AQUARIUS | 21 MARÇO | TMF | 21H30



AQUARIUS
Kleber Mendonça Filho
Brasil/França, 2016, 145’, M/16

FICHA TÉCNICA
Realização e Argumento: Kleber Mendonça Filho
Montagem: Eduardo Serrano
Imagem: Pedro SoteroFabricio Tadeu
Som: Nicolas Hallet
Interpretação: Sonia Braga, Maeve Jinkings  Irandhir Santos  Humberto Carrao
Origem: Brasil/França
Ano: 2016
Duração: 145’ 

FESTIVAIS
Festival de Cannes


 


SINOPSE
Clara, uma viúva de 65 anos, crítica de música reformada, nasceu numa família rica e tradicional no Recife, Brasil. Ela é a última residente do Aquarius, um edifício construído nos anos 40, na zona cara junto ao mar da Avenida Boa Viagem, Recife. Todos os apartamentos vizinhos já foram adquiridos pela empresa que apresentou projectos para construir um novo empreendimento. Clara jura que só sairá dali morta e entra numa guerra fria com a empresa, num confronto obscuro, assustador e emocionalmente desgastante. Esta tensão não só perturba Clara como torna as suas rotinas exasperantes, levando-a a reflectir sobre si e aqueles que ama, o seu passado e o seu futuro.




 
 
ENTREVISTA
O maior cineasta do momento no Brasil veio a Portugal lançar "Aquarius", acabado de chegar às salas. Kleber Mendonça Filho explicou ao DN o que lhe aconteceu depois de ficar "persona non grata" do novo governo brasileiro. Entrevista com o homem que ressuscitou Sonia Braga.
Antes de mais nada, convém referir que tem uma relação muito forte com Portugal e os seus festivais. Esta está longe de ser a primeira vez que cá vem.
É uma relação forte para além dos meus filmes. A minha primeira vez que vim a Portugal foi em 1983. Tinha 14 anos e a minha família morava em Inglaterra. Foram as primeiras férias de verão com a minha mãe, que veio a conduzir desde Inglaterra a Portugal. Aliás, a personagem da Sonia Braga em Aquarius tem muito que ver com a minha mãe. Tenho uma imagem marcante deste vosso país que mudou tanto! Depois comecei a vir já em adulto muitas vezes para o Festival Luso-Brasileiro da Feira, onde o Américo Santos programou sempre os meus filmes. A relação com Santa Maria da Feira foi muito forte. Lembro-me também sempre da experiência do IndieLisboa.
Aquarius não deixa de ser desconcertante por ser um filme sobre este tempo. Este tempo do Brasil, agora, com toda esta questão da tomada do poder de Temer. Claro que há uma coincidência dos diabos, sobretudo porque quando filmaram não imaginavam que as coisas pudessem chegar a este ponto, mas não deixa de ser notável quando o cinema toca no real desta maneira, o cinema de ficção. Esse toque de contemporaneidade não o deixou surpreendido?
Sim! Eu tenho um fascínio pela passagem do tempo. O cinema brinca e joga com o tempo...
Mas o que impressiona é que Dona Clara, viúva aposentada e forçada a sair do seu lar, poderia ser um espelho de Dilma, a Presidenta afastada...
Claro! Já em Cannes muitos brasileiros ficaram estupefactos! E este filme foi pensado com anos de antecedência! Para falar verdade, quando filmávamos Aquarius existia já um início de tempestade, mas eu como cidadão brasileiro não podia antecipar o que aconteceu nove meses depois. Pensava que a nossa democracia era mais sólida.
Nem suspeitava que estava a fazer um filme de resistência?
É um filme de resistência, Aquarius é também muita coisa. Em primeiro lugar é sobre alguém que diz não, que tem a oportunidade de negar uma resposta. Muitas vezes, na sociedade e no mercado, não é de bom tom dizer não. Todos acham que Clara deveria aceitar a proposta de sair do seu apartamento, sobretudo o mercado. A resistência que filmamos parte logo da liberdade da personagem. Ela tem a liberdade de não querer ser comprada! E isso é um ato político.




