Albert Serra
Portugal/França/Espanha, 2016, 120', M/12
FICHA TÉCNICA
Realização: Albert Serra
Argumento: Thierry Lounas, Albert Serra
Montagem: Albert Serra, Artur Tort, Ariadna Ribas
Direcção de Fotografia: Jonathan Ricquebourg
Música: Marc Verdaguer
Interpretação: Jean-Pierre Léaud, Patrick d'Assumçao, Marc Susini, Bernard Belin, Irène Silvagni, Vicenç Altaió, Filipe Duarte, José Wallenstein, Philippe Crespau
Origem: Portugal/França/Espanha
Ano: 2016
Duração: 120'
FESTIVAIS
Cannes 2016 - Palma de Ouro de Honra para Jean-Pierre Léaud
TRAILER
CRÍTICA
É um filme duma ambientação extraordinária, a
iluminação e o décor a procurarem o mergulho plausível numa corte do
século XVIII, e onde tudo conflui para o rosto do rei, o rosto de Léaud, feito
"Rei-Sol-Negro".
Há duas
histórias em A Morte de Luís
XIV. Uma é, efectivamente, a descrita no título, a morte do
"Rei-Sol", durante longos dias em que uma ferida gangrenada na perna
se revela fatal. Tudo nessa história se concentra e se fecha sobre o corpo e o
rosto de Jean-Pierre Léaud, que é absolutamente magistral. “Minimalista”,
porque construída com recursos escassos e pouquíssimas derivas narrativas ou
episódicas, essa história (o melhor seria dizer essa “exposição”) é vivida em
termos humanos (um homem a compreender que a morte está a chegar) e em termos
simbólicos – um monarca omnipotente confrontado finalmente com um poder maior
do que o seu, para o qual nem ele, nem ninguém tem remédio, e que torna todas
as suas prerrogativas e todos os seus privilégios em manifestações de uma
vaidade terrena, transitória e muito fútil. É o caso da cena em que o rei,
indisposto a meio da noite, pede que lhe tragam água e depois se recusa a
bebê-la porque não veio servida num copo de cristal. O cerimonial do poder
contra a morte sem cerimonial: não há spoiler
nenhum, sabemos como acaba, o próprio título o diz (como a célebre história de
Tolstoi A Morte de Ivan Ilyich,
que o filme de Serra tanto lembra). O que conta é o processo interior com que
um rei aceita a sua mortalidade “niveladora”, que o torna igual a todos os
outros homens.
A outra
história, que aborda um tema que Serra já tinha desenvolvido no seu filme
anterior, A História da Minha
Morte, é a do confronto do racionalismo com um poder fora do seu
alcance, mas que ele ainda acredita conseguir dominar. A “razão científica”,
representada pelos médicos e académicos chamados a acudir ao rei, que em
diálogos que têm tanto de tocante como de comic
relief (quase absurdo) expõem hipóteses e perplexidades e vivem
também eles uma espécie de aprendizagem da impotência. Faz todo o sentido que
nessas cenas impere a personagem do charlatão (certamente não por acaso, Vicenç
Altaió, o actor que fazia de Casanova no filme anterior) e o seu discurso
aceitador e “panteísta” – é o único que percebe que a única maneira de vencer a
morte é aceitá-la, e integrá-la como coisa natural.
Serra
filma isto duma forma absolutamente concentrada e orgânica. Se reconhecemos
temas, se reconhecemos o gosto pela história, pela literatura e pelas figuras
da história e da literatura, talvez ele nunca tenha conseguido dar essas
figuras duma maneira tão perfeitamente coral, uníssona, sem digressões ou
apartes. É um filme duma ambientação extraordinária, a iluminação e o décor a procurarem o
mergulho plausível (em vez da distância) numa corte do século XVIII, e onde
tudo conflui para o rosto do rei, o rosto de Léaud, feito "Rei-Sol-Negro".
Tudo nele, o mais pequeno movimento de pálpebras, o mais leve tremelicar do
queixo, é um acontecimento. E é todo o acontecimento deste filme em que, sem
nada realmente se passar, há sempre alguma coisa para ver. Nem um só momento de
tédio: é o melhor filme de Albert Serra.
