O DIVÃ
DE ESTALINE
Fanny Ardant
França/Portugal, 2016, 92´, M/12
FICHA TÉCNICA
Realização
e Argumento: Fanny Ardant
a partir do romance “Le Divan de Staline” de Jean-Daniel Baltassat
a partir do romance “Le Divan de Staline” de Jean-Daniel Baltassat
Montagem:
Julie Dupré
Imagem: Renaud Personnaz, Renato Berta
Som: Pierre Tucat, Yves Servagent, Roman Dymny
Interpretação: Gérard Depardieu, Emmanuelle Seigner, Paul Hamy, François Chattot, Luna Picoli-Truffaut, Tudor Istodor, Alexis Manenti
Com a participação de Joana de Verona, Lídia Franco e Miguel Monteiro
Imagem: Renaud Personnaz, Renato Berta
Som: Pierre Tucat, Yves Servagent, Roman Dymny
Interpretação: Gérard Depardieu, Emmanuelle Seigner, Paul Hamy, François Chattot, Luna Picoli-Truffaut, Tudor Istodor, Alexis Manenti
Com a participação de Joana de Verona, Lídia Franco e Miguel Monteiro
Origem:
França/Portugal
Ano:2016
Duração: 92’
CRÍTICA
Num determinado momento de O Divã de Estaline,
uma fotografia do verdadeiro líder soviético é gradualmente sobreposta por uma
imagem da personagem homónima encarnada por Gérard Depardieu. Não existem
muitas semelhanças entre os dois (o real e o da ficção), mas somente a vontade
de recriar e trabalhar a História, tirá-lo do seu estatuto imaculável e
intocável, e fazer o Cinema exercer-se como um poço de criatividade em vias de
exploração.
O homónimo livro de Jean-Daniel Baltassat (uma
perspectiva freudiana a uma das figuras incontornáveis da nossa História) é
transportada para o grande ecrã pelas mãos de FannyArdant, a emblemática atriz
que teima em deixar a sua marca como realizadora. A sua terceira longa-metragem
vem inicialmente evitar os "becos sem saída" e o pedantismo
"farsolas" de Cadências Obstinadas. Onde antes havia vazio
emocional, agora há um outro sob o desejo de ser preenchido, como uma tela
aguardando pelas suas cores. É nesse aspeto que o filme vem ganhando a sua
devida forma. Assume-se então uma representação de um pedaço de História
vencida, onde o teor psicológico aventura-se acima da veracidade dos factos.
Há um regresso à ritualidade de Cinzas e Sangue,
aquele fascínio pela plasticidade do organismo fílmico e a aspiração pela arma
mais potente do teatro: a sua recorrente imaginação, aquele
"faz-de-conta" na recriação. Talvez seja por isso que Depardieu
funciona simbioticamente como uma alternativa estalineana, mais do que as
vestes camaleónicas que um qualquer biopic de Hollywood tentaria
culminar.
Neste universo, o ator é o perfeito Estaline, numa
versão que anseia respirar a breve emancipação. Um homem frio, calculista,
inteiramente regido às ideologias criadas por ele próprio e estabelecidas no
seu regime, um reinado com tamanho medo. O líder soviético espera aqui o seu
momento de fragilidade, a desmistificação dos métodos de Sigmund Freud - a
psicanálise - que o próprio considera charlatanices igualmente competentes que
"roubam segredos a burgueses ricos" do outro lado da Europa. As
sessões improvisadas, ensinadas no momento, servem de catarse para a
desconstrução dessa mesma personalidade.
Em contracampo, surge Emmanuelle Seigner como Lídia, a
referida improvisada "psicanalista", a mulher
"privilegiada" no seio afetuoso de Estaline, encarada como uma
"ponte quebradiça" entre a emocionalidade resgatada do seu líder. As
duas figuras constituem dois vértices de um triangulo formado por ódio / amor /
medo, completado pelo pintor Danilov (Paul Hamy), um artista reprimido por uma
expirada inspiração. Mas este triângulo é isósceles, dois lados servem como
"sessões" de teor psicanalista a uma só figura, e a esta altura o
leitor já se apercebeu qual sai beneficiada neste registo.
