AQUARIUS
Kleber
Mendonça Filho
Brasil/França, 2016, 145’, M/16
FICHA TÉCNICA
Realização e
Argumento: Kleber Mendonça Filho
Montagem: Eduardo Serrano
Montagem: Eduardo Serrano
Imagem: Pedro Sotero, Fabricio Tadeu
Som: Nicolas Hallet
Interpretação: Sonia Braga, Maeve Jinkings Irandhir Santos Humberto Carrao
Som: Nicolas Hallet
Interpretação: Sonia Braga, Maeve Jinkings Irandhir Santos Humberto Carrao
Origem: Brasil/França
Ano: 2016
Duração: 145’
FESTIVAIS
Festival de
Cannes
SINOPSE
Clara, uma viúva de 65 anos, crítica de música
reformada, nasceu numa família rica e tradicional no Recife, Brasil. Ela é a
última residente do Aquarius, um edifício construído nos anos 40, na zona cara
junto ao mar da Avenida Boa Viagem, Recife. Todos os apartamentos vizinhos já
foram adquiridos pela empresa que apresentou projectos para construir um novo
empreendimento. Clara jura que só sairá dali morta e entra numa guerra fria com
a empresa, num confronto obscuro, assustador e emocionalmente desgastante. Esta
tensão não só perturba Clara como torna as suas rotinas exasperantes, levando-a
a reflectir sobre si e aqueles que ama, o seu passado e o seu futuro.
ENTREVISTA
O maior cineasta do momento
no Brasil veio a Portugal lançar "Aquarius", acabado de chegar às
salas. Kleber Mendonça Filho explicou ao DN o que lhe aconteceu depois de ficar
"persona non grata" do novo governo brasileiro. Entrevista com o
homem que ressuscitou Sonia Braga.
Antes de mais nada, convém referir que tem uma relação
muito forte com Portugal e os seus festivais. Esta está longe de ser a primeira
vez que cá vem.
É uma relação forte para além dos meus filmes. A minha
primeira vez que vim a Portugal foi em 1983. Tinha 14 anos e a minha família
morava em Inglaterra. Foram as primeiras férias de verão com a minha mãe, que
veio a conduzir desde Inglaterra a Portugal. Aliás, a personagem da Sonia Braga
em Aquarius tem muito que ver com a minha mãe. Tenho uma imagem marcante
deste vosso país que mudou tanto! Depois comecei a vir já em adulto muitas
vezes para o Festival Luso-Brasileiro da Feira, onde o Américo Santos programou
sempre os meus filmes. A relação com Santa Maria da Feira foi muito forte.
Lembro-me também sempre da experiência do IndieLisboa.
Aquarius não deixa de ser desconcertante por ser um filme
sobre este tempo. Este tempo do Brasil, agora, com toda esta questão da tomada
do poder de Temer. Claro que há uma coincidência dos diabos, sobretudo porque
quando filmaram não imaginavam que as coisas pudessem chegar a este ponto, mas
não deixa de ser notável quando o cinema toca no real desta maneira, o cinema
de ficção. Esse toque de contemporaneidade não o deixou surpreendido?
Sim! Eu tenho um fascínio pela passagem do tempo. O
cinema brinca e joga com o tempo...
Mas o que impressiona é que Dona Clara, viúva
aposentada e forçada a sair do seu lar, poderia ser um espelho de Dilma, a
Presidenta afastada...
Claro! Já em Cannes muitos brasileiros ficaram
estupefactos! E este filme foi pensado com anos de antecedência! Para falar
verdade, quando filmávamos Aquarius existia já um início de tempestade,
mas eu como cidadão brasileiro não podia antecipar o que aconteceu nove meses
depois. Pensava que a nossa democracia era mais sólida.
Nem suspeitava que estava a fazer um filme de
resistência?
É um filme de resistência, Aquarius é também
muita coisa. Em primeiro lugar é sobre alguém que diz não, que tem a
oportunidade de negar uma resposta. Muitas vezes, na sociedade e no mercado,
não é de bom tom dizer não. Todos acham que Clara deveria aceitar a proposta de
sair do seu apartamento, sobretudo o mercado. A resistência que filmamos parte
logo da liberdade da personagem. Ela tem a liberdade de não querer ser
comprada! E isso é um ato político.
Além da tramóia que foi o afastamento do filme na
candidatura brasileira aos Óscares, que outros efeitos práticos sofreu com o
protesto antigolpe na escadaria de Cannes?
Começou por tentarem classificar o filme para maiores
de 18. Protestámos e foi revertido. Houve grande polémica pois já se sabia das
retaliações ao filme, sobretudo com essa questão do Óscar. Ficar de fora da
escolha brasileira para o Óscar de melhor filme estrangeiro não me surpreendeu
- já tinha falado isso aos meus amigos. Além disso, cinco dias depois do protesto
em Cannes, foi feita uma denúncia anónima que levou meses a chegar à justiça.
