A MORTE DE LUÍS XIV | 14 MAR | IPDJ | 21H30



A MORTE DE LUÍS XIV
Albert Serra
Portugal/França/Espanha, 2016, 120', M/12


FICHA TÉCNICA
Realização: Albert Serra
Argumento: Thierry Lounas, Albert Serra
Montagem: Albert Serra, Artur Tort, Ariadna Ribas
Direcção de Fotografia: Jonathan Ricquebourg
Música: Marc Verdaguer
Interpretação: Jean-Pierre Léaud, Patrick d'Assumçao, Marc Susini, Bernard Belin, Irène Silvagni, Vicenç Altaió, Filipe Duarte, José Wallenstein, Philippe Crespau
Origem: Portugal/França/Espanha
Ano: 2016
Duração: 120'

FESTIVAIS
Cannes 2016 - Palma de Ouro de Honra para Jean-Pierre Léaud





TRAILER

CRÍTICA

É um filme duma ambientação extraordinária, a iluminação e o décor a procurarem o mergulho plausível numa corte do século XVIII, e onde tudo conflui para o rosto do rei, o rosto de Léaud, feito "Rei-Sol-Negro".

Há duas histórias em A Morte de Luís XIV. Uma é, efectivamente, a descrita no título, a morte do "Rei-Sol", durante longos dias em que uma ferida gangrenada na perna se revela fatal. Tudo nessa história se concentra e se fecha sobre o corpo e o rosto de Jean-Pierre Léaud, que é absolutamente magistral. “Minimalista”, porque construída com recursos escassos e pouquíssimas derivas narrativas ou episódicas, essa história (o melhor seria dizer essa “exposição”) é vivida em termos humanos (um homem a compreender que a morte está a chegar) e em termos simbólicos – um monarca omnipotente confrontado finalmente com um poder maior do que o seu, para o qual nem ele, nem ninguém tem remédio, e que torna todas as suas prerrogativas e todos os seus privilégios em manifestações de uma vaidade terrena, transitória e muito fútil. É o caso da cena em que o rei, indisposto a meio da noite, pede que lhe tragam água e depois se recusa a bebê-la porque não veio servida num copo de cristal. O cerimonial do poder contra a morte sem cerimonial: não há spoiler nenhum, sabemos como acaba, o próprio título o diz (como a célebre história de Tolstoi A Morte de Ivan Ilyich, que o filme de Serra tanto lembra). O que conta é o processo interior com que um rei aceita a sua mortalidade “niveladora”, que o torna igual a todos os outros homens.

A outra história, que aborda um tema que Serra já tinha desenvolvido no seu filme anterior, A História da Minha Morte, é a do confronto do racionalismo com um poder fora do seu alcance, mas que ele ainda acredita conseguir dominar. A “razão científica”, representada pelos médicos e académicos chamados a acudir ao rei, que em diálogos que têm tanto de tocante como de comic relief (quase absurdo) expõem hipóteses e perplexidades e vivem também eles uma espécie de aprendizagem da impotência. Faz todo o sentido que nessas cenas impere a personagem do charlatão (certamente não por acaso, Vicenç Altaió, o actor que fazia de Casanova no filme anterior) e o seu discurso aceitador e “panteísta” – é o único que percebe que a única maneira de vencer a morte é aceitá-la, e integrá-la como coisa natural.
Serra filma isto duma forma absolutamente concentrada e orgânica. Se reconhecemos temas, se reconhecemos o gosto pela história, pela literatura e pelas figuras da história e da literatura, talvez ele nunca tenha conseguido dar essas figuras duma maneira tão perfeitamente coral, uníssona, sem digressões ou apartes. É um filme duma ambientação extraordinária, a iluminação e o décor a procurarem o mergulho plausível (em vez da distância) numa corte do século XVIII, e onde tudo conflui para o rosto do rei, o rosto de Léaud, feito "Rei-Sol-Negro". Tudo nele, o mais pequeno movimento de pálpebras, o mais leve tremelicar do queixo, é um acontecimento. E é todo o acontecimento deste filme em que, sem nada realmente se passar, há sempre alguma coisa para ver. Nem um só momento de tédio: é o melhor filme de Albert Serra.
Luís Miguel Oliveira, Público