Mesmo que a psicologia não esteja no ponto(uma ciência
não exata neste filme) é indiscutível o passo em frente que Fanny Ardant dá na
sua carreira de direcção. O Divã de Estaline, é até à data, a sua obra
mais completa, concisa e sobretudo, cinematográfica. Acreditando que o Cinema é
uma arte de criação desprovida de rédeas, eis a minha saudação a Madame Ardant!
Hugo Gomes,.c7nema.net
ENTREVISTA À REALIZADORA
O que é que a fez querer adaptar
para o cinema "Le Divan de Staline" (Seuil, 2013), o romance de
Jean-Daniel Baltassat?
Fanny
Ardant: Havia em "Le Divan de Staline" uma concordância entre a minha
paixão pela Rússia, o meu interesse pela época trágica da União Soviética e a
resistência subterrânea que ela provocou. Por outro lado, havia o amor que
tenho pelo Gérard Depardieu. Tinha encontrado um papel à sua medida. Na
história que eu queria contar, o Gérard traria a sua ambiguidade, o seu
conhecimento do ser humano, a sua jovialidade e sedução, a sua inteligência
brilhante e também, apesar de tudo, a sua vulnerabilidade.
De onde vem o seu interesse pela Rússia?
De onde vem o seu interesse pela Rússia?
A
partir dos 15 anos, comecei a ficar fascinada pela Rússia, pela sua história,
música, literatura e poesia. Comecei por ler os grandes clássicos, depois os
dissidentes e os poetas. E tudo me tocou de uma forma extraordinária. De
início, os heróis como o príncipe Myshkin, os irmãos Karamazov, Stavroguine,
Natacha, Anna Karénina, Oblomov, etc... e depois conheci os poetas, Pushkin,
Essénine, Ossip Mandelstam, Vladimir Maiakovski, Anna Akhmatova, Marina
Tsvetaieva... O seu espírito de resistência fascinou-me. As suas vidas eram
poemas por si só. Só na Rússia é que os poetas são assassinados porque causam
medo ao poder. Durante a minha juventude, os meus estudos, reuniões, tristezas
e alegrias, ilusões e fracassos, eles ajudaram-me a viver.
Em que medida?
Graças
a eles, aprendi que o mundo interior é mais importante que o mundo exterior,
aprendi como resistir quando se perde tudo, excepto a alma, viver
clandestinamente em mundos onde o poder, a fama, o dinheiro e a subjugação não
têm poder sobre si.
Durante
os anos trágicos da ditadura, muitos dissidentes salvaram-se apesar de terem
sido presos ou das perseguições, ao recitarem poemas que sabiam de cor.
Resistiram à escuridão à sua maneira.
No início, eu queria chamar ao filme "Atrás de mim uma gaiola vazia" em homenagem aos versos de Osip Mandelstam "... À minha frente vultos de névoa espessa e atrás de mim uma gaiola vazia". Versos que coloquei no final do filme.
No início, eu queria chamar ao filme "Atrás de mim uma gaiola vazia" em homenagem aos versos de Osip Mandelstam "... À minha frente vultos de névoa espessa e atrás de mim uma gaiola vazia". Versos que coloquei no final do filme.
No romance de Jean-Daniel
Baltassat, Estaline, três anos antes de sua morte, em 1950, instala-se em
Borjomi, Geórgia, no antigo palácio do Duque Mikhaïlovitch. Por que é que não
datou o filme e precisa o local onde se passa a acção?
Eu
queria contar uma fábula sobre a relação entre poder e arte, aquilo que o poder
faz nascer nos que o exercem e nos que o sofrem. Eu queria fugir do
documentário, a verdade interessa-me mais do que a realidade. Durante as
repérages, procurei uma mansão aristocrática. Toda a nova autoridade se instala
nos símbolos do poder da autoridade que é deposta. A República toma para si os
castelos dos reis e da aristocracia. Os bolcheviques requisitam os símbolos do
poder e da riqueza.