Uma denúncia por ser programador do Cinema da Fundação, que era associado ao
Ministério da Educação. O problema é que a denúncia foi feita na base de se
pensar que era associado ao Ministério da Cultura, o ministério que fomenta o
cinema. Ou seja, acusações vazias. No próximo mês eu e o meu advogado vamos
defender a verdade.
O Kleber é um cineasta a tempo inteiro depois de um
longo período como jornalista de cinema...
Pois é, os filmes ficaram muito grandes mas tenho
saudades desses tempos em que ia ao cinema profissionalmente, onde poderia
descobrir alguns filmes.
Sente que a crítica ainda é importante? Aquarius
foi um filme muito alavancado pela imprensa.
Sempre achei que a crítica é importante. Muitos têm um
discurso muito pessimista acerca da importância do papel da crítica. Mas não se
enganem! A crítica, os festivais, as mostras e as curadorias ajudam um filme a
respirar, sobretudo se for independente. Vá, a crítica ainda é muito
importante.
Rui Pedro Tendinha, dn.pt/artes
Aquarius responde-nos com exatidão às nossas mesmas
expetativas. Derivada à situação atual da politica brasileira, o
"impeachment", o golpe de estado, é possível fazer leituras desse
género neste grande regresso de Sónia Braga ao cinema. Mas vamos por partes.
Clara (Braga) é uma jornalista e escritora conceituada
que vive no apartamento que a viu nascer e crescer, situado no outrora
grandioso Edifício Aquarius. Porém, ela é a última habitante dessa estrutura
visto que todos os outros foram aliciados e persuadidos por uma construtora com
planos para o mesmo edifício. Mas Clara é "sangue-quente", temendo
deixar para trás todo um conjunto de memórias vividas naquele mesmo local,
mesmo sendo pressionada pela construtora, ela resiste e insurge-se contra os mesmos
naquele "edifício-fantasma".
Em Aquarius existe um forte sentimento de que
algo antagónico, uma catástrofe, está iminente. Kleber Mendoça Filho desfruta
das mais variadas nuances de diferentes géneros para germinar o seu
"aquário", uma metáfora evidente sobre a corrupção e o envolvimento
furtivo dos lobbies na sociedade que não restringe à mera canção do
"coitadinho", nem ao agora vendido registo do "favela movie".
O filme cénicamente é interligado com o anterior Som
ao Redor, onde o pano de fundo ganha imersão nas suas personagens; aqui, o
edifício abandonado - e por vezes "abalroado" por forças amorais e
corrompidas (existem sim ataques à indústria pornográfica, o jogo de
"favores" e até mesmo à "infestação" do evangelismo como
golpe dominador politico) - adquire a relevância de uma personagem. Sónia Braga
complementa esse ambiente "vivo", tornando-se na alma de um ser
inanimado, que alma é esta?
Mas por detrás desta Clara, a já maior heroína do
cinema brasileiro, existe um "grande homem", Kleber Mendonça Filho, que
injeta nesta viagem repartida em três capítulos uma subversiva carga política.
A acidez da crítica poderá ser comparada com a mera metáfora. Aliás, são estas
alusões que nos sentimos seguros face a eventuais propagandas, até porque
Mendonça Filho sabe difundir uma mensagem, sem a utilização do óbvio, nem
sequer de cair nos devaneios do onírico.
Essa frontalidade, nada inquisidora, encontra-se no
próprio espaço de Clara, como é evidente na sua sala em determinada cena, onde
o filme acumula tamanhas "provocações" ao Brasil "politicamente
correto" que muitas entidades desejam construir. Entre a invocação, sem
raiz aparente, surge a menção da homossexualidade, a amamentação (um ato
completamente natural que tem sido atacado como um atentado ao pudor) e ainda a
limpeza de bebés (uma rara imagem de cinema realista), que fundidos tornam num
quadro de sacrilégio para esta cultural tão moralista, este "aquário"
social estabelecido.
Aquarius é tudo num só, menos um "filme" no seu
sentido mais simplista. É uma força de expressão filmada em estado de fúria,
mas cuja cólera é registada com sapiência. Ao mesmo tempo é uma "mensagem
numa garrafa", uma obra para perdurar para futuras gerações, assim como a
cómoda que acompanhou todo uma árvore geracional de Clara. Um retrato
subliminar do estado brasileiro que por sua vez conserva a riqueza da cultura
de Recife e imortaliza Sónia Braga como a maior das divas do Brasil. Será muito
cedo para falar em obra-prima? Muito bem, arrisco em declará-lo como tal. Que
venha então a primeira pedra.
Hugo Gomes, c7nema.net
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