Luís Miguel
Oliveira, Público
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Albert Serra é um autor deste tempo, mas a sua
erudição e a simplicidade do seu trabalho não têm hoje qualquer paralelo com as
de outro cineasta. Os seus filmes tanto podem vir de tratados da literatura e
da influência de figuras místicas como da arquitetura clássica ou de códigos do
Direito romano. Ele possui um iluminado apetite pela universalidade — coisa
rara. É um realizador que não estudou cinema e para bom entendedor tudo está
dito. [...]
Também
se interessa pela medicina? Quando Luís XIV tomba naquele leito real, a 9 de
agosto de 1715, queixando-se de uma dor na perna esquerda que evoluirá para
gangrena, os médicos da corte entram em alvoroço à procura de soluções e cada
um deles apresenta a sua teoria, o seu show,
e ao mesmo tempo o seu desespero, como se tivessem nas mãos uma bomba-relógio.
Eu até acho que é a medicina que dá o sentido
de humor ao filme, mas tive muito cuidado em tratar este aspeto: o momento é
tão solene como a figura histórica. O humor tinha pois que ser muito subtil.
Sempre gostei destas ruturas de tom, existem em todos os meus filmes. O próprio
Jean-Pierre Léaud estava disposto a contribuir para estas ruturas: punha-se a
interpretar delírios na rodagem, sonhos excêntricos, coisas que não entraram na
montagem. Um amigo meu, médico, disse-me que a medicina evoluiu mais no século
XX que em todos os 20 séculos anteriores. O que é interessante na medicina do
século XVIII é que também ela se prestava a este tipo de loucuras e absurdos
porque, todavia, não existia o conhecimento científico que temos hoje.
Por
isso surge, às tantas, a personagem do marselhês Le Brun [papel de Vincenç
Altaió, que já fizera de Casanova em “História da Minha Morte”]?
É muito cómico o que faz Le Brun: ele é um
charlatão e um místico que leva à corte a ideia de que é preciso rodear o rei
de espiritualidade, como se a doença fosse só uma sublimação do corpo. No
fundo, é a ideia de que a morte tem que ser encarada como uma etapa natural da
vida, mesmo a de alguém como o Rei Sol. Pensei muito em Wittgenstein, que
recusou tratar-se quando adoeceu e se deixou morrer, simplesmente, por
considerar que a doença fazia parte de um ciclo vital. Quando apresentei o
filme em Nova Iorque, um crítico escreveu que este é um filme sobre a
banalidade da morte em si mesma. Achei a observação muito justa.
Continua
a usar o mesmo método de trabalho de “Honra de Cavalaria”, a sua primeira
longa-metragem, e que foi apurando nos filmes seguintes?
“A Morte
de Luís XIV” é um huisclos, quase não
saímos do quarto do rei. A vontade narrativa não é declarada, não há fascínio
nem contemplação, o ponto de vista é um pouco clínico, distante. Mas ao mesmo
tempo estamos tão próximos da personagem, Léaud é um ator tão icónico e Luís
XIV uma figura tão importante, que as emoções acabam por aparecer. Segui a
mesma técnica: não faço qualquer ensaio e dou indicações aos atores durante a
própria rodagem. Pequenas indicações que estimulam a improvisação. Tinha um
texto escrito, que vinha de fontes históricas e quase não foi utilizado.
Que
fontes foram essas?
São sobretudo as memórias de Saint-Simon
[1675-1755], escritor e cronista da corte de que gosto muito, e que registam as
palavras do rei. Só que esses diálogos, que na verdade correspondem a um
período anterior aos últimos dias de vida do rei, bem como o meu próprio
fascínio por aquele período da história de França, não me serviam absolutamente
para nada. Usámos duas ou três coisas, a conversa com o bisneto, pouco mais. É
um texto de descrição factual e exaustiva, por isso não me interessa. A beleza
do cinema vem de outras coisas, dos olhares de Jean-Pierre Léaud para os outros
atores e para a câmara, da sua interpretação da agonia à medida que a morte vai
galgando terreno e vencendo o corpo. Desse estado de confusão. E isto sim, é
uma arma do cinema que qualquer espectador pode intuir imediatamente e com um
poder impossível de descrever por palavras.