Cheguei
ao Palácio Hotel do Buçaco e soube imediatamente que este seria o cenário
perfeito. Uma vez que queria contar um conto, este castelo do "Barba
Azul", as muralhas e torres de lendas de cavalaria, com gárgulas como nas
catedrais, era exactamente um lugar fora de qualquer contexto. Eu queria contar
a história numa unidade de tempo, de lugar e acção. As portas do palácio
abrem-se no início, como "era uma vez" e fecham-se novamente no fim
da história. Entre o conto e a fábula.
Conseguiu recriar dentro do
palácio um ambiente pesado, carregado de mentiras, medo, submissão, humilhação,
manipulação, próprio ao universo bolchevique.
Sempre
quis opor o indivíduo ao grupo, ao partido, à sociedade, ao pensamento comum.
A sociedade é aqui representada pelos guardas armados, pela polícia secreta, as empregadas domésticas, os cozinheiros. Movem-se sempre todos em conjunto como uma massa, como uma entidade única, uma forma de simbolizar a liberdade face à arregimentação, a identidade face ao grupo.
A sociedade é aqui representada pelos guardas armados, pela polícia secreta, as empregadas domésticas, os cozinheiros. Movem-se sempre todos em conjunto como uma massa, como uma entidade única, uma forma de simbolizar a liberdade face à arregimentação, a identidade face ao grupo.
Como é que Gérard Depardieu
reagiu à ideia de interpretar Estaline?
O
Gérard é curioso em relação a tudo. Ele explora caminhos que não conheceu. Ele
confiou em mim, porque a vida é uma aventura. Interpretou Estaline como poderia
interpretar uma personagem de Shakespeare, com a ambiguidade e a complexidade
das personagens enigmáticas, monstruosas mas humanas, muito humanas.
Fisicamente, Depardieu, não se parece realmente com Estaline.
Fisicamente, Depardieu, não se parece realmente com Estaline.
Eu não queria fazer um documentário. Não era primordial que Gérard se parecesse
excatamente com Estaline. O importante era conseguir o arquétipo, a imagem de
Estaline que existe na memória colectiva.
Para voltar sempre à fábula, ao conto, tanto é Estaline e ao mesmo tempo não é o Estaline dos livros de História e dos documentários.
Para voltar sempre à fábula, ao conto, tanto é Estaline e ao mesmo tempo não é o Estaline dos livros de História e dos documentários.
Eu
disse ao Gérard: Estaline fala com uma doce voz de barítono e tem sempre um
meio-sorriso como os felinos.
Como é que dirigiu Gérard Depardieu?
Como é que dirigiu Gérard Depardieu?
Gérard
é um actor genial. Possui uma natureza complexa, rica e inesperada. Ele entra
na pele de uma personagem com aquilo que sabe e com o que não sabe.
Há
muitas verdades. Quando contamos uma história fazemos entrar os actores num
mundo que é seu, com as suas obsessões, a sua visão sobre as coisas e os seres,
que começa com eles e acaba com eles. Eles jogam o jogo que lhes é proposto. Eu
gosto da ideia de batalhar por um silêncio, um sorriso, um movimento dos olhos
ou da mão, os detalhes são tudo, porque tudo já foi dito.
"O Divã de Estaline" é
o primeiro mergulho na intimidade quimérica do carrasco. À noite, no seu
palácio, Estaline alonga-se no divã - estranhamente idêntico ao de Freud em
Londres - e conta os seus sonhos à sua amante, Lidia Semoniova Vodieva,
interpretada por Emmanuelle Seigner.
Estaline pediu à sua amante que lhe trouxesse "A Interpretação dos Sonhos", de Freud. Estaline vem muitas vezes a este palácio e percebe que o divã em que ele dorme no seu pequeno escritório é muito semelhante ao de Freud em Londres. Estaline mostra uma imagem de um jornal Inglês a Lidia e mostra-lhe o sofá, acrescentando que "este é o lugar onde os burgueses perversos se deitam para debitar os seus disparates neuróticos". Estaline será o paciente e Lidia irá decifrar os seus pensamentos. Desde o início, ele diz tudo, quer saber como funciona, como age Freud para que eles confessem, para extorquir os segredos destes burgueses.
Em Estaline, há uma mistura entre curiosidade científica e o gosto pelo jogo do gato e do rato, o prazer de lidar com materiais perigosos que podem explodir a qualquer momento, na cabeça dos que o ouvem. Ouvir os segredos de Estaline é condenar-se. E Lidia sabia-o.