ENTREVISTA AO REALIZADOR
Albert Serra é um autor deste tempo, mas a sua erudição e a simplicidade do seu trabalho não têm hoje qualquer paralelo com as de outro cineasta. Os seus filmes tanto podem vir de tratados da literatura e da influência de figuras místicas como da arquitetura clássica ou de códigos do Direito romano. Ele possui um iluminado apetite pela universalidade — coisa rara. É um realizador que não estudou cinema e para bom entendedor tudo está dito. [...]
Também se interessa pela medicina? Quando Luís XIV tomba naquele leito real, a 9 de agosto de 1715, queixando-se de uma dor na perna esquerda que evoluirá para gangrena, os médicos da corte entram em alvoroço à procura de soluções e cada um deles apresenta a sua teoria, o seu show, e ao mesmo tempo o seu desespero, como se tivessem nas mãos uma bomba-relógio.
Eu até acho que é a medicina que dá o sentido de humor ao filme, mas tive muito cuidado em tratar este aspeto: o momento é tão solene como a figura histórica. O humor tinha pois que ser muito subtil. Sempre gostei destas ruturas de tom, existem em todos os meus filmes. O próprio Jean-Pierre Léaud estava disposto a contribuir para estas ruturas: punha-se a interpretar delírios na rodagem, sonhos excêntricos, coisas que não entraram na montagem. Um amigo meu, médico, disse-me que a medicina evoluiu mais no século XX que em todos os 20 séculos anteriores. O que é interessante na medicina do século XVIII é que também ela se prestava a este tipo de loucuras e absurdos porque, todavia, não existia o conhecimento científico que temos hoje.
Por isso surge, às tantas, a personagem do marselhês Le Brun [papel de Vincenç Altaió, que já fizera de Casanova em “História da Minha Morte”]?
É muito cómico o que faz Le Brun: ele é um charlatão e um místico que leva à corte a ideia de que é preciso rodear o rei de espiritualidade, como se a doença fosse só uma sublimação do corpo. No fundo, é a ideia de que a morte tem que ser encarada como uma etapa natural da vida, mesmo a de alguém como o Rei Sol. Pensei muito em Wittgenstein, que recusou tratar-se quando adoeceu e se deixou morrer, simplesmente, por considerar que a doença fazia parte de um ciclo vital. Quando apresentei o filme em Nova Iorque, um crítico escreveu que este é um filme sobre a banalidade da morte em si mesma. Achei a observação muito justa.