Aquele
mimo do rei aos seus cães, no início, cena belissima...
É verdade que Luís XIV gostava de cães, mas
essa cena, como tantas outras, foi inventada.
Como é
que chega a esse grau de intuição e de erudição com gestos e frases tão
simples?
Afasto-me da história porque não a quero lecionar, mas sem a trair. E abro o filme à casualidade, sem qualquer respeito
pelo que se tornou tradição no cinema. Um exemplo: aquela coleção de olhos que os médicos
utilizam. O espectador fica a pensar que era um objeto que teria, na época,
alguma espécie de rigor científico. Ou que serviria de modelo para uma qualquer
máscara mortuária. Na verdade, é apenas um objeto que o meu diretor artístico
descobriu sem querer, não se sabe para que serve, mas é tão bonito que o
utilizámos. Misturo organicamente estes detalhes com os aspetos artísticos mais
refletidos para depois convidar de novo o inesperado, o absurdo: como aquele
diálogo em que se diz que o pássaro na gaiola do quarto do rei pode ser
portador de doenças. Gosto de deixar certas coisas no limite da incompreensão,
sem que o absurdo se note. A ambiguidade é em si uma coisa muito bela e, como
já fiz alguns filmes, tenho aprendido a apurar cada vez mais a sua subtileza.
Como é
que este filme começou?
A colaboração vem de longe: há uns quatro anos,
entrámos num projeto encomendado pelo Centro Pompidou em que o Jean-Pierre
deveria fazer uma performance ao vivo da morte de Luís XIV num cubo de plexiglass a imitar cristal, flutuante,
altivo, suspenso no hall do museu. A ideia era ter Léaud a ‘morrer em direto’
durante 15 dias, quatro horas por dia. O projeto acabou por ser cancelado por
falta de verbas mas não o esquecemos. E a ele voltámos, agora para cinema, mas
fiéis à ideia original. Já várias pessoas me disseram à saída do filme que
sentiram a ilusão de estar dentro do quarto do rei, como se fossem um membro da
corte. O que se passa à beira daquela cama, para nós, é abstrato, tal como o
poder absoluto que Luís XIV representa o é também. Talvez isto explique, pese
embora a sequência repetitiva dos últimos 45 minutos, que o público,
paradoxalmente, não se aborreça: é que cada plano traz sempre uma nuance nova,
um pequeno mistério que vem da nossa própria perceção do tempo e daquela
sensação de performance live que, por
ser tão imprevisível, funciona com uma graça particular.
Léaud é
o Rei Sol no seu filme, faz uma teatralização da morte extraordinária mas não
deixa de ser um ícone do cinema. Decerto que sopesou esta questão.
E era impossível ultrapassá-la. Este filme não
teria existido sem Léaud, de resto. Não houve casting: era ele ou simplesmente
não havia filme. Vou explicar-lhe o truque que fizemos, e que é muito
interessante, Léaud tem uma história de amor com a câmara desde sempre, desde o
“Les quatre cents coups”, de Truffaut. Não lhe interessam muito os atores com
quem contracena, e pouco lhe importa o público. Talvez por isso ele nunca tenha
feito teatro. Tentou uma vez, mas as coisas não correram bem. Neste sentido é
um ator ‘muito egoísta’ e eu sabia-o: aquilo que conta para ele é a câmara,
nada mais. Ele e eu nunca falámos disto. Limitei-me a explicar-lhe o meu
método, disse-lhe que dou indicações durante cada take e que ia usar três câmaras autónomas e sem hierarquia a filmarem
non stop, em simultâneo. Ele
concordou, tem um respeito enorme pelo realizador. Inevitavelmente, quando
chegou o primeiro dia de rodagem, perguntou aos operadores de câmara em que
escala o iam filmar — fazia um sinal com a mão a questionar se o queriam
enquadrar pela cintura, ou em grande plano.
Como
resolveu o problema?