Além da tramóia que foi o afastamento do filme na candidatura brasileira aos Óscares, que outros efeitos práticos sofreu com o protesto antigolpe na escadaria de Cannes?
Começou por tentarem classificar o filme para maiores de 18. Protestámos e foi revertido. Houve grande polémica pois já se sabia das retaliações ao filme, sobretudo com essa questão do Óscar. Ficar de fora da escolha brasileira para o Óscar de melhor filme estrangeiro não me surpreendeu - já tinha falado isso aos meus amigos. Além disso, cinco dias depois do protesto em Cannes, foi feita uma denúncia anónima que levou meses a chegar à justiça. Uma denúncia por ser programador do Cinema da Fundação, que era associado ao Ministério da Educação. O problema é que a denúncia foi feita na base de se pensar que era associado ao Ministério da Cultura, o ministério que fomenta o cinema. Ou seja, acusações vazias. No próximo mês eu e o meu advogado vamos defender a verdade.
O Kleber é um cineasta a tempo inteiro depois de um longo período como jornalista de cinema...
Pois é, os filmes ficaram muito grandes mas tenho saudades desses tempos em que ia ao cinema profissionalmente, onde poderia descobrir alguns filmes.
Sente que a crítica ainda é importante? Aquarius foi um filme muito alavancado pela imprensa.
Sempre achei que a crítica é importante. Muitos têm um discurso muito pessimista acerca da importância do papel da crítica. Mas não se enganem! A crítica, os festivais, as mostras e as curadorias ajudam um filme a respirar, sobretudo se for independente. Vá, a crítica ainda é muito importante.
Rui Pedro Tendinha, dn.pt/artes


  CRÍTICA


Aquarius responde-nos com exatidão às nossas mesmas expetativas. Derivada à situação atual da politica brasileira, o "impeachment", o golpe de estado, é possível fazer leituras desse género neste grande regresso de Sónia Braga ao cinema. Mas vamos por partes.
Clara (Braga) é uma jornalista e escritora conceituada que vive no apartamento que a viu nascer e crescer, situado no outrora grandioso Edifício Aquarius. Porém, ela é a última habitante dessa estrutura visto que todos os outros foram aliciados e persuadidos por uma construtora com planos para o mesmo edifício. Mas Clara é "sangue-quente", temendo deixar para trás todo um conjunto de memórias vividas naquele mesmo local, mesmo sendo pressionada pela construtora, ela resiste e insurge-se contra os mesmos naquele "edifício-fantasma".
Em Aquarius existe um forte sentimento de que algo antagónico, uma catástrofe, está iminente. Kleber Mendoça Filho desfruta das mais variadas nuances de diferentes géneros para germinar o seu "aquário", uma metáfora evidente sobre a corrupção e o envolvimento furtivo dos lobbies na sociedade que não restringe à mera canção do "coitadinho", nem ao agora vendido registo do "favela movie".
O filme cénicamente é interligado com o anterior Som ao Redor, onde o pano de fundo ganha imersão nas suas personagens; aqui, o edifício abandonado - e por vezes "abalroado" por forças amorais e corrompidas (existem sim ataques à indústria pornográfica, o jogo de "favores" e até mesmo à "infestação" do evangelismo como golpe dominador politico) - adquire a relevância de uma personagem. Sónia Braga complementa esse ambiente "vivo", tornando-se na alma de um ser inanimado, que alma é esta?
Mas por detrás desta Clara, a já maior heroína do cinema brasileiro, existe um "grande homem", Kleber Mendonça Filho, que injeta nesta viagem repartida em três capítulos uma subversiva carga política. A acidez da crítica poderá ser comparada com a mera metáfora. Aliás, são estas alusões que nos sentimos seguros face a eventuais propagandas, até porque Mendonça Filho sabe difundir uma mensagem, sem a utilização do óbvio, nem sequer de cair nos devaneios do onírico.

Essa frontalidade, nada inquisidora, encontra-se no próprio espaço de Clara, como é evidente na sua sala em determinada cena, onde o filme acumula tamanhas "provocações" ao Brasil "politicamente correto" que muitas entidades desejam construir. Entre a invocação, sem raiz aparente, surge a menção da homossexualidade, a amamentação (um ato completamente natural que tem sido atacado como um atentado ao pudor) e ainda a limpeza de bebés (uma rara imagem de cinema realista), que fundidos tornam num quadro de sacrilégio para esta cultural tão moralista, este "aquário" social estabelecido.
Aquarius é tudo num só, menos um "filme" no seu sentido mais simplista. É uma força de expressão filmada em estado de fúria, mas cuja cólera é registada com sapiência. Ao mesmo tempo é uma "mensagem numa garrafa", uma obra para perdurar para futuras gerações, assim como a cómoda que acompanhou todo uma árvore geracional de Clara. Um retrato subliminar do estado brasileiro que por sua vez conserva a riqueza da cultura de Recife e imortaliza Sónia Braga como a maior das divas do Brasil. Será muito cedo para falar em obra-prima? Muito bem, arrisco em declará-lo como tal. Que venha então a primeira pedra.
Hugo Gomes, c7nema.net

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