Continua a usar o mesmo método de trabalho de “Honra de Cavalaria”, a sua primeira longa-metragem, e que foi apurando nos filmes seguintes?
 “A Morte de Luís XIV” é um huisclos, quase não saímos do quarto do rei. A vontade narrativa não é declarada, não há fascínio nem contemplação, o ponto de vista é um pouco clínico, distante. Mas ao mesmo tempo estamos tão próximos da personagem, Léaud é um ator tão icónico e Luís XIV uma figura tão importante, que as emoções acabam por aparecer. Segui a mesma técnica: não faço qualquer ensaio e dou indicações aos atores durante a própria rodagem. Pequenas indicações que estimulam a improvisação. Tinha um texto escrito, que vinha de fontes históricas e quase não foi utilizado.
Que fontes foram essas?
São sobretudo as memórias de Saint-Simon [1675-1755], escritor e cronista da corte de que gosto muito, e que registam as palavras do rei. Só que esses diálogos, que na verdade correspondem a um período anterior aos últimos dias de vida do rei, bem como o meu próprio fascínio por aquele período da história de França, não me serviam absolutamente para nada. Usámos duas ou três coisas, a conversa com o bisneto, pouco mais. É um texto de descrição factual e exaustiva, por isso não me interessa. A beleza do cinema vem de outras coisas, dos olhares de Jean-Pierre Léaud para os outros atores e para a câmara, da sua interpretação da agonia à medida que a morte vai galgando terreno e vencendo o corpo. Desse estado de confusão. E isto sim, é uma arma do cinema que qualquer espectador pode intuir imediatamente e com um poder impossível de descrever por palavras.
Aquele mimo do rei aos seus cães, no início, cena belissima...
É verdade que Luís XIV gostava de cães, mas essa cena, como tantas outras, foi inventada.
Como é que chega a esse grau de intuição e de erudição com gestos e frases tão simples?
Afasto-me da história porque não a quero lecionar, mas sem a trair. E abro o filme à casualidade, sem qualquer respeito pelo que se tornou tradição no cinema. Um exemplo: aquela coleção de olhos que os médicos utilizam. O espectador fica a pensar que era um objeto que teria, na época, alguma espécie de rigor científico. Ou que serviria de modelo para uma qualquer máscara mortuária. Na verdade, é apenas um objeto que o meu diretor artístico descobriu sem querer, não se sabe para que serve, mas é tão bonito que o utilizámos. Misturo organicamente estes detalhes com os aspetos artísticos mais refletidos para depois convidar de novo o inesperado, o absurdo: como aquele diálogo em que se diz que o pássaro na gaiola do quarto do rei pode ser portador de doenças. Gosto de deixar certas coisas no limite da incompreensão, sem que o absurdo se note. A ambiguidade é em si uma coisa muito bela e, como já fiz alguns filmes, tenho aprendido a apurar cada vez mais a sua subtileza.
Como é que este filme começou?
A colaboração vem de longe: há uns quatro anos, entrámos num projeto encomendado pelo Centro Pompidou em que o Jean-Pierre deveria fazer uma performance ao vivo da morte de Luís XIV num cubo de plexiglass a imitar cristal, flutuante, altivo, suspenso no hall do museu. A ideia era ter Léaud a ‘morrer em direto’ durante 15 dias, quatro horas por dia. O projeto acabou por ser cancelado por falta de verbas mas não o esquecemos. E a ele voltámos, agora para cinema, mas fiéis à ideia original. Já várias pessoas me disseram à saída do filme que sentiram a ilusão de estar dentro do quarto do rei, como se fossem um membro da corte. O que se passa à beira daquela cama, para nós, é abstrato, tal como o poder absoluto que Luís XIV representa o é também. Talvez isto explique, pese embora a sequência repetitiva dos últimos 45 minutos, que o público, paradoxalmente, não se aborreça: é que cada plano traz sempre uma nuance nova, um pequeno mistério que vem da nossa própria perceção do tempo e daquela sensação de performance live que, por ser tão imprevisível, funciona com uma graça particular.
Léaud é o Rei Sol no seu filme, faz uma teatralização da morte extraordinária mas não deixa de ser um ícone do cinema. Decerto que sopesou esta questão.
E era impossível ultrapassá-la. Este filme não teria existido sem Léaud, de resto. Não houve casting: era ele ou simplesmente não havia filme. Vou explicar-lhe o truque que fizemos, e que é muito interessante, Léaud tem uma história de amor com a câmara desde sempre, desde o “Les quatre cents coups”, de Truffaut. Não lhe interessam muito os atores com quem contracena, e pouco lhe importa o público. Talvez por isso ele nunca tenha feito teatro. Tentou uma vez, mas as coisas não correram bem. Neste sentido é um ator ‘muito egoísta’ e eu sabia-o: aquilo que conta para ele é a câmara, nada mais. Ele e eu nunca falámos disto. Limitei-me a explicar-lhe o meu método, disse-lhe que dou indicações durante cada take e que ia usar três câmaras autónomas e sem hierarquia a filmarem non stop, em simultâneo. Ele concordou, tem um respeito enorme pelo realizador. Inevitavelmente, quando chegou o primeiro dia de rodagem, perguntou aos operadores de câmara em que escala o iam filmar — fazia um sinal com a mão a questionar se o queriam enquadrar pela cintura, ou em grande plano.
Como resolveu o problema?
Não tinha resolução: as câmaras moviam-se continuamente, o décor era escuro, ele nem sabia onde as câmaras estavam — até que se dá conta, logo ao primeiro dia, que a tal relação de amor com a câmara não se iria estabelecer desta vez. Então, como reage, como se defende? Interioriza tudo. Começa a dialogar com o seu próprio rosto. ‘Engole’ todo o seu trabalho sobre Luís XIV, o que investigara e lera, toda a preparação aturada que fizera em casa para o papel, sozinho, antes de chegar ao set. A vibração foi para dentro dele porque, no exterior, ele deparava-se com uma situação de impotência pura. Mas os dias de rodagem passaram e ele começou a adaptar-se, a apreciar o que estava a fazer, a dominar tudo outra vez, como tanto gosta, a ganhar confiança — e nesse momento também eu ‘ganhei’ um filme. É que esse trabalho de Léaud, esta experiência que também foi nova para ele, adaptavam-se por completo ao que estava em causa. Estamos a falar de Luís XIV, do homem mais poderoso do seu tempo, do monarca com o reinado mais longo da história de França, e em simultâneo do momento em que o poder absoluto do rei se conjuga com a impotência absoluta. E também Jean-Pierre Léaud é outra pessoa: já não é o jovem rosto irrequieto da Nouvelle Vague que guardamos na memória para sempre, mas um homem disponível para aceitar a morte, para a receber, e que nos dá dela uma interpretação crepuscular.