Não tinha resolução: as câmaras moviam-se continuamente,
o décor era escuro, ele nem sabia
onde as câmaras estavam — até que se dá conta, logo ao primeiro dia, que a tal
relação de amor com a câmara não se iria estabelecer desta vez. Então, como
reage, como se defende? Interioriza tudo. Começa a dialogar com o seu próprio
rosto. ‘Engole’ todo o seu trabalho sobre Luís XIV, o que investigara e lera,
toda a preparação aturada que fizera em casa para o papel, sozinho, antes de
chegar ao set. A vibração foi para
dentro dele porque, no exterior, ele deparava-se com uma situação de impotência
pura. Mas os dias de rodagem passaram e ele começou a adaptar-se, a apreciar o
que estava a fazer, a dominar tudo outra vez, como tanto gosta, a ganhar
confiança — e nesse momento também eu ‘ganhei’ um filme. É que esse trabalho de
Léaud, esta experiência que também foi nova para ele, adaptavam-se por completo
ao que estava em causa. Estamos a falar de Luís XIV, do homem mais poderoso do
seu tempo, do monarca com o reinado mais longo da história de França, e em
simultâneo do momento em que o poder absoluto do rei se conjuga com a impotência
absoluta. E também Jean-Pierre Léaud é outra pessoa: já não é o jovem rosto
irrequieto da Nouvelle Vague que guardamos na memória para sempre, mas um homem
disponível para aceitar a morte, para a receber, e que nos dá dela uma
interpretação crepuscular.
Não
temeu que todo este aspeto simbólico de Léaud fizesse deste um filme sobre o
fecho de qualquer coisa, o fim de uma era? Como lidou com isso?
Sinceramente, nunca pensei nisso, mas a Léaud,
sim, isso preocupava-o. Há outra coisa que não se vê no filme, pelo menos
diretamente, mas que merece ser dita: Jean-Pierre é um ator que chega ao set com um nervosismo e uma tensão extremas.
Filmar, para ele, exige-lhe esse estado, é um ritual. Outros cineastas da minha
geração, como Bertrand Bonello [que dirigiu Léaud em “Le pornographe”, 2001],
confirmaram-me isso depois. Ele fica aterrorizado ao pensar que pode estar a
fazer um filme que não chegue à qualidade dos que fez no passado. Aterrorizado
de poder ser criticado e destruir o seu percurso, que é de grande integridade.
Ele não me conhecia e, além disso, sabia que eu nunca tinha trabalhado com atores profissionais. Mais: sabia que este seria um papel principal em que ele
ia estar praticamente em todos os planos do filme.
E quis
dar o máximo...
Claro, e deu, mas isso é muito intenso para
ele, obsessivo, quase trágico. Em Cannes, no ano passado, ele foi homenageado
com um prémio de carreira. Ficámos hospedados uma semana no mesmo hotel e eu
sabia que ele escrevera um discurso de agradecimento para o último dia do
festival. Pois não houve um só dia dessa semana em que ele não tenha ensaiado
obsessivamente esse discurso.
Abordou
Quixote e Sancho Pança, os Reis Magos, Casanova, agora Luís XIV...
Como não há registo em tempo real dessas
figuras, como a época em que viveram é tão complexa e distante da nossa,
permito-me dar delas a minha interpretação. E arrisco dizer que nunca as vimos
assim, como nos meus filmes, nem elas foram tão ‘verdadeiras’. Lembra-se de
algum Luís XIV melhor que Jean-Pierre Léaud? Para mim, não há.
Os
séculos XX e XXI não lhe interessam?
Espere para ver, talvez tenha chegado o
momento: o filme que gostava de fazer a seguir, e que já tem guião escrito,
passa-se nos dias de hoje. Será um retrato do mundo da arte contemporânea e
medirá a importância da arte e o papel do artista na sociedade atual. Centra-
se num jovem artista de hoje, ainda anónimo e que começa a ter um bocadinho de
êxito, perguntando-se depois se valeu a pena conquistá-lo, se isso não lhe será
nocivo. Por mim, sei que não quero viver pelo cinema e para o cinema. Nem este
é um apêndice da minha existência.
Francisco
Ferreira, Expresso
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