Estaline pediu à sua amante que lhe trouxesse "A Interpretação dos Sonhos", de Freud. Estaline vem muitas vezes a este palácio e percebe que o divã em que ele dorme no seu pequeno escritório é muito semelhante ao de Freud em Londres. Estaline mostra uma imagem de um jornal Inglês a Lidia e mostra-lhe o sofá, acrescentando que "este é o lugar onde os burgueses perversos se deitam para debitar os seus disparates neuróticos". Estaline será o paciente e Lidia irá decifrar os seus pensamentos. Desde o início, ele diz tudo, quer saber como funciona, como age Freud para que eles confessem, para extorquir os segredos destes burgueses.
Em Estaline, há uma mistura entre curiosidade científica e o gosto pelo jogo do gato e do rato, o prazer de lidar com materiais perigosos que podem explodir a qualquer momento, na cabeça dos que o ouvem. Ouvir os segredos de Estaline é condenar-se. E Lidia sabia-o.
Que análise retira dos seus sonhos?
No seu
primeiro sonho, Estaline conta a Lidia uma memória de infância, a idade da
inocência. Mesmo Estaline foi uma criança. Quando Lidia lhe pergunta se a perda
da inocência é inevitável, Estaline recusa responder, é a pergunta que todos
nós nos colocamos, até mesmo os monstros. É a perda inconsolável.
E no segundo sonho?
E no segundo sonho?
Ele
sonhou com sua esposa, Nadejda Sergueïevna Allilouïeva, que realmente amava.
Ela suicidou-se, mas a versão oficial foi que morrera de apendicite. Lidia sabe
bem que é uma mentira.
"Este
é o arquétipo da mulher que te assusta, uma mulher suficientemente livre para
decidir quando quer morrer", diz Lidia a Estaline, para quem o suicídio é
uma traição. Não ter medo da morte é a liberdade suprema sobre a qual nenhum
carrasco pode ter força. E Lidia atira a Estaline a verdade sobre a sua esposa,
e também sobre ela, que entende que o seu tempo é limitado.
Através de Lidia, faz um belo
retrato de uma mulher, interpretado com sensibilidade e delicadeza por
Emmanuelle Seigner.
Eu sempre
gostei da Emmanuelle. Ela é clara e misteriosa, enérgica e sensual. Ela pode
sorrir como uma vamp e de repente voltar a tornar-se uma criança. Isso faz-me
pensar na terra.
Deu à personagem de Lidia mais
importância do que ela tinha no romance. Porquê?
A
personagem de Lidia permitiu-me fazer viver uma mulher que acreditava na utopia
da Revolução Bolchevique, que estava submissa de corpo e alma ao poder de
Estaline, que perde gradualmente as suas ilusões, vê a realidade do terror
vermelho, tentando manter-se à tona, compreende que perdeu a sua alma, escolhe
dizer não e decide acabar com aquilo.
Se
Estaline pede a Lidia que lhe traga o livro de Freud é porque ele sabe que ela
é muito inteligente. E mesmo que se trate de psicanálise barata, é um adversário
de peso. Ela é capaz de discorrer e entender que desvendar os sonhos e os
segredos de Estaline é uma condenação à morte.
Precisamente, em paralelo,
transparece o destino de Danilov (Paul Hamy), prestes a vender a sua alma ao
diabo.
Danilov
chega a um mundo no qual não conhece os códigos. E ele acredita ser o mais
forte. Ele representa o cidadão comum, ingénuo, quer ter sucesso, é ambicioso,
disposto a um compromisso, não completamente desonesto, mas também não é um
herói... E é colocado numa situação extrema: fazer o retrato de Estaline. Esta
é uma oportunidade inesperada para se tornar famoso. Danilov representa a
posição do artista face ao poder. Se começarmos a fazer compromissos,
renegar-nos a nós próprios, não estamos a perder a alma e a nossa arte? É Lidia
que coloca a questão: "E tu, o que fizeste para perder a alma? ". É a
eterna questão. Todos nós podemos colocá-la em cada fase da vida.
Que olhar tem sobre o passado de
Danilov?