Não temeu que todo este aspeto simbólico de Léaud fizesse deste um filme sobre o fecho de qualquer coisa, o fim de uma era? Como lidou com isso?
Sinceramente, nunca pensei nisso, mas a Léaud, sim, isso preocupava-o. Há outra coisa que não se vê no filme, pelo menos diretamente, mas que merece ser dita: Jean-Pierre é um ator que chega ao set com um nervosismo e uma tensão extremas. Filmar, para ele, exige-lhe esse estado, é um ritual. Outros cineastas da minha geração, como Bertrand Bonello [que dirigiu Léaud em “Le pornographe”, 2001], confirmaram-me isso depois. Ele fica aterrorizado ao pensar que pode estar a fazer um filme que não chegue à qualidade dos que fez no passado. Aterrorizado de poder ser criticado e destruir o seu percurso, que é de grande integridade. Ele não me conhecia e, além disso, sabia que eu nunca tinha trabalhado com atores profissionais. Mais: sabia que este seria um papel principal em que ele ia estar praticamente em todos os planos do filme.
E quis dar o máximo...
Claro, e deu, mas isso é muito intenso para ele, obsessivo, quase trágico. Em Cannes, no ano passado, ele foi homenageado com um prémio de carreira. Ficámos hospedados uma semana no mesmo hotel e eu sabia que ele escrevera um discurso de agradecimento para o último dia do festival. Pois não houve um só dia dessa semana em que ele não tenha ensaiado obsessivamente esse discurso.
Abordou Quixote e Sancho Pança, os Reis Magos, Casanova, agora Luís XIV...
Como não há registo em tempo real dessas figuras, como a época em que viveram é tão complexa e distante da nossa, permito-me dar delas a minha interpretação. E arrisco dizer que nunca as vimos assim, como nos meus filmes, nem elas foram tão ‘verdadeiras’. Lembra-se de algum Luís XIV melhor que Jean-Pierre Léaud? Para mim, não há.
Os séculos XX e XXI não lhe interessam?
Espere para ver, talvez tenha chegado o momento: o filme que gostava de fazer a seguir, e que já tem guião escrito, passa-se nos dias de hoje. Será um retrato do mundo da arte contemporânea e medirá a importância da arte e o papel do artista na sociedade atual. Centra- se num jovem artista de hoje, ainda anónimo e que começa a ter um bocadinho de êxito, perguntando-se depois se valeu a pena conquistá-lo, se isso não lhe será nocivo. Por mim, sei que não quero viver pelo cinema e para o cinema. Nem este é um apêndice da minha existência.
Francisco Ferreira, Expresso

 
 

Sem comentários: