Rendell ("The New Girlfriend"), definido a partir de um triângulo invulgar: duas amigas, Claire (Anaïs Demoustier) e Laura (Isilde Le Besco), e o marido de Laura, David (Romain Duris); quando Laura morre, Claire descobre que David "compensa" a falta da mulher, assumindo-se ele próprio como personagem feminina...
Que está em jogo, então? Seja qual for o registo dramático, "ligeiro" ou "grave", Ozon tende a colocar em cena personagens que transcendem os modelos de comportamento que, por razões públicas ou privadas, são levadas a assumir. Seria, por isso, um erro encarar a transfiguração de David como o assumir de uma posição "militante" — se ele desliza para a personagem de uma mulher (a que Claire dará o nome de Virginia), é tão só para ser fiel à verdade mais íntima dos seus desejos e do amor que neles se transporta.
Ozon consegue, assim, a proeza, ao mesmo tempo iconográfica e poética, de discutir o próprio conceito de personagem, nessa medida mobilizando os actores para um invulgar jogo de evidências e máscaras. No caso de "Uma Nova Amiga", importa destacar a subtil composição de Romain Duris, afinal superando e, de alguma maneira, ironizando a própria dicotomia sexual.
João Lopes, rtp.pt/cinemax/
ENTREVISTA COM FRANÇOIS OZON
De onde veio a ideia para UMA NOVA AMIGA?
O filme é livremente inspirado num conto de Ruth Rendell, “The New Girlfriend”, uma história de quinze páginas no espírito da série televisiva “Hitchcock apresenta”: uma mulher descobre que o marido da sua amiga traveste-se às escondidas. Ele torna-se a sua nova amiga, mas assim que ele lhe declara a sua paixão e tenta fazer amor com ela, ela mata-o. Eu tinha lido este conto na altura de Une Robe d’Été, há cerca de vinte anos,e tinha escrito uma adaptação muito fiel para uma curta-metragem, mas não tinha encontrado financiamento, nem o elenco ideal, por isso tinha abandonado este projecto.
Pensava naquela história que me assombrava com frequência, e dei-me conta de que os grandes filmes sobre o travestismo que eu gostava eram aqueles onde a personagem se travestia à partida não por um desejo pessoal mas por uma contingência exterior: músicos perseguidos pela máfia obrigados a disfarçarem-se de mulheres em Quanto Mais Quente Melhor, um actor no desemprego que se torna actriz para um papel em Tootsie - Quando Ele Era Elaou uma outra actriz em dificuldades financeiras em
Victor/Victoria... Estas circunstâncias exteriores permitem aos espectadores identificarem-se com as personagens e desfrutar do travestismo sem culpa ou desconforto. Billy Wilder era para mim a referência perfeita para tratar tal tema. Excepto que, no caso desta história, a personagem tinha já dentro dela este desejo, antes mesmo de passarà prática.
De onde vem a ideia do luto para permitir ao espectador identificar-se mesmo assim com David/ Virginia?
Esta ideia do luto, que não existia no conto, permite ao espectador e à Claire compreender o comportamento do David antes de aceitá-lo. Daí a importância do flash back com a cena na qual o David consegue acalmar e alimentar o seu bebé graças ao cheiro da blusa da mulher morta.
Tive esta ideia graças a uma conversa com Chantal Poupaud, que realizou Crossdresser, um documentário sobre as pessoas transgénero (apaixonante o ritual concreto da transformação: depilar-se, maquilhar-se, esconder a barba...). Ela conhece muito bem este meio, e por isso pedi-lhe para me falar sobre os travestis que ela conhecia e ela falou-me de um deles, a esposa estava muito doente, sabia que ia morrer e tinha optado por desaparecer da vida do seu marido. Para fazê-la viver, ele tinha decidido vestir-se com as roupas dela regularmente. Esta ideia fascinou-me e preocupou-me de imediato.
Tinha encontrado finalmente a chave para poder adaptar e escrever a minha história.
[...]
No início do filme, com alguns recursos visuais muito fortes, acompanha vinte anos de vida...
Isto era importante para a identificação das personagens. No argumento, tinha escrito uma voz off explicativa mas, durante a rodagem, tentei contar e visualizar o máximo de coisas através dos movimentos de câmara e da montagem, a voz off já não era necessária. Considerando as etapas da vida – a infância, a amizade, o casamento,o nascimento de uma criança, a doença, a morte – o risco era cair no kitsch, era preciso encontrar a distância certa para criar emoção.
UMA NOVA AMIGA situa-se num espaço pouco definido geograficamente.
Alguns dos meus filmes são ancorados numa realidade muito precisa e documentada. Outros criam o seu próprio mundo, como 8 Mulheres, Dentro de Casa ou Uma Nova Amiga. A minha ideia era encontrar a dimensão universal e intemporal dos contos de fadas, género presente desde o início do filme com o cadáver de Laura no seu caixão, e no fim quando Virginia acorda tal como La belle au bois dormant.
Como foi feita a escolha de Romain Duris?
Eu vi vários actores, com os quais fiz testes de maquilhagem e de perucas, para ver quais os que se pareciam mais com uma mulher, se isso funcionava. Era um meio de testar o seu desejo de feminilidade.
O Romain destacou-se, não por ser “a mulher mais bonita”, mas porque provinha dele uma grande alegria em travestir-se. Era evidente uma encarnação, um prazer fetichista de vestir os vestidos, sem ironia ou distância.Já tinha reparado na sua forma graciosa e lúdica de cantar a canção de Lola, de Jacques Demy, em 17 Fois Cécile Cassard, de Christophe Honoré. O seu desejo pelo papel de David/Virginia era de tal forma forte que a escolha tornou-se evidente para mim.
E a escolha de Anaïs Demoustier?
A Claire é uma personagem complicada a partir da qual todos nós seguimos o seu ponto de vista, mas que é acima de tudo espectadora da metamorfose de David/ Virginia. Ela tem poucas falas, é sobretudo a partir do seu rosto que seguimos a sua evolução: os seus desejos, os medos e as suas mentiras a Gilles, mas também a si própria.
Vi muitas actrizes para este papel, mas cheguei rapidamente à conclusão de que a Anaïs era a mais interessante para filmar na posição de observadora. Passa-se sempre qualquer coisa no seu rosto, nos seus olhos, e nos ensaios com o Romain, ela afirmou-se definitivamente.
Para o filme, pedi-lhe para mudar a sua cor de cabelo. Para mim, ela tem um verdadeiro tom ruivo, eu tinha
que colocar em evidência as suas sardas de ruivae glorificá-las.
Por exemplo, com Pascal Marti, o director de fotografia, trabalhámos muito com cores outonais. O ruivo inscrevia-se portanto completamente nesta lógica cromática.
E a escolha de Raphaël Personna?
Eu tinha-o encontrado para o papel de Virginia. A priori, fisicamente, podemos imaginá-lo mais facilmente como mulher do que o Romain, mas no final não funcionava.
Quando lhe telefonei para lhe dizer que não o tinha escolhido para o papel de Virginia mas que por outro lado queria propor-lhe o papel de Gilles, ele respondeu-me logo: “Genial, eu prefiro o Gilles, não me sentia à vontade no outro papel!”
[...]
A única vez que eles fazem amor, a Claire rejeita o David: “Tu és um homem...”
Esta frase faz, literalmente, quase sorrir. A Claire está perdida, ela sabe bem que não se está a deitar com uma mulher, mas tinha quase esquecido isso, e aquele momento sexual trá-la de volta à realidade, um pouco como no conto. Excepto que a personagem da Ruth Rendell mata quando se dá conta dos pelos de homem que a repugnam. Aqui, é como se a Claire matasse a Virginia ao rejeitá-la, mas de uma forma simbólica e acidental. E a sua rejeição é apenas uma etapa do seu percurso. De seguida, ela fá-la-á reviver, ao aceitá-la tal como é, e ao reconhecer que se tornou ela própria mulher graças a Virginia. De uma certa forma, a Claire ressuscita a Virginia – aquilo que não conseguiu fazer com Laura
O filme é livremente inspirado num conto de Ruth Rendell, “The New Girlfriend”, uma história de quinze páginas no espírito da série televisiva “Hitchcock apresenta”: uma mulher descobre que o marido da sua amiga traveste-se às escondidas. Ele torna-se a sua nova amiga, mas assim que ele lhe declara a sua paixão e tenta fazer amor com ela, ela mata-o. Eu tinha lido este conto na altura de Une Robe d’Été, há cerca de vinte anos,e tinha escrito uma adaptação muito fiel para uma curta-metragem, mas não tinha encontrado financiamento, nem o elenco ideal, por isso tinha abandonado este projecto.
Pensava naquela história que me assombrava com frequência, e dei-me conta de que os grandes filmes sobre o travestismo que eu gostava eram aqueles onde a personagem se travestia à partida não por um desejo pessoal mas por uma contingência exterior: músicos perseguidos pela máfia obrigados a disfarçarem-se de mulheres em Quanto Mais Quente Melhor, um actor no desemprego que se torna actriz para um papel em Tootsie - Quando Ele Era Elaou uma outra actriz em dificuldades financeiras em
Victor/Victoria... Estas circunstâncias exteriores permitem aos espectadores identificarem-se com as personagens e desfrutar do travestismo sem culpa ou desconforto. Billy Wilder era para mim a referência perfeita para tratar tal tema. Excepto que, no caso desta história, a personagem tinha já dentro dela este desejo, antes mesmo de passarà prática.
De onde vem a ideia do luto para permitir ao espectador identificar-se mesmo assim com David/ Virginia?
Esta ideia do luto, que não existia no conto, permite ao espectador e à Claire compreender o comportamento do David antes de aceitá-lo. Daí a importância do flash back com a cena na qual o David consegue acalmar e alimentar o seu bebé graças ao cheiro da blusa da mulher morta.
Tive esta ideia graças a uma conversa com Chantal Poupaud, que realizou Crossdresser, um documentário sobre as pessoas transgénero (apaixonante o ritual concreto da transformação: depilar-se, maquilhar-se, esconder a barba...). Ela conhece muito bem este meio, e por isso pedi-lhe para me falar sobre os travestis que ela conhecia e ela falou-me de um deles, a esposa estava muito doente, sabia que ia morrer e tinha optado por desaparecer da vida do seu marido. Para fazê-la viver, ele tinha decidido vestir-se com as roupas dela regularmente. Esta ideia fascinou-me e preocupou-me de imediato.
Tinha encontrado finalmente a chave para poder adaptar e escrever a minha história.
[...]
No início do filme, com alguns recursos visuais muito fortes, acompanha vinte anos de vida...
Isto era importante para a identificação das personagens. No argumento, tinha escrito uma voz off explicativa mas, durante a rodagem, tentei contar e visualizar o máximo de coisas através dos movimentos de câmara e da montagem, a voz off já não era necessária. Considerando as etapas da vida – a infância, a amizade, o casamento,o nascimento de uma criança, a doença, a morte – o risco era cair no kitsch, era preciso encontrar a distância certa para criar emoção.
UMA NOVA AMIGA situa-se num espaço pouco definido geograficamente.
Alguns dos meus filmes são ancorados numa realidade muito precisa e documentada. Outros criam o seu próprio mundo, como 8 Mulheres, Dentro de Casa ou Uma Nova Amiga. A minha ideia era encontrar a dimensão universal e intemporal dos contos de fadas, género presente desde o início do filme com o cadáver de Laura no seu caixão, e no fim quando Virginia acorda tal como La belle au bois dormant.
Como foi feita a escolha de Romain Duris?
Eu vi vários actores, com os quais fiz testes de maquilhagem e de perucas, para ver quais os que se pareciam mais com uma mulher, se isso funcionava. Era um meio de testar o seu desejo de feminilidade.
O Romain destacou-se, não por ser “a mulher mais bonita”, mas porque provinha dele uma grande alegria em travestir-se. Era evidente uma encarnação, um prazer fetichista de vestir os vestidos, sem ironia ou distância.Já tinha reparado na sua forma graciosa e lúdica de cantar a canção de Lola, de Jacques Demy, em 17 Fois Cécile Cassard, de Christophe Honoré. O seu desejo pelo papel de David/Virginia era de tal forma forte que a escolha tornou-se evidente para mim.
E a escolha de Anaïs Demoustier?
A Claire é uma personagem complicada a partir da qual todos nós seguimos o seu ponto de vista, mas que é acima de tudo espectadora da metamorfose de David/ Virginia. Ela tem poucas falas, é sobretudo a partir do seu rosto que seguimos a sua evolução: os seus desejos, os medos e as suas mentiras a Gilles, mas também a si própria.
Vi muitas actrizes para este papel, mas cheguei rapidamente à conclusão de que a Anaïs era a mais interessante para filmar na posição de observadora. Passa-se sempre qualquer coisa no seu rosto, nos seus olhos, e nos ensaios com o Romain, ela afirmou-se definitivamente.
Para o filme, pedi-lhe para mudar a sua cor de cabelo. Para mim, ela tem um verdadeiro tom ruivo, eu tinha
que colocar em evidência as suas sardas de ruivae glorificá-las.
Por exemplo, com Pascal Marti, o director de fotografia, trabalhámos muito com cores outonais. O ruivo inscrevia-se portanto completamente nesta lógica cromática.
E a escolha de Raphaël Personna?
Eu tinha-o encontrado para o papel de Virginia. A priori, fisicamente, podemos imaginá-lo mais facilmente como mulher do que o Romain, mas no final não funcionava.
Quando lhe telefonei para lhe dizer que não o tinha escolhido para o papel de Virginia mas que por outro lado queria propor-lhe o papel de Gilles, ele respondeu-me logo: “Genial, eu prefiro o Gilles, não me sentia à vontade no outro papel!”
[...]
A única vez que eles fazem amor, a Claire rejeita o David: “Tu és um homem...”
Esta frase faz, literalmente, quase sorrir. A Claire está perdida, ela sabe bem que não se está a deitar com uma mulher, mas tinha quase esquecido isso, e aquele momento sexual trá-la de volta à realidade, um pouco como no conto. Excepto que a personagem da Ruth Rendell mata quando se dá conta dos pelos de homem que a repugnam. Aqui, é como se a Claire matasse a Virginia ao rejeitá-la, mas de uma forma simbólica e acidental. E a sua rejeição é apenas uma etapa do seu percurso. De seguida, ela fá-la-á reviver, ao aceitá-la tal como é, e ao reconhecer que se tornou ela própria mulher graças a Virginia. De uma certa forma, a Claire ressuscita a Virginia – aquilo que não conseguiu fazer com Laura
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