Com a
morte dos seus pais, Danilov foi adoptado, em criança, por Moukhina, uma grande
escultora da era soviética, que existiu realmente. Ela é a autora da famosa
escultura " O Operário e a Camponesa". Ela descobriu em Danilov um
dom para o desenho e acredita que ele poderia tornar-se o orgulho da arte da União
Soviética. Para ela, ele pode ser um exemplo da reeducação que permite a nova
sociedade comunista. O regime tornou-o um bom soviético.
Ao longo de todo “O Divã de
Estaline”, existe este jogo cruel e perverso em torno da mentira salvadora e da
verdade que destrói.
Estaline
revela cinicamente a Danilov o terrível fim dos seus pais nos campos do regime.
Estaline diverte-se com este dilema perverso. Será que a verdade fará nascer um
novo homem, disposto a morrer para defender os seus pais ou um cínico ambicioso
disposto a todas as cedências para ser bem-sucedido? Estaline sempre se
intitulou o "engenheiro das almas". O pouco tempo que passa com
Danilov permite-lhe perceber o seu oportunismo e o seu desejo de se submeter. A
verdade poderia ter construído a dignidade de Danilov, mas levá-lo-ia à prisão
e à morte. O cinismo de Estaline (ou de qualquer poder arbitrário) é colocar o
indivíduo face à sua própria cobardia e dignidade.
Mas
ainda voltando à relação entre Estaline e Ossip Mandelstam é a posição
irredutível do poeta que torna o ditador impotente. Mandelstam irá morrer, é
claro, mas permanecerá eterno por ter dito não. Danilov faz um pacto com o
diabo, com Estaline. Ele é manipulado e todo o pacto com o diabo, com o poder,
mais cedo ou mais tarde acaba mal.
No filme, não hesita em usar a
metáfora, especialmente em torno da obra em aço de Danilov e dos efeitos de
espelho.
Muito
jovem, eu era assombrada pela noção de reflexo, como uma mise en âbime. Em que
é que nos reflectimos? Ao que é que, de repente, pertence o meu reflexo num
quadro, numa imagem, numa vitrina ou num espelho? Numa das últimas cenas do
filme, Estaline visita a oficina de Danilov, descobre o seu reflexo na criação
do artista, e volta-se de forma violenta, como se tivesse visto passar um
fantasma, os seus fantasmas, a sua acção, os seus assassinatos? Mesmo Estaline
tem medo... E o medo, como ele sublinha "é o maior inimigo do homem"
…
Há também uma frase que surge
como tema recorrente em momentos-chave do filme: «Olharmo-nos é persistir em
ver o invisível da alma que é necessária fazer renascer para compreender a
verdade».
Li esta frase num romance de Chrétien de Troyes. Manipulei-a um pouco. Quando nos olhamos, paramos e vemos para além da aparência física, vemos o outro que nos habita e nasceu de nós e das nossas ações.
A sessão de cinema é um episódio muito evocativo da personalidade de Estaline.
Li esta frase num romance de Chrétien de Troyes. Manipulei-a um pouco. Quando nos olhamos, paramos e vemos para além da aparência física, vemos o outro que nos habita e nasceu de nós e das nossas ações.
A sessão de cinema é um episódio muito evocativo da personalidade de Estaline.
Estaline
amava os westerns americanos, os homens solitários que cavalgavam durante horas
nas planícies infinitas.
Identificava-se, sem dúvida, com o homem só face a um destino a cumprir.
Identificava-se, sem dúvida, com o homem só face a um destino a cumprir.
Entre
os filmes que vão ver, o capitão Dovitkine (Tudor Istodor), o projeccionista,
sugere um filme alemão, "O Anjo Azul" de Sternberg, filme de guerra
após a derrota da Alemanha. É uma escolha artística. Estaline gosta deste
capitão do Exército Vermelho. Ele deixa-se levar e começa a ver a o filme. Mas
rapidamente, Estaline identifica-se com o professor ridicularizado pela sua
amante (Marlene Dietrich) e o seu pretendente. Estaline não pode suportar esta
imagem que remete para o seu próprio ciúme contra a cumplicidade entre Lidia e
Danilov. Fica furioso com a possibilidade de que possam rir-se dele nas suas
costas, e pune todos os que acham divertido ridicularizá-lo ou contrariá-lo.
Para além do formidável General
Vlassik (François Chattot), de Poskrebyshev (Xavier Maly), do secretário
particular de Estaline, a personagem de Varvara (Luna Picoli-Truffaut), a
empregada, é particularmente interessante.
Ela é
na verdade uma agente secreta do MGB. A tenente Machkova revela a sua
identidade quando vem prender Lidia.
Varvara
entrou na vida privada de Lidia fazendo passar-se por empregada doméstica. Elas
tiveram tempo para conversar, para contar confidências, mesmo para falar de
canções de amor. "Nos teus grandes olhos negros, eu perdi-me, aguardo o
teu olhar com o coração suspenso", canta Lidia no momento da prisão depois
de declarar: "É a última esperança que me abandona, a de sobreviver."
Através da personagem de Varvara- Machkova eu queria mostrar que nesta
sociedade, neste século “cão e lobo”, todo a gente joga um jogo duplo, são
vítimas e carrascos, escondem-se e mentem. Varvara não é cruel por gosto, é
parte de um sistema. É ao mesmo tempo dura e vulnerável. Ao ler a Estaline
"O Conto do Czar Saltan", de Pouchkine como Lidia costumava fazer,
ela sente que estando na linha de frente, vai estar em perigo.
Estaline era um carrasco que
também gosta de jardinagem enquanto pensa no poder, maneja a tesoura como se
estivesse a cortar cabeças!
Estaline
traça um paralelo entre a natureza e as grandes purgas, e salienta que "a
natureza é feita de tal forma que tudo acaba por se estragar. As doenças atacam
mesmo aquele que foi purgado e recuperou completamente. O mundo é apenas uma
ferida em remissão permanente."
A música ocupa um lugar
importante em “O Divã de Estaline”. Porque escolheu a música de câmara de
Chostakovitch ou a ária de Lady Macbeth " Vieni ! T’affretta "?
Chostakovitch
representa para mim o artista que lutou e sobreviveu apesar do terror, sem
abandonar nada do seu génio para agradar. Diz-se que ele estava sempre à espera
de ser preso e que a mala estava pronta debaixo da cama. O Quarteto para cordas
em Dó Menor desenrola-se ao longo da história, como uma ameaça e um consolo.
Estaline
ouve a ária de Lady Macbeth que resume os poderes do mal pela ambição do seu
marido: tornar-se rei. Callas tem na voz a loucura dos sonhos e o terror das
visões.
Você que adora tanto os símbolos
e os signos, coloca nas mãos de Lidia a capa de um disco da pianista Maria Yudina.
Quem era ela realmente?
Oponente
do regime soviético, convertida à fé Ortodoxa, ela era admirada por Estaline!
Maria Yudina é uma mulher extraordinária. Diz-se que uma noite, Estaline ouviu
o concerto Nº23 de Mozart, interpretado por Maria Yudina. Ele gostou tanto da
interpretação que pediu para ter um disco. O disco não existia. Houve uma noite
em que a pianista e todos os músicos da orquestra foram acordados para gravar
este trabalho. E às três da manhã, o disco foi levado a Estaline. Para honrar o
seu talento, Estaline ofereceu-lhe dinheiro. Ela respondeu que agradecia, mas
que iria dar o dinheiro todo aos pobres, até ao último rublo e que iria “rezar
por todos os pecados cometidos contra o povo russo”. Estaline não a importunou.
Ela nunca foi para o gulag. Mais tarde, na época de Khrushchev, ela é posta de
lado mas cada vez que toca em público, os concertos estão cheios. Quando o
público reclama um encore, em vez de tocar o piano, ela levanta-se, e recita
poema de poetas dissidentes. O público não percebe nada do que ela diz, porque
já não tem dentes, mas cada um entende o que quer.
O
retrato de Maria Yudina funciona como leitmotiv no escritório de Estaline. Como
o fio condutor desta história entre o poder que corrompe e a luta para
permanecer intacto.
Entrevista realizada por Emmanuelle Frois, http://ledivandestaline-lefilm.com/pt/entrevista